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Epidemiologia e Serviços de Saúde

versão impressa ISSN 1679-4974versão On-line ISSN 2237-9622

Epidemiol. Serv. Saúde v.16 n.4 Brasília dez. 2007

http://dx.doi.org/10.5123/S1679-49742007000400002 

ARTIGO ORIGINAL

 

Lista de causas de mortes evitáveis por intervenções do Sistema Único de Saúde do Brasil

 

List of avoidable causes of deaths due to interventions of the Brazilian Health System

 

 

Deborah Carvalho MaltaI; Elisabeth Carmen DuarteII; Márcia Furquim de AlmeidaIII; Maria Angélica de Salles DiasIV; Otaliba Libânio de Morais NetoV; Lenildo de MouraVI; Walter FerrazIV; Maria de Fatima Marinho de SouzaVI

ISecretaria de Vigilância em Saúde, Ministério da Saúde, Brasília-DF, Brasil. Universidade Federal de Minas Gerais Belo Horizonte-MG, Brasil
IIFaculdade de Medicina, Universidade de Brasília, Brasília-DF, Brasil
IIIFaculdade de Saúde Pública, Universidade de São Paulo, São Paulo-SP, Brasil
IVSecretaria Municipal de Saúde, Prefeitura Municipal de Belo Horizonte, Belo Horizonte-MG, Brasil
VSecretaria de Vigilância em Saúde, Ministério da Saúde, Brasília-DF, Brasil. Universidade Federal de Goiás, Goiânia-GO, Brasil
VISecretaria de Vigilância em Saúde, Ministério da Saúde, Brasília-DF, Brasil

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

As causas de mortes evitáveis ou reduzíveis são definidas como aquelas preveníveis, total ou parcialmente, por ações efetivas dos serviços de saúde que estejam acessíveis em um determinado local e época. Essas causas devem ser revisadas à luz da evolução do conhecimento e tecnologia para prática da atenção à saúde. Portanto, este estudo está fundamentado em uma revisão da literatura referente à base conceitual e empírica das listas de causas de morte evitáveis, publicadas entre 1975 e 2004, e nas reflexões de um grupo de trabalho organizado pelo Ministério da Saúde do Brasil. O artigo propõe duas listas brasileiras desses eventos – para menores de cinco anos; e para pessoas com cinco ou mais anos de idade –, tendo por referência a tecnologia disponível no Sistema Único de Saúde (SUS). Embora esse debate se encontre em estágio inicial, seu aprofundamento parece promissor para o desenvolvimento metodológico do monitoramento e avaliação de desempenho da atenção à saúde no Brasil.

Palavras-chave: causas de morte evitáveis; desempenho dos serviços de saúde; evitabilidade; mortes em menores de cinco anos de idade.


SUMMARY

The avoidable or reducible causes of death are defined as those totally or partially preventable by health service effective actions, accessible in a determined place and time. These causes must be reviewed considering the available knowledge and technology for the practice of health care. Thus, this study is based upon a revision of literature that refers to the conceptual and empirical basis of the list of avoidable causes of death published between 1975 and 2004, and on the debate of a working-group organized by the Brazilian Ministry of Health. The paper proposes two Brazilian lists of these events – for individuals aged <5 years and five years and above – based on the available technology in the Brazilian Health System (SUS). Yet, it is on an initial stage. Although in its initial stage, the deepening of this debate seems to be promising for the methodological development of the monitoring and evaluation of health care performance in Brazil.

Key words: avoidable causes of deaths; health care impact; under five years mortality.


 

 

Introdução

Ao longo do tempo, o debate sobre o desempenho dos serviços de saúde na prevenção de óbitos em populações humanas sempre foi instigante. Desde a década de 1960, McKeown já defendia que o cuidado em saúde explicava apenas parte da redução da mortalidade das populações e não justificava completamente, por exemplo, o enorme declínio da mortalidade da tuberculose ao longo de um século (1848 a 1954).1 Esse declínio seria decorrente mais da melhoria das condições de vida do que da introdução dos antibióticos e da imunização, uma vez que esses últimos eventos ocorreram posteriores à redução observada da doença. Mais recentemente, diferentes autores não deixam de admitir o papel protetor da melhoria das condições socioeconômicas; porém, defendem que há inegáveis contribuições a serem imputadas ao setor Saúde, quanto às mudanças positivas atuais e históricas do quadro de morbimortalidade das populações.2,3 Mensurar esse impacto, entretanto, persiste como um grande desafio de objetivo metodológico.

