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Epidemiologia e Serviços de Saúde

versión impresa ISSN 1679-4974versión On-line ISSN 2237-9622

Epidemiol. Serv. Saúde v.16 n.1 Brasília mar. 2007

http://dx.doi.org/10.5123/S1679-49742007000100004 

ARTIGO ORIGINAL

 

Análise descritiva e de tendência de acidentes de transporte terrestre para políticas sociais no Brasil

 

Descriptive and trend analyses of land transport accidents for public policies in Brazil

 

 

Maria de Fátima Marinho de SouzaI; Deborah Carvalho MaltaII; Gleice Margarete de Souza ConceiçãoIII; Marta Maria Alves da SilvaIV; Cynthia Gazal-CarvalhoIV; Otaliba Libânio de Morais NetoV

ICoordenação-Geral de Informações e Análise Epidemiológica, Departamento de Análise de Situação de Saúde, Secretaria de Vigilância em Saúde, Ministério da Saúde, Brasília-DF. Hospital das Clínicas, Faculdade de Medicina, Universidade de São Paulo, São Paulo-SP
IICoordenação-Geral de Doenças e Agravos Não Transmissíveis, Departamento de Análise de Situação de Saúde, Secretaria de Vigilância em Saúde, Ministério da Saúde, Brasília-DF. Escola de Enfermagem, Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte-MG
IIICoordenação-Geral de Informações e Análise Epidemiológica, Departamento de Análise de Situação de Saúde, Secretaria de Vigilância em Saúde, Ministério da Saúde, Brasília-DF
IVCoordenação-Geral de Doenças e Agravos Não Transmissíveis, Departamento de Análise de Situação de Saúde, Secretaria de Vigilância em Saúde, Ministério da Saúde, Brasília-DF
VDepartamento de Análise de Situação de Saúde, Secretaria de Vigilância em Saúde, Ministério da Saúde, Brasília-DF. Instituto de Patologia Tropical e Saúde Pública, Universidade Federal de Goiás, Goiânia-GO

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Este artigo analisou a mortalidade por acidentes de transporte terrestre no Brasil em 2003 e sua tendência de 1980 a 2003. Utilizaram-se os óbitos por acidente de transporte terrestre captados pelo Sistema de Informações sobre Mortalidade (SIM). Para a análise de tendência, adotaram-se taxas padronizadas, tendo, como referência, a população brasileira no ano 2000. Houve 33.182 óbitos em 2003 – 19 óbitos por 100 mil habitantes. Atropelamentos e acidentes com motocicleta cresceram no período estudado, com declínio dos primeiros a partir de 1998 e crescimento dos últimos, principalmente, a partir de 1995. Houve diferencial no risco de mortalidade segundo raça/cor e condição social – escolaridade. Indivíduos pretos associaram-se a pior condição social e mortes por atropelamento, enquanto brancos, a melhor condição social e mortes como ocupantes de veículo. Os resultados reforçam a importância da vigilância de acidentes de transporte no apoio a políticas de promoção da saúde e prevenção desses eventos.

Palavras-chave: acidentes de transporte; vigilância; raça; mortalidade.


SUMMARY

This paper analyzed land transport accident mortality in Brazil in 2003 and its trend from 1980 to 2003. Data from the National Mortality Information System (SIM) were used. Standardized mortality rates were used for the mortality trend analysis, based on the 2000 population in Brazil. There were 33,182 deaths in 2003 – 19 deaths per 100 thousand inhabitants. Pedestrian and motorcycle occupant deaths increased in the period, with the former decreasing after 1998, and the latter increasing mainly after 1995. There was also a differential mortality according to race/color and social condition – educational level. Black victims were more likely to present lower social condition and to die as pedestrians, whereas whites were more likely to present higher social condition and to die as vehicle occupants. The results reinforce the importance of surveillance of transport accidents for health promotion and prevention of these events.

Key words: traffic accidents; surveillance; race; mortality.


