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Epidemiologia e Serviços de Saúde

versão impressa ISSN 1679-4974versão On-line ISSN 2237-9622

Epidemiol. Serv. Saúde v.16 n.4 Brasília dez. 2007

http://dx.doi.org/10.5123/S1679-49742007000400001 

EDITORIAL

 

Estudos epidemiológicos na perspectiva do aumento da vulnerabilidade dos sistemas sócio-ambientais brasileiros

 

 

Paulo Chagastelles Sabroza

Membro do Comitê Editorial

 

 

Os temas analisados nos três artigos originais e nos três artigos de revisão apresentados neste número da revista Epidemiologia e Serviços de Saúde refletem a complexidade dos padrões de morbimortalidade da população brasileira, que continua impondo crescentes desafios ao Sistema Único de Saúde (SUS).

Durante as ultimas décadas, o modelo da Transição Epidemiológica proposto por Onran1 foi uma referência central para a interpretação desses padrões, contribuindo para a consolidação da hegemonia de uma ideologia cientifica que procurou sempre relacionar a permanência de determinados problemas de saúde, como as doenças transmissíveis, com o insuficiente desenvolvimento econômico e social.

Esse modelo pressupunha o desenvolvimento socioeconômico como um processo histórico linear, que se realizaria do mesmo modo em todas as formações sócio-espaciais, embora com início e velocidade distintos. A partir dele, seria possível aplicar uma tipologia que classificasse todas essas formações, de acordo com sua situação, tendo como referência o modelo daqueles países capitalistas europeus que iniciaram sua industrialização, urbanização e transição demográfica ainda na primeira metade do Século XIX.

Os diferentes padrões de morbimortalidade seriam, portanto, característicos de distintos estágios do processo de desenvolvimento. Diversos autores discutiram a adequação desse modelo teórico para descrever e comparar as condições de saúde de sociedades com determinantes históricos e geográficos muito diferentes; todavia, as relações entre o desenvolvimento das forças produtivas e a melhoria progressiva das condições de vida e saúde pareciam inquestionáveis.

No Brasil, onde a grande redução da mortalidade por doenças transmissíveis ocorreu principalmente no período entre as décadas de 1950 e 1970 do século passado, acompanhando o intenso fluxo de pessoas das áreas rurais para as cidades, um padrão particular de morbimortalidade pode ser bem reconhecido: junto com a acentuada diminuição dos óbitos por doenças infecciosas, observou-se grande aumento, proporcional e absoluto, das mortes por doenças cardiovasculares e por causas externas.2

Além disso, pode-se constatar que a redução da mortalidade por doenças transmissíveis foi devida, principalmente, à diminuição dos óbitos por diarréias infecciosas e por doenças preveníveis por vacinas, sendo acompanhada pela permanência de níveis elevados de morbidade e mesmo pelo aumento da incidência de várias outras doenças desse grupo.3

Outro registro fundamental foi a evidência de que o desenvolvimento socioeconômico não eliminou as grandes desigualdades sociais e regionais do País. Ao contrário, em muitas situações, elas até se agravaram. A questão da desigualdade, refletida nas medidas de morbimortalidade, nos diferenciais de acesso aos serviços de saúde e saneamento e, principalmente, nos indicadores de educação, renda e inserção no processo de trabalho, tornou-se, justificadamente, uma categoria central nas análises que os epidemiologistas brasileiros fizeram de nossas condições de vida e saúde, no período mais recente.4

A distribuição desigual dos resultados do desenvolvimento econômico veio a ser identificada como um dos principais determinantes das condições de saúde. Entretanto, outra dimensão das complexas relações entre desenvolvimento econômico e condições de vida e saúde passou também a ter que ser considerada.