O conceito de 'mortes evitáveis' foi proposto por diferentes autores. Malta & Duarte o revisaram, bem como seu uso como ferramenta útil para o monitoramento do impacto das ações de saúde sobre o risco de morte das populações.4 Suárez-Varela e colaboradores conceituam morte evitável como "aquelas causas de óbitos cuja ocorrência está intimamente relacionada à intervenção médica",5 sugerindo que determinados óbitos não deveriam ocorrer, por ser possível sua prevenção e/ou o tratamento do agravo ou condição que o determina. Rutstein, o precursor desse debate, trabalhou sobre essa temática desde a década de 1970, na Universidade de Harvard, Estados Unidos da América (EUA). Ele fundou o Working Group on Preventable Manageable Diseases e propôs uma lista com cerca de 90 causas que poderiam ser evitáveis na presença de serviços de saúde efetivos.6 Rutstein e colaboradores desenvolveram, assim, uma metodologia para mensuração da qualidade do cuidado médico, pela qual se contabilizam os óbitos desnecessários ou preveníveis. Nessa perspectiva, esses autores classificam as causas em: a) indicadores claros da qualidade da assistência; b) indicadores com uso limitado quanto à mensuração da qualidade da assistência; e c) indicadores que demandam melhor definição e estudos especiais.6

Diversos estudos posteriores aplicaram o conceito de mortes evitáveis por intervenção médica e, apoiados nos trabalhos de Rutstein, propuseram listas de causas de mortes em conformidade com novos referenciais, avanços na intervenção médica e realidades locais. Entre estes, destacam-se os estudos de Holland – "European Community Atlas" –, que estimularam um grande número de pesquisas em diversos países e continentes (Europa, Ásia e Oceania).3

Assim, a morte evitável pode derivar, em algum grau, indicadores sensíveis à qualidade da atenção à saúde prestada pelo sistema de saúde, que, por sua vez, podem acarretar a tomada de medidas de resultado ou de impacto dessa atenção. Sob esse ponto de vista, o óbito evitável pode ser compreendido, circunstancialmente, como um "evento sentinela", constituindo-se em um dos métodos para vigilância à saúde proposto por Rutstein e colaboradores.6 Segundo Samico e colaboradores, "os eventos sentinela apresentam-se como definidores de situações evitáveis, indicando que a qualidade da atenção deva ser melhorada, assim como determina que a investigação do ocorrido deva ser seguida de intervenções sobre possíveis setores socioeconômicos, ambientais, culturais ou genéticos que possam ser determinantes da situação encontrada".7

Além da pertinência do conceito de 'mortes evitáveis' ou 'evitabilidade', em si, seu uso pelas metodologias de monitoramento e avaliação dos serviços de saúde parece igualmente apropriado. Essas metodologias beneficiam- se da objetividade, oportunidade, facilidade e disponibilidade dos indicadores de mortes evitáveis, permitindo, por exemplo, analises de suas tendências temporais e comparações de suas probabilidades estimadas entre regiões e Municípios.

Apesar de extensa produção científica sobre o tema em nível mundial, no Brasil, essa produção é ainda limitada, carece de sistematização conceitual e demanda revisão das listas de causas de morte evitáveis, sob o ponto de vista do contexto nacional do Sistema Único de Saúde (SUS).2,4,6,8

Destaca-se, dessa forma, a necessidade de se aprofundar a temática da evitabilidade e a busca de consenso para a construção de uma lista de causas de morte com essa característica, no contexto brasileiro. Esse processo facilitaria a adoção de mecanismos de monitoramento do desempenho segundo o nível de complexidade da atenção à saúde (básica, média e alta) e o nível da prevenção (primária, secundária ou terciária) a realizar. Seus resultados poderiam nortear as ações e políticas públicas de saúde, o desenvolvimento de estudos acadêmicos com desejável grau de comparabilidade e a aplicação desse tipo de metodologia no cotidiano dos serviços de saúde.