 

 

Introdução

Segundo a Organização Mundial da Saúde (OMS), em todo o mundo, o número de pessoas que morrem a cada ano vítimas de acidentes de transporte terrestre é estimado em cerca de 1,2 milhões, enquanto o número de pessoas acometidas pela totalidade de acidentes é de, aproximadamente, 50 milhões ao ano. Essas causas são responsáveis por 12% do total de mortes no planeta, sendo a terceira causa mais freqüente na faixa etária de um a 40 anos.1 Entre as causas externas de mortalidade, 25% correspondem aos acidentes de transporte.2 As estimativas apontam tendência crescente desses números, que deverão aumentar em 40% até 2030, caso não sejam adotadas medidas preventivas efetivas.3

Apesar dos números alarmantes, esses eventos atraem menos a atenção da mídia, comparados a outros, não tão usuais e que envolvem um menor número de vítimas. Pedestres, ciclistas e motociclistas são as vítimas mais vulneráveis a esse tipo de acidente. As faixas etárias mais acometidas compreendem os adultos jovens e correspondem a mais de 50% das mortes entre 15 a 44 anos. Entre crianças e adolescentes de 5 a 14 anos e jovens de 15 a 29 anos, acidentes de transporte terrestre constituem a segunda causa de morte.1

Em países da África, Ásia e América Latina, a maioria das mortes por acidentes de transporte é de pedestres, ciclistas, usuários de outros veículos de duas rodas e usuários de ônibus e peruas. Entre esses indivíduos, os mais acometidos pertencem a grupos de baixa renda.4,5 No grupo dos pedestres, os mais vulneráveis são as crianças e os idosos:1 enquanto as crianças têm menor percepção de perigo, os idosos apresentam menor mobilidade e agilidade, deficiências auditivas e visuais e redução dos reflexos.6

Em termos econômicos, o custo das perdas nos acidentes de transporte alcança cerca de 1% do produto interno bruto (PIB) em países de baixa renda; e 2% do PIB, em países de alta renda.7

O Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), vinculado ao Ministério do Planejamento, Orçamento e Gestão (MPOG), realizou estudo em aglomerações urbanas no Brasil, que estimou os custos por acidentes de transporte em, aproximadamente, R$5,3 bilhões de reais em 2001, o que equivale a 0,4% do PIB nacional.8 Esse valor seria muito maior caso fossem incluídos os custos com acidentes rodoviários. Estudos estimativos de custos por acidentes de transporte em rodovias encontram-se em andamento.

Em muitos países, acidentes de transporte são tratados como fatalidades, quando, na maioria das vezes, são o resultado da omissão de governos diante das condições das vias públicas e estradas ou na fiscalização de veículos, da imprudência e negligência dos usuários – motoristas e pedestres – em relação a leis e normas de segurança. Os acidentes e crimes de transporte não comovem a opinião pública; muitas vezes, tampouco os transgressores são punidos.9

O termo acidentes é pouco utilizado na literatura internacional, pela possibilidade de má interpretação de algo inevitável, imprevisível ou que não seja passível de prevenção. Termos como crash e injury têm sido utilizados em língua inglesa, por não transmitirem essa conotação. No Brasil, trabalha-se com o conceito de acidente de transporte como evento não intencional, porém evitável, causador de lesões físicas e emocionais. Esse conceito é importante por traduzir a previsibilidade do evento.