Ficou evidente que a elevada magnitude de diversas doenças transmissíveis, como o dengue, a hanseníase e a tuberculose, o surgimento de doenças emergentes, como a aids e as hantaviroses, a maior freqüência de agravos à saúde devidos à exposição a produtos tóxicos, o grande aumento da mortalidade e da prevalência de enfermidades atribuídas a padrões inadequados de consumo, como a diabetes e as doenças isquêmicas do coração, a mortandade de adultos jovens urbanos, pobres, negros e do sexo masculino por violências e a disseminação de um sentimento de insegurança e sofrimento difuso nos centros urbanos não são expressão da exclusão do processo de desenvolvimento.

Eles são os resultados da acelerada integração desigual em um modelo de desenvolvimento particularmente eficiente e perverso, que privatiza os lucros e socializa os custos, transferindo para os grupos sociais mais vulneráveis seus efeitos, muitas vezes sob a forma de mortalidade prematura, doença, incapacidade e sofrimento.

O reconhecimento de que o presente modelo de desenvolvimento intensifica e redistribui os riscos levou à necessidade de priorizar e reestruturar as ações de vigilância e de promoção da saúde, de modo a aumentar a capacidade de resposta das instituições, das organizações sociais e das pessoas diante das novas e crescentes ameaças.5

O conceito de vulnerabilidade de sistemas sócio-ambientais vem sendo proposto no sentido de ampliar nossa interpretação dos atuais perfis epidemiológicos e possibilitar uma maior capacidade de resposta aos desafios advindos das mudanças nos contextos sociais e ambientais decorrentes do processo de desenvolvimento na sua conjuntura atual.

Ao contrário dos riscos, que, nos estudos epidemiológicos, se referem aos agrupamentos de indivíduos, a vulnerabilidade sócio-ambiental é um conceito aplicado a níveis de maior organização: os grupos sociais e seus contextos sócio-ambientais. E a redução da vulnerabilidade, ou aumento da resiliência, pressupõe maior capacidade de organização e mobilização para a utilização dos recursos disponíveis e o incremento dos graus de informação dos sistemas, viabilizando projeções e análises de cenários futuros.

Esta vulnerabilidade seria, então, um importante conceito sintetizador, integrando as relações estruturais globais existentes nas sociedades com os níveis locais onde se concretizam as situações de risco.6

Nessa perspectiva, o perfil epidemiológico de países como o Brasil não se conforma a nenhuma das categorias tradicionais do modelo de transição epidemiológica, representando uma outra, onde o desenvolvimento acelerado, por incorporação de tecnologias importadas, acompanhado da persistência de grandes desigualdades sociais e territoriais, configura um padrão definido por sua aguda vulnerabilidade.

Os estudos epidemiológicos aplicados aos serviços e sistemas de saúde precisam considerar, portanto, as análises das vulnerabilidades das situações de saúde e seus contextos, além da difusão de informações que possibilitem a incorporação de inovações tecnológicas e, principalmente, de inovações sociais que contribuam para o aumento local da resiliência.

Todos os textos apresentados neste número da revista certamente contribuem para esses propósitos.

Em seu trabalho para construir uma lista de causas de mortes evitáveis, Malta a colaboradores apresentam o resultado de um debate sobre o conceito de 'Evitabilidade' e a possibilidade de elaboração, a partir dos instrumentos já disponíveis no sistema de informações, de listas e indicadores que considerem, além dos limites das técnicas, o contexto político-institucional.7

Ainda no campo da informação em saúde, o artigo de Oliveira e Souza trata da questão da qualidade da informação de mortalidade por causas externas, indicando a necessidade de complementar as informações presentes nas declarações de óbitos com dados de outros sistemas de registro. Os autores mostram como o aprimoramento da qualidade da informação poderia contribuir para uma melhor caracterização desse agravo, que pode ser considerado um dos principais indicadores da vulnerabilidade dos grupos sociais integrados de modo desigual em nossa sociedade.8

O texto de Bonolo, Gomes e Guimarães apresenta uma contribuição para a revisão do conhecimento sobre a adesão dos pacientes ao tratamento para o HIV/aids, destacando a necessidade de acompanhamento individual, suporte social e informação como modo de melhorar as condições de vida desse grupo social, particularmente vulnerável.9