Sob a coordenação da Secretaria de Vigilância em Saúde do Ministério da Saúde do Brasil, especialistas de áreas relevantes debateram o tema e sistematizaram conceitos e metodologias com o propósito de construir uma lista brasileira de mortes evitáveis, segundo grupos etários. O presente artigo sumariza esse processo e tem por objetivo apresentar uma lista de causas de mortes (total ou parcialmente) preveníveis por ações do setor da Saúde no Brasil, todavia passível de debate e validação pela sociedade e suas instituições competentes.

 

Metodologia

Dois temas foram objeto de debate e definições a priori:

a) Grupos de idade a serem abordados

Em relação às listas de mortes evitáveis em menores de um ano de idade, destacam-se aquelas propostas por Ortiz e por Wigglesworth para a mortalidade perinatal.9,10 Observou-se que as listagens internacionais tendem a apoiar-se na realidade local e valorizar, sobremaneira, a mortalidade perinatal. Para a realidade brasileira, tanto a mortalidade neonatal quanto a pós-neonatal foram consideradas relevantes, além de refletir importantes desigualdades regionais. Também foi destacada a mortalidade de menores de cinco anos de idade, com grande poder discriminatório da qualidade da atenção à saúde da criança. Assim, o grupo optou pela inclusão de todas as causas de morte evitáveis entre os menores de cinco anos de idade por ações efetivas do setor da Saúde brasileira. Além disso, foi necessário o estabelecimento de um limite superior de idade para as mortes evitáveis. A maioria dos estudos desenvolvidos nas décadas de 1980 e 1990 adotou a idade de 65 anos como limite superior de evitabilidade.8,11 Trabalhos mais recentes têm adotado os 75 anos de idade como esse limite.2,12 Em sua conclusão acerca do debate desse aspecto, sob a perspectiva brasileira e a revisão das expectativas de vida, diferenciais de gênero e entre regiões, o grupo optou pela abordagem de cinco a 75 anos de idade como limite superior para mortes evitáveis.

b) Perspectiva da atenção à saúde adotada como referencia para a lista de causas de mortes evitáveis

No enfoque de mortes evitáveis, o grupo considerou como causas de morte aquelas cuja evitabilidade é dependente de tecnologia disponível no Brasil, de tecnologia acessível pela maior parte da população brasileira ou de tecnologia ofertada pelo Sistema Único de Saúde. Opções distintas quanto a esse tema poderiam levar a resultados variados e, conseqüentemente, a intervenções diferenciadas. Considerando-se a perspectiva de tomada de decisão e orientação do Ministério da Saúde do Brasil, adotou-se, para esse momento, o referencial da tecnologia disponível no SUS, independentemente de sua acessibilidade ou de sua disponibilidade em outros setores (prestadores de serviços privados). Dessa forma, excluíram-se as causas de morte evitáveis por ações não preconizadas ou disponíveis pelo sistema (por exemplo, optou-se por não incluir óbitos por varicela, uma vez que a vacina não está incluída no calendário do Programa Nacional de Imunização).

A partir dessas definições, o debate e a busca de consenso sobre a lista de causas de morte evitáveis pela atenção à saúde desenvolveu os seguintes processos. Inicialmente, realizou-se extensa revisão de literatura, para a atualização do tema, de conceitos e de listas existentes.4 A seguir, foi definido um grupo de especialistas no tema ou em áreas relevantes, que incluiu: epidemiologistas; sanitaristas; enfermeiros; médicos (clínicos, oncologistas, pediatras, neonatologistas, entre outros); demógrafos; estatísticos; gestores do Ministério da Saúde; gestores da esfera estadual e da esfera municipal; especialistas em avaliação em saúde; bioquímicos; especialistas em violências; e outros. Em duas oportunidades, o grupo se reuniu presencialmente, em oficinas de trabalho, para debater os conceitos envolvidos e propor uma lista de causas de morte evitáveis, apresentada aqui, mais adiante.

Em 2004, realizou-se a primeira oficina de trabalho sobre morte evitável. Ela aconteceu no bojo da programação da 4a Mostra de Experiências Bem-sucedidas de Prevenção e Controle de Doenças (4a EXPOEPI) e teve como produto a validação da revisão de literatura apresentada pela equipe de condução, além de um consenso sobre aspectos metodológicos para os desdobramentos da proposta. Naquela ocasião, foi constituído um grupo de trabalho a ser coordenado pela Secretaria de Vigilância em Saúde do Ministério da Saúde.