Muitos são os fatores de risco associados aos acidentes de transporte. Seu conhecimento possibilita intervenções para a prevenção. Descrevem-se, entre alguns problemas estruturais no Brasil, principalmente: a precária conservação das estradas; o longo tempo de uso da frota (mais de doze anos) e sua manutenção inadequada; e aqueles relacionados à introdução da motocicleta como instrumento de trabalho. Este último fator tem resultado em elevação assustadora nas taxas de mortalidade entre seus usuários.10 Estudo no Hospital das Clínicas de São Paulo mostra que, entre os acidentados de transporte atendidos na emergência do hospital, 31% são vítimas de acidentes de motocicleta.11

Sobre os fatores protetores para acidentes de transporte, a literatura cita a legislação rigorosa relativa ao uso de álcool associado à direção veicular, o uso dos testes de alcoolemia, o limite imposto à velocidade veicular,12 o uso de equipamentos de segurança – como cintos, capacetes, cadeirinhas de bebês, airbags –, e outros componentes de segurança veicular.10

A importância da vigilância de acidentes de transporte na indução de políticas públicas

Políticas sociais para a prevenção de acidentes de transporte devem se apoiar em informações objetivas. Os conhecimentos para a prevenção dos acidentes provêm de diversas disciplinas: Medicina; Epidemiologia; Sociologia; Educação; Economia; Engenharia; Criminologia; e outras.

A Saúde Pública e a Epidemiologia têm um papel importante nesse processo, seja no desenvolvimento de pesquisas como na condução de vigilâncias dos acidentes e violências, compreendendo a coleta e avaliação sistemática de dados sobre magnitude, escopo, características e conseqüências dos acidentes de transporte. Esses estudos buscam determinar as causas e os fatores associados aos acidentes que sejam passíveis de modificação por meio de intervenções.1

Tornam-se importantes, igualmente, os estudos de monitoramento e avaliação dessas intervenções – por exemplo, mediante a avaliação de sua relação custo-efetividade –, com possível aprendizado e modificação de práticas. Tais estudos são importantes para a persuasão de gestores e responsáveis pela implementação de políticas públicas.

 

A vigilância de acidentes e violências no Ministério da Saúde

No Ministério da Saúde (MS), o monitoramento e a vigilância de acidentes e violências é responsabilidade da Coordenação-Geral de Doenças e Agravos Não Transmissíveis (CGDANT), da Secretaria de Vigilância em Saúde (SVS/MS), responsável pela análise das bases de dados da área da Saúde. A vigilância de doenças e agravos não transmissíveis pressupõe o fluxo sistemático de dados primários e secundários. As principais fontes de dados são os sistemas de informação em mortalidade e internações hospitalares e os inquéritos de saúde periódicos e especiais. Outra importante ação consiste na disseminação de informações e sensibilização dos gestores, técnicos e conselheiros de saúde (tomadores de decisão) sobre a importância dos acidentes e violências, para os quais é necessário o desenvolvimento e fortalecimento de ações integradas de prevenção e controle desses eventos, como também de seus fatores de risco. Torna-se importante, ademais, atuar de forma articulada e intersetorial, visando ao desencadeamento de ações em comunidades e grupos populacionais específicos. A vigilância de acidentes violências deverá, portanto, trabalhar com a área da Saúde, estabelecendo parcerias com setores da administração pública – Educação, Meio Ambiente, Trabalho, Transporte, Direitos Humanos e outros –, empresas e organizações não governamentais, com o objetivo de induzir mudanças sociais, econômicas e ambientais que favoreçam a redução desses agravos.

O Brasil tem desenvolvido iniciativas importantes em relação ao tema, como foi o Código de Trânsito Brasileiro (CTB), em 1998, um dos fatores responsáveis pela redução nas taxas de mortalidade por acidentes de transporte no país.13 O CTB é de responsabilidade do Ministério das Cidades.

Em 2001, no lançamento da Política Nacional de Redução da Morbimortalidade por Acidentes e Violências, o Ministério da Saúde investiu-se da promoção de ações articuladas de responsabilidade de suas diversas áreas e setores.14 O Dia Mundial da Saúde, em 2004, homenageou as vítimas de acidentes de transporte trouxe esse tema relevante para o debate no interior da instituição da Saúde e de toda a sociedade. SVS/MS, em 2003, financiou projetos de prevenção de acidentes de transporte em cinco capitais, que repercutiram na realização de importantes trabalhos locais. O Serviço de Atendimento Móvel de Urgência (Samu), um dos projetos prioritários do governo entre 2003 e 2005, implicou grande investimento financeiro no atendimento pré-hospitalar e na qualificação do atendimento das emergências hospitalares. Somadas, essas iniciativas são fundamentais para a efetividade da resposta às vítimas de acidentes e violências.