O artigo de Oliveira e colaboradores apresenta os resultados da investigação epidemiológica de um primeiro foco de fasciolose identificado na Amazônia, representando, além de uma interessante contribuição para a caracterização desse tipo de estudo, uma oportunidade de evidenciar como uma situação de grande vulnerabilidade, por suas condições de saneamento precárias, possibilitou a emergência local de um novo processo infeccioso, sem que tenha ocorrido discriminação de riscos individuais em sua população.10

Finalmente, os dois artigos de revisão sobre mecanismos e monitoramento da resistência do Aedes aegypti aos inseticidas no Brasil, de Braga e Valle,11,12 discutem a necessidade de incorporação de conhecimentos atualizados sobre a fisiologia, ecologia e comportamento dos vetores, além de conhecimentos sobre os mecanismos de atuação dos inseticidas, nos processos de decisão sobre as melhores estratégias de controle do dengue. O dengue pode ser considerado a endemia que melhor expressa como o aumento das condições de vulnerabilidade nas cidades inviabilizou as ações tradicionais de controle, impondo a permanente atualização das informações científicas e a necessidade de urgentes inovações tecnológicas e sociais para aumentar a resiliência de nossos contextos sócio-ambientais urbanos.

 

Referências bibliográficas

1. Omran AR. The epidemiologic transition of the epidemiology of population change. Milbank Memorial Fund Quartely;49:509-583,1971.

2. Carmo EH, Barreto ML, Silva Jr., JB. Mudanças nos padrões de morbimortalidade da população brasileira: os desafios para um novo século. Epidemiologia e Serviços de Saúde 2003;12(2):63-75.

3. Sabroza PC, Kawa H, Campos WSQ. Doenças transmissíveis: ainda um desafio. In: Minayo MCS, org. Os muitos brasis – saúde e população na década de 80. São Paulo-Rio de Janeiro: Hucitec-Abrasco, p. 177-24, 1995.

4. Silva Jr., JB, Barros MBA, 2002. Epidemiologia e desigualdade: notas sobre a teoria e a história. Revista Panamericana de la Salud/Pan American Journal of Public Health, 12(6)

5. Freitas CM. In: Czeresnia D e Freitas CM, orgs. A Vigilância da Saúde para a Promoção da Saúde. Rio de Janeiro: Fiocruz, p. 141-159, 2003

6. Porto MFS. Uma Ecologia Política dos Riscos. Rio de Janeiro: Fiocruz, p.163, 2007.

7. Malta DC, Duarte EC, Almeida MF, Dias MAS, Morais Neto OL, Moura L, Ferraz W, Souza MFM. Lista de causas de morte evitáveis por intervenções do Sistema Único de Saúde do Brasil. Epidemiologia e Serviços de Saúde 2007;16(4):233- 244.

8. Oliveira MLC, Souza LAC. Causas externas: investigação sobre a causa básica de óbito no Distrito Federal, Brasil. Epidemiologia e Serviços de Saúde 2007;16(4):245-250.

9. Bonolo FP, Gomes RRFM, Guimarães MDC. Adesão à terapia anti-retroviral (HIV/aids): fatores associados e medidas de adesão. Epidemiologia e Serviços de Saúde 2007;16(4):251-259.

10. Oliveira AA, Nascimento AS, Santos TAM, Carmo GMI, Dimech CPM, Alves RMS, Reis F, Garcia MHO, Santos DA, Aguiar GPR, Albuquerque BC, Carmo EH. Estudo da prevalência e fatores associados à fasciolose no Município de Canutama, Estado do Amazonas, Brasil. Epidemiologia e Serviços de Saúde 2007;16(4):251-259.

11. Braga IA, Valle D. Aedes aegypti: inseticidas, mecanismos de ação e resistência. Epidemiologia e Serviços de Saúde 2007;16(4):279-293.

12. Braga IA, Valle D. Aedes aegypti: vigilância, monitoramento da resistência e alternativas de controle no Brasil. Epidemiologia e Serviços de Saúde 2007;16(4):295-302.