Após trabalhos realizados a distância (não-presenciais), o grupo foi convocado pela Secretaria para uma segunda oficina de trabalho, realizada durante a 5a EXPOEPI, em 2005. O principal produto dessa segunda oficina foi a primeira versão de indicadores de morte evitáveis, materializados em uma proposta de lista brasileira de mortes evitáveis.

Conforme foi referido anteriormente, trabalhou-se na construção de listas para dois subgrupos de idade, a saber: menores de cinco anos de idade; e de cinco ou mais anos de idade. Para o subgrupo de mortes em crianças menores de cinco anos de idade, foram tomados como referência os seguintes trabalhos de causas de mortes evitáveis selecionados: o de Ortiz; e o de Tobias & Jackson.9,12 Para a população de cinco a 75 anos de idade, adotou-se a lista de Tobias & Jackson como referência.12

A escolha da lista de Ortiz, mais conhecida como "Lista da Fundação Seade", elaborada por técnicos da Fundação Sistema Estadual de Análise de Dados de São Paulo, deve-se ao fato de ser utilizada por equipes locais de forma rotineira, e por já estar inserida na Programação Pactuada Integrada (PPI) da Atenção Básica à Saúde.9,13 Recentemente, pesquisadores e gestores, entre os quais o próprio autor, identificaram algumas dificuldades quanto a sua aplicabilidade, que demandam sua revisão.14 A lista de Ortiz inclui como evitáveis grande parte (cerca de 70%) dos óbitos que ocorrem entre menores de um ano de idade no território brasileiro, o que reduz sua especificidade e poder discriminatório.

A opção pela lista de Tobias & Jackson deu-se em função da revisão realizada por Malta & Duarte. Estas autoras identificam que essa lista adota todas as faixas etárias, discrimina indicadores sensíveis às intervenções em saúde, nos diferentes níveis de prevenção (primária, secundária e terciária), além de trabalhar com número relativamente mais reduzido de causas para as quais existem maiores evidências da sua evitabilidade relacionadas às intervenções em saúde.4,9,12

Nas oficinas de trabalho do grupo de especialistas, foram comparadas as listas de Tobias & Jackson e de Ortiz, o que possibilitou o aprofundamento das condições de escolha dos indicadores a serem adotados, especialmente para o grupo infantil.9,12

O grupo de especialistas recebeu as listas comparativas previamente. Durante a oficina de trabalho, algumas diretrizes de ação foram acordadas e nortearam as escolhas das condições que comporiam a lista brasileira de mortes evitáveis. As diretrizes acordadas foram:

a) revisão e pactuação de uma lista de evitabilidade baseada na realidade brasileira e que, entretanto, preservasse certo grau de comparabilidade internacional;

b) inclusão de óbitos evitáveis à luz da tecnologia disponível no Sistema Único de Saúde do Brasil;

c) priorização de causas de óbito que fossem mais sensíveis à atenção e ao cuidado à saúde;

d) construção de uma lista que possibilitasse estudos voltados à realidade do Brasil, suas macrorregiões e Estados, e também dos Municípios, que evitasse recortes não disponíveis nos sistemas de informações sobre mortalidade, exceto quando absolutamente indispensáveis;

e) para o caso do óbito infantil, recomendação da investigação do óbito para melhor definição de sua evitabilidade;

f) para a escolha dos indicadores, consideração da freqüência (incidência) do óbito no Brasil, que valorizasse as causas mais incidentes;

g) mesmo assim, inclusão de eventos sentinela – eventos cuja ocorrência, mesmo que com baixa incidência, chame a atenção sobre falhas na assistência (por exemplo, doenças de notificação compulsória, óbito por causas maternas) –; e

h) inclusão, como elemento analítico, das causas mal-definidas de óbitos, para (i) aferir a qualidade das informações sobre mortalidade e de possíveis vieses de informação nas análises das causas evitáveis e (ii) construir um indicador que, per se, avaliasse a qualidade da assistência a partir – especialmente – da discriminação das causas mal-definidas de óbitos com e sem assistência médica na base de dados.