O presente estudo tem como objetivo analisar os dados de acidentes de transporte terrestre a partir de informações provenientes do Sistema de Informações sobre Mortalidade (SIM), sob co-gestão da SVS/MS e do Departamento de Informática do SUS (Datasus/MS), com vistas a subsidiar o planejamento e as políticas públicas na área.

 

Metodologia

Foram obtidas informações do SIM sobre todos os óbitos cuja causa básica tenha sido “acidente de transporte terrestre”, ocorridos no Brasil no período de 2000 a 2003, incluindo local de residência, idade, sexo, raça/cor e escolaridade.

Os acidentes de transporte terrestre são apresentados pela Classificação Estatística Internacional de Doenças e Problemas Relacionados à Saúde – Décima Revisão (CID-10, 1997) sob os códigos V01 a V89, subdivididos nas seguintes categorias, de acordo com o meio de transporte da vítima: pedestre (V01 a V09); bicicleta (V10 a V19); motocicleta (V20 a V29); triciclo (V30 a V39); automóvel (V40 a V49); caminhonete (V50 a V59); veículo de transporte pesado (V60 a V69); ônibus (V70 a V79); e outros (V80 a V89 – veículo de tração animal, trem, veículo de transporte especial, etc.). Para facilitar a interpretação dos resultados, em grande parte da análise, os acidentes foram agrupados em três categorias: pedestre; acidente de motocicleta; e acidente com ocupante de outros veículos (esta categoria englobou os acidentes com automóvel, caminhonete, veículo de transporte pesado e ônibus); excluíram-se os acidentes de bicicleta, triciclo e outros.

As variáveis independentes avaliadas para a mortalidade por acidentes de transporte terrestre foram: local de residência (macrorregião ou Estado); idade; sexo; raça/cor; e escolaridade dos indivíduos.

Utilizou-se a classificação de cor/raça da Fundação Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), baseada em cinco categorias: branca; preta; amarela; parda; e indígena.15

As informações sobre escolaridade foram utilizadas como proxy do nível socioeconômico da população. Os indivíduos foram classificados em dois níveis de escolaridade: até quatro anos de estudo (menor nível socioeconômico); e quatro ou mais anos de estudo (maior nível socioeconômico). Na análise da escolaridade, trabalhou-se apenas com os óbitos de indivíduos maiores de 10 anos de idade.

Inicialmente, será apresentada análise sobre qualidade do preenchimento das informações sobre idade, sexo, raça/cor e escolaridade nas declarações de óbito por acidente de transporte terrestre. A seguir, será desenvolvida uma análise descritiva da mortalidade para o ano de 2003, além da apresentação da evolução das taxas de mortalidade para o período de 2000 a 2003, segundo faixa etária, sexo, raça/cor escolaridade no Brasil. Serão apresentados, por fim, resultados da análise de tendência da mortalidade por acidentes de transporte terrestre entre 1980 e 2003, para pedestre, acidente de motocicleta e outros acidentes de transporte terrestre.16,17 Para essa análise, utilizaram-se taxas padronizadas, adotando-se, como referência, a população brasileira no ano 2000.15

 

Resultados

Qualidade da informação

A Tabela 1 mostra a proporção de não-preenchimento das variáveis idade, sexo, raça/cor e escolaridade nas declarações de óbitos por acidentes de transporte terrestre no Brasil, entre 2000 e 2003. A variável idade teve um percentual de não-preenchimento inferior a 1,0% em todo o período. Para a variável sexo, o percentual de não-preenchimento não ultrapassou 0,1%. A variável raça/cor apresentou um elevado percentual médio de não-preenchimento – 8,5% – no período. A variável escolaridade apresentou a pior qualidade de preenchimento. Apesar da melhora no preenchimento observada ao longo dos anos, o percentual de não-preenchimento foi superior a 40% em 2003.

 

 

 

No Brasil, as causas externas foram responsáveis por 128.790 óbitos no ano de 2003, correspondendo à terceira causa de óbito na população geral. No mesmo ano, foram registrados 33.182 óbitos por acidentes de transporte terrestre no País. Entre as mortes por causas externas com intenção indeterminada, houve apenas quatro casos decorrentes de impacto de um veículo a motor nesse ano (CID-10, código Y32). Do total de 33.182 óbitos, 26.934 (81%) eram indivíduos do sexo masculino. O sexo não foi identificado em apenas seis casos. Em ambos os sexos, essa mortalidade esteve concentrada entre as idades de 15 a 59 anos: 83% dos óbitos do sexo masculino e 67% dos óbitos do sexo feminino. No sexo feminino, a porcentagem de óbitos nas faixas mais jovens (de 0 a 19 anos) e nas mais idosas (a partir de 60 anos) totalizou 44%; no sexo masculino, essa proporção foi de 26%. Assim, no sexo feminino, a mortalidade esteve mais distribuída ao longo das diferentes faixas etárias, enquanto no masculino, a mortalidade esteve mais concentrada nas faixas etárias intermediárias (20 a 59 anos) (Figura 1).

 

 

A informação sobre raça/cor não foi preenchida em 8% das declarações de óbito em 2003. A maior parte dos óbitos ocorreu entre indivíduos brancos (54%). Os óbitos entre pardos e pretos totalizaram 38% entre indígenas e amarelos, 0,5%, seguindo o padrão de distribuição de raça/cor da população.

Como o número de óbitos por acidentes de transporte terrestre foi muito pequeno entre indígenas e amarelos, comparado ao das outras categorias de raça/cor, a maior parte das análises envolveu apenas as categorias branca, preta e parda.

Do total de óbitos em 2003, 95% foram de indivíduos maiores de 10 anos de idade (Figura 1), o que correspondeu a 31.449 óbitos. Dos indivíduos para os quais a informação sobre escolaridade foi coletada (58% dos casos), 35% tinham até quatro anos de estudo.

O percentual de óbitos de indivíduos com mais de quatro anos de estudo foi maior entre brancos e amarelos (40 e 47%, respectivamente). Entre pretos e pardos, o percentual de óbitos de indivíduos com escolaridade maior de quatro anos foi de 30 e 37%, respectivamente. De fato, segundo estimativas populacionais, o percentual de indivíduos com mais de quatro anos de estudo é maior entre brancos (77%) e pardos (61%), do que entre pretos (58%).17

A Figura 2 apresenta a proporção de óbitos por acidentes de transporte terrestre ocorridos no ano de 2003, de acordo com o sexo e o meio de transporte da vítima. A maior parte dos óbitos (31%) foi classificada na categoria Outros. Esta categoria inclui os acidentes ocorridos com ocupantes de trem, bonde, veículos de transporte especiais, veículos usados em áreas industriais ou agrícolas, entre outros, além dos acidentes não especificados. Dos 10.207 óbitos nessa categoria, 8.211 (81%) corresponderam a acidentes de transporte com veículo a motor não especificado (CID-10, V89.2) e 1.125 (11%) corresponderam a acidentes de transporte com veículo não especificado, a motor ou não (CID-10, V89.9). Daqui por diante, essa categoria será referida como acidente com veículo não especificado. Esses resultados mostram que a qualidade dos dados de mortalidade por acidentes e violências ainda tem muito a avançar: muitas declarações de óbito ainda não são preenchidas de maneira adequada, o que dificulta o entendimento da ocorrência e, conseqüentemente, o desenvolvimento de medidas para sua prevenção.