 

Resultados

A partir dessas diretrizes estabelecidas, da comparação das listas de referência – de Ortiz e de Tobias & Jackson – e à luz do conhecimento atual sobre o potencial de intervenção do SUS, o grupo de trabalho propõe as seguintes listas de mortes evitáveis, segundo grupo etário:

Lista de causas de mortes evitáveis por intervenções no âmbito do Sistema Único de Saúde do Brasil para menores de cinco anos de idade (Figura 1):

 

 

1. Causas evitáveis

1.1 Reduzíveis por ações de imunoprevenção

1.2 Reduzíveis por adequada atenção à mulher na gestação e parto e ao recém-nascido

1.2.1 Reduzíveis por adequada atenção à mulher na gestação

1.2.2 Reduzíveis por adequada atenção à mulher no parto

1.2.3 Reduzíveis por adequada atenção ao recém-nascido

1.3 Reduzíveis por ações adequadas de diagnóstico e tratamento

1.4 Reduzíveis por ações adequadas de promoção à saúde, vinculadas a ações adequadas de atenção à saúde

2. Causas mal-definidas

3. Demais causas (não claramente evitáveis)

Lista de causas de mortes evitáveis por intervenções no âmbito do Sistema Único de Saúde do Brasil para faixas etárias de cinco a 75 anos (Figura 2):

 

 

1. Causas evitáveis

1.1 Reduzíveis por ações de imunoprevenção

1.2 Reduzíveis por ações adequadas de promoção à saúde, prevenção, controle e atenção às doenças de causas infecciosas

1.3 Reduzíveis por ações adequadas de promoção à saúde, prevenção, controle e atenção às doenças não transmissíveis

1.4 Reduzíveis por ações adequadas de prevenção, controle e atenção às causas de morte materna

1.5 Reduzíveis por ações intersetoriais adequadas de promoção à saúde, prevenção e atenção às causas externas (acidentais e violências)

2. Causas mal-definidas

3. Demais causas (não claramente evitáveis)

As listas de causas e códigos dos respectivos capítulos, agrupamentos, categorias e subcategorias da Classificação Estatística Internacional de Doenças e Problemas Relacionados à Saúde, Décima Revisão – CID-10 –, encontram-se descritas nas figuras 1 e 2.15

 

Discussão

Os indicadores de evitabilidade podem ser importantes indicadores de efetividade dos serviços de saúde. Seu acompanhamento permite levantar hipóteses sobre a performance desses serviços em uma determinada área geográfica.4 Os processos de trabalho aqui relatados avançaram no sentido de fortalecer o debate sobre os instrumentos para avaliação e monitoramento do setor da Saúde no Brasil e culminaram na construção de listas de causas de morte evitáveis por ações dos serviços vinculados ao Sistema Único de Saúde, a serem testadas, validadas e aprimoradas em estudos futuros. O exercício descrito neste artigo aponta, entretanto, para a necessidade de continuidade e aperfeiçoamento do debate das causas de mortes evitáveis pela ação da Saúde.

Nesse debate, uma questão que merece aprofundamento é a da opção por adotar, como eventos evitáveis, apenas aqueles reduzíveis por tecnologias disponíveis no SUS. Essa opção forçou a exclusão de algumas causas de óbitos cuja ocorrência não é aceitável considerando-se o conhecimento tecnológico atual, caso dos óbitos por varicela. Esse aspecto, que deve ser analisado em listagens complementares futuras, pode, inclusive, induzir políticas públicas de saúde corretivas.

Outra questão discutida pelo grupo de especialistas, que também merece aprofundamento mas que não chegou a consenso, foi a da necessidade – ou não – da definição de pontos de corte segundo o peso dos recém-nascidos, para posterior consideração da evitabilidade do óbito infantil. Ou seja, discutiu-se a relevância da definição da viabilidade do recém-nascido segundo o peso ao nascer, como critério antecedente à classificação do óbito segundo a evitabilidade da causa da morte. Dessa forma, optou-se pela realização de estudos de sensibilidade e especificidade de indicadores de evitabilidade construídos para menores de cinco anos de idade, adotando-se diferentes pontos de corte do peso ao nascer como critério inicial de viabilidade do recém-nascido, a saber: nenhum ponto de corte; >750g; >1000g; e >1500g.