 

 

Pedestres constituíram a segunda categoria com maior número de óbitos (30%), seguidos dos ocupantes de automóvel (19%) e motocicleta (13%). As demais categorias combinadas (ocupantes de bicicleta e veículos de transporte pesado, caminhonete, ônibus e triciclo) corresponderam ao restante dos óbitos (7%). Para o sexo feminino, a principal causa de óbito foram os atropelamentos (37%). Para o masculino, observou-se o maior número de óbitos na categoria Outros, formada, principalmente, pelos óbitos por acidente com veículo não especificado. A proporção de óbitos por acidentes de bicicleta, motocicleta e veículos de transporte pesado foi expressivamente maior (duas vezes ou mais) entre os homens do que entre as mulheres (Figura 2).

A Tabela 2 mostra a mortalidade proporcional por acidentes de transporte terrestre segundo o meio de transporte e a faixa etária, para cada sexo. Entre crianças de 0 a 14 anos e idosos maiores de 60 anos, independentemente do sexo, o atropelamento foi a primeira causa de óbito, correspondendo a cerca de 50% do total de óbitos; a segunda causa mais freqüente foi o acidente com veículo não especificado (Outros); e a terceira, o acidente com automóvel. As demais causas, combinadas, corresponderam a menos de 12% dos óbitos. Os acidentes com motocicleta representaram menos de 3% dos óbitos nessas faixas etárias.

 

 

Nas faixas de 15 a 19 anos e de 20 a 39 anos de idade, a primeira causa mortis foi o acidente com veículo não especificado. O atropelamento passou a ser a segunda causa de óbito nessas faixas etárias. A terceira causa foi o acidente com automóvel, que contribuiu com cerca de 20% dos óbitos entre os homens e 25% dos óbitos entre as mulheres. A quarta causa foi o acidente de motocicleta, que passou a ter uma contribuição maior nessas faixas etárias: em torno de 21% dos óbitos entre homens e de 12% entre mulheres. As demais causas, combinadas, corresponderam a menos de 9% do total de óbitos.

Na faixa de 40 a 59 anos de idade, o atropelamento já foi a primeira causa de morte. Sua contribuição caiu para 38% dos óbitos no sexo feminino e 32% no sexo masculino. A segunda causa foi o acidente com veículo não especificado, representando cerca de 30% dos óbitos nos dois sexos, seguido do acidente com automóvel, que representou cerca de 20% dos óbitos. A quinta causa foi o acidente de motocicleta, responsável por 8% dos óbitos em homens e 5% em mulheres. As demais causas combinadas corresponderam a menos de 10% dos óbitos.

Taxas de mortalidade

Em 2003, os brasileiros morreram por acidentes de transporte a uma taxa de 19 por 100 mil habitantes.

A maior parte dos óbitos por acidente de transporte terrestre ocorreu na Região Sudeste (41%), seguida das Regiões Nordeste (22%), Sul (20%), Centro-Oeste (10%) e Norte (7%). Quando se consideram as taxas por 100 mil habitantes, entretanto, a liderança da Região Centro-Oeste (30 por 100 mil) é seguida pelas Regiões Sul (26 por 100 mil), Sudeste (19 por 100 mil), Norte (18 por 100 mil) e Nordeste (16 por 100 mil).

Os homens apresentaram risco de óbito por acidentes de transporte 4,5 vezes maior do que as mulheres: no sexo masculino, essa taxa foi de 31 por 100 mil habitantes; e, no feminino, de 7 por 100 mil habitantes. Considerando-se todos os meios de transporte combinados, brancos, pardos e pretos apresentaram as maiores taxas de mortalidade (19, 16 e 15 por 100 mil, respectivamente). Para indígenas e amarelos, essas taxas foram bem menores (7 e 5 por 100 mil, respectivamente), de modo que será dada ênfase aos resultados das categorias branca, preta e parda (Tabela 3).