A inclusão de causas relacionadas ao óbito fetal também merece uma abordagem e discussão mais aprofundada, uma vez que a baixa qualidade dos dados e a existência de subnotificação importante limitam seu uso na rotina do monitoramento e avaliação em saúde no Brasil. Quanto às malformações congênitas, destaca-se o fato de ter sido feita a opção pela inclusão tão-somente dos óbitos por síndrome de Down em menores de cinco anos de idade como óbitos evitáveis, tendo sido consenso do grupo a alta vulnerabilidade dessa morte às ações da Saúde. Tomando como exemplo as malformações congênitas, vale ressaltar que as listas de mortes evitáveis propostas não pretendem ser exaustivas e, portanto, abranger a totalidade das causas que sejam – em algum grau – evitáveis por ações de saúde. Optou-se pela inclusão de causas claramente evitáveis por algum nível de prevenção. Portanto, a observação de que determinada causa não foi contemplada por essas listas não implica que a mesma não seja, em alguma medida, evitável por ações de saúde, e sim que ela não atendeu aos critérios selecionados para sua inclusão.

Para a população de cinco anos ou mais de idade, adotou-se como referência a lista proposta de Tobias & Jackson, não sem antes modificá-la com o objetivo de adequá-la à realidade brasileira. Foram excluídas da listagem original dos autores, para a população de cinco a menores de 75 anos de idade, as causas de morte constantes na lista proposta por Tobias que são mais prevalentes e/ou relevantes em menores de cinco anos, tais como prematuridade, trauma ao nascimento, anomalia congênita e afecções e infecções do período perinatal. Para análise das causas mais freqüentes em maiores de cinco anos de idade, o grupo sugere o uso das seguintes faixas etárias: 5-9; 10-19; 20-39; 40-59; e 60-74 anos.

Finalmente, o grupo apontou a necessidade de avançar os debates sobre essas duas listas – para menores de cinco anos de idade; e para maiores de cinco até 75 anos de idade –, quanto a:

a) classificar as causas de morte reduzíveis segundo grau de evitabilidade, identificando-se eventos evitáveis em sua totalidade – que denunciariam, mais diretamente, o precário desempenho dos serviços de saúde – e eventos apenas parcialmente evitáveis por ações efetivas dos serviços de saúde;

b) classificar e ponderar essas causas de morte segundo a complexidade da atenção à saúde (básica, média e alta) e nível da prevenção (primária, secundária ou terciária) envolvidos em sua evitabilidade, permitindo a definição de estratégias concretas de intervenção;

c) refinar a capacidade de identificação do evento evitável, não apenas baseada na causa da morte mas também em outros fatores, modificadores do risco de morte – como idade e sexo (por exemplo, para as doenças crônicas, especificar o grau de evitabilidade segundo faixas de idade e sexo) –; e

d) proceder a estudos de validação e reprodutibilidade da presente lista como instrumento de avaliação da atenção à saúde.

No que diz respeito à análise desses indicadores de evitabilidade, desenvolvimentos futuros visam, ainda, à superação de um número de dificuldades metodológicas que se apresentam em processos de avaliação e monitoramento da performance do setor da Saúde no Brasil. Entre elas, destacam-se:

- Diversidade das listas de causas de mortes evitáveis existentes na literatura, refletindo diferentes abordagens sobre o tema e conceitos de morte evitável, que dificultam a comparabilidade de resultados.

- Diversidade na definição do que seja 'cuidado médico', bem como nas atribuições a serem conferidas a esse cuidado médico (segundo definição adotada) para que se promova a melhoria dos indicadores de evitabilidade.

- Dificuldades para a interpretação das tendências de mortalidade evitável, devendo-se tomar em conta fatores contextuais, de risco e protetores que podem interferir na incidência e gravidade dessas causas de doença, independentemente da performance do setor da Saúde, especialmente em análises de períodos prolongados.2

- Diversidade quanto à qualidade e cobertura do registro dos eventos de interesse no país. Muitos países não contam com sistemas de informações sobre mortalidade adequados, o que dificulta ou mesmo impede a comparabilidade e acompanhamento desses indicadores de evitabilidade.

Sobre esta última questão, desde 1975, o Brasil dispõe do Sistema de Informações sobre Mortalidade (SIM), que vem ganhando cobertura e qualidade ao longo das décadas: dados de 2003 mostram uma razão de 83% entre os óbitos captados pelo SIM e aqueles estimados pela Fundação Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Nas Regiões Sudeste e Sul, os dados são adequados e essa razão encontra-se acima de 95%. Persistem, contudo, problemas importantes em localidades das Regiões Norte e Nordeste, para as quais a cobertura do SIM ainda é insuficiente. Da mesma forma que a cobertura, também a qualidade dos registros de causas de óbitos distribui-se de maneira heterogênea no Brasil: todavia, observa-se um total de 13% de causas mal-definidas para o anos de 2003.16 São fatores a serem considerados quando da comparabilidade dos indicadores de evitabilidade segundo tempo e local, na discussão sobre potenciais vieses de informação.

A despeito das dificuldades conceituais e metodológicas, os estudos sobre evitabilidade podem se tornar importantes ferramentas para os gestores da Saúde, permitindo-lhes o monitoramento das tendências da mortalidade das causas evitáveis pela atenção à saúde, a identificação de eventos sentinelas sensíveis à qualidade dessa atenção, eventualmente objeto de investigação e medidas corretivas. A partir desse processo, é possível levantar hipóteses acerca do distanciamento entre o desempenho esperado e observado do setor da Saúde em determinado espaço geográfico, que auxiliam tanto na identificação de áreas prioritárias de investigação e correção como na de situações exitosas, dignas de serem apreendidas e até reproduzidas.

Na esfera internacional, esse tipo de abordagem permite a classificação de países quanto à performance de seus sistemas nacionais de saúde para superar o desafio das mortes evitáveis, além de possibilitar comparações sobre seus desempenhos sob realidades socioeconômicas semelhantes. As conclusões advindas poderiam subsidiar agendas internacionais de compromissos em prol da redução de causas de morte cujas ocorrências sejam fortemente rejeitadas pela sociedade moderna.

 

Agradecimentos

Ao Professor Doutor César Gomes Victora, da Universidade Federal de Pelotas-RS, pela revisão da primeira versão deste manuscrito e, principalmente, por sua participação e contribuição no debate sobre os usos, limites e passos futuros para a presente proposta.

À Secretaria de Vigilância em Saúde do Ministério da Saúde, por fomentar oficinas de trabalho para discussão do tema durante as 4a e 5a EXPOEPI, ademais de promover a publicação de suas conclusões e de sua proposta.

E, especialmente, a cada um dos membros do Grupo de Trabalho de Revisão da Lista de Causas de Mortes Evitáveis, cuja colaboração foi imprescindível para a formulação da proposta ora publicada. Fizeram parte do Grupo de Trabalho, além dos autores deste manuscrito, os seguintes profissionais:

Aléxia Lucina Ferreira
Ministério da Saúde
Álvaro Madeiro Leite
Universidade Federal do Ceará
Ana Cecília Silveira Lins Sucupira
Ministério da Saúde
Ana Rosária Sant'Anna
Secretaria Municipal da Saúde de Porto Alegre-RS
Antônio Carlos Cezário
Ministério da Saúde
Berenice Navarro Antoniazzi
Secretaria de Estado de Saúde de Minas Gerais
Bruce Duncan
Universidade Federal do Rio Grande do Sul
Carla Lopes Porto Brasil
Ministério da Saúde
Célia Landmann Szwarcwald
Escola Nacional de Saúde Pública, Fundação Instituto Oswaldo Cruz/Rio de Janeiro-RJ
Clarence Clottey
Public Health Agency/Canadá
Claúdio Pompeiano Noronha
Ministério da Saúde
Daisy Maria de Abreu
Universidade Federal de Minas Gerais
Denise Petrucci Gigante
Universidade Federal de Pelotas-RS
Denise Rangel Ganzo de Castro Aerts
Secretaria Municipal da Saúde de Porto Alegre-RS
Eliana Suzuki
Centro de Vigilância Epidemiológica, Secretaria de Estado da Saúde de São Paulo
Elisabeth Barbosa França
Universidade Federal de Minas Gerais
Emília Pessoa Perez
Universidade Federal de Pelotas-RS
Erly Catarina de Moura
Núcleo de Pesquisas em Nutrição e Saúde, Faculdade de Saúde Pública, Universidade de São Paulo
Hélio de Oliveira
Ministério da Saúde
José Romério Rabêlo Neto
Agência Nacional de Vigilância Sanitária
Luís Patrício Ortiz
Fundação Sistema Estadual de Análise de Dados de São Paulo
Marcela Cortez
Universidad de Concepción/Chile
Maria Inês Schmidt
Universidade Federal do Rio Grande do Sul
Maria Lúcia Becker
Secretaria Municipal da Saúde de Curitiba-PR
Maria Zélia Rouquayrol
Universidade Federal do Ceará
Marislaine Lumena de Mendonça
Secretaria