 

 

As categorias de meio de transporte responsáveis pelas maiores taxas de óbitos foram pedestre (6 por 100 mil), automóvel (4 por 100 mil) e motocicleta (2 por 100 mil). As demais categorias apresentaram taxas por demais pequenas, quando comparadas com as citadas.

A mortalidade por acidentes de transporte terrestre atingiu homens e mulheres diferentemente, como aconteceu com brancos, pretos e pardos, tendo sido possível identificar uma série de peculiaridades, a depender do meio de transporte avaliado. Em 2003, os homens pretos morreram mais por atropelamento (10 por 100 mil) do que os pardos (9 por 100 mil) ou os brancos (8 por 100 mil). Já o risco de óbito como ocupante de automóvel ou por acidente com motocicleta foi maior para os homens brancos do que para os pardos e pretos (Tabela 4). As mulheres pretas, a exemplo dos homens pretos, foram identificadas com maior risco de óbito por atropelamento (3 por 100 mil) do que as brancas e pardas (2 por 100 mil). As mulheres brancas, por sua vez, estiveram sob maior risco de óbito como ocupantes de automóvel, comparadas às pretas e pardas; e as mulheres pardas, sob maior risco de óbito por acidentes de motocicleta (0,5 por 100 mil) do que as brancas (0,4 por 100 mil) e pretas (0,2 por 100 mil) (Tabela 4).

 

 

O diferencial no risco de atropelamento segundo raça/cor parece ter sido influenciado pelo nível socioeconômico, representado pela variável escolaridade. Os atropelamentos ocuparam o primeiro lugar entre as causas de óbito para as pessoas com até quatro anos de estudo. Na população branca, as pessoas com até quatro anos de estudo morreram atropeladas a uma taxa duas vezes maior do que aquelas com quatro ou mais anos de estudo. Nas populações preta e parda, essa diferença foi menor (Figura 3). Cabe ressaltar que os indivíduos brancos apresentaram maiores níveis de escolaridade (nível socioeconômico) do que os demais.

 

 

Finalmente, em razão do elevado percentual de não-preenchimento da variável escolaridade, deve-se manter cautela na interpretação desses resultados.

Evolução das taxas de mortalidade por acidentes de transporte terrestre no Brasil, de 2000 a 2003

Comparando-se três diferentes categorias de acidentes de transporte (automóvel, atropelamento, motocicleta), de modo geral, as menores taxas de mortalidade foram observadas entre os acidentes de moto e as maiores entre os atropelamentos. As taxas intermediárias corresponderam aos acidentes com ocupantes de outros veículos (Figura 4).

 

 

Também foi bastante evidente o diferencial das taxas de mortalidade por raça/cor. A taxa de mortalidade por atropelamento foi bastante semelhante entre pretos e pardos; e maior nesses dois grupos, em relação a brancos, durante todo o período analisado. A taxa de mortalidade por acidentes com ocupantes de outros veículos manteve-se, ao longo do período, sempre maior na população branca, comparada à dos pardos e pretos. Para os acidentes de motocicleta, a evolução ao longo do período foi semelhante para brancos e pardos, que sempre apresentaram taxas maiores do que as observadas entre os pretos (Figura 4).

Evolução das taxas entre 1980 e 2003

A tendência das taxas padronizadas de mortalidade por acidentes de transporte terrestre no Brasil, para ambos os sexos, foi variável. A taxa de mortalidade por atropelamento cresceu desde 1980; a partir de 1998, porém, apresentou declínio importante. O mesmo ocorreu com os acidentes de automóveis e outros não especificados, cujas taxas declinaram, principalmente na década de 90, tendência que se acentuou e coincidiu com a implantação do Código de Trânsito Brasileiro em 1998. Esse fenômeno foi mais evidente em Regiões como o Sul e o Sudeste, onde o Código foi melhor implantado.12 Seguindo tendência oposta, as taxas de mortalidade por acidente com motocicleta cresceram de uma taxa praticamente nula em 1980, até 4,0 e 0,5 por 100 mil habitantes em 2003, para os sexos masculino e feminino, respectivamente. A faixa etária que mais morreu por acidente de motocicleta foi a de 20 a 29 anos. Observou-se, também, uma grande diferença na magnitude das taxas de mortalidade entre homens e mulheres. As taxas para os atropelamentos foram cerca de 3 a 4 vezes maiores entre homens do que entre mulheres. As taxas para os ocupantes de veículos foram de 3,5 a 7,5 vezes maiores entre os homens do que entre as mulheres. Para os acidentes de motocicleta, as taxas entre homens chegaram a ser 17 vezes as apresentadas pelas mulheres (Figura 5).

 

 

Discussão

O presente estudo mostrou a utilização de dados provenientes de sistemas de informações existentes – neste caso, o SIM e o do IBGE – para o diagnóstico de situação de saúde da população brasileira quanto à mortalidade por acidentes de transporte terrestre. A análise de tendência permitiu, ainda, o acompanhamento da evolução das taxas de mortalidade por esses eventos no decorrer de 14 anos, período em que se implantou o novo Código de Trânsito Brasileiro e em que a frota de motocicletas cresceu, principalmente em áreas urbanas, como meio de transporte mais rápido e econômico.13 A análise da evolução dessas taxas por raça/cor e escolaridade, além dos meios de transporte utilizados pelas vítimas, pode proporcionar, ainda, a avaliação da efetividade de intervenções específicas, ou, ao menos, a geração de hipóteses quanto a essa efetividade, à semelhança do observado com a implantação do Código de Trânsito Brasileiro.

Os acidentes de transporte terrestre são, em grande parte, previsíveis e passíveis de prevenção. Constituem, portanto, um problema suscetível a análise racional e intervenções. A análise da situação de saúde pode auxiliar no planejamento das ações e enfrentamento da questão. A prevenção de acidentes é um tema de Saúde Pública, cujas ações devem contemplar a articulação entre diversos setores. Estudos sobre esse tema, melhoria e integração das bases de dados e avaliação das intervenções são algumas inicitivas a serem estimuladas, para subsidiar políticas públicas com planos estratégicos nacionais, a exemplo do desenvolvimento de parcerias entre os setores público e privado, para o adequado financiamento e a necessária prestação de contas do emprego dos recursos e das ações realizadas.1

Torna-se fundamental a continuidade da implantação do Código de Trânsito Brasileiro, o qual se mostrou efetivo, embora ainda não tenha sido devidamente implantado em todas as macrorregiões do País.12 Também é importante seu aprimoramento e atualização para o enfrentamento de novas realidades, com o aprofundamento do processo educativo dos condutores e pedestres e a fiscalização rigorosa do uso do álcool, de cintos de segurança e do respeito aos limites de velocidade, entre outras medidas a serem tomadas.

O surpreendente crescimento das taxas de mortalidade entre jovens condutores de motocicleta requer ações urgentes. Parcerias do poder público com as entidades de condutores – em particular, com as associações de motoboys – devem promover a adoção de medidas trabalhistas e, principalmente, educativas, para mudar comportamentos.

Finalmente, a vigilância de acidentes de transporte deve ser aperfeiçoada, especialmente no seu papel de defesa, atraindo a atenção dos gestores públicos para o problema e subsidiando a articulação entre o atendimento pré-hospitalar e uma resposta ágil e qualificada da assistência hospitalar de urgência e sua retaguarda. A melhor contribuição do setor Saúde está na prevenção desses eventos e na promoção de ações intersetoriais e integradas dos parceiros envolvidos.

 

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17. McCullagh P, Nelder JA. Generalized linear models. 2nd ed. London: Chapman & Hall; 1989

 

 

Endereço para correspondência
Ministério da Saúde,
Secretaria de Vigilância em Saúde,
Departamento de Análise de Situação de Saúde,
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Brasília-DF.
CEP: 70058-900
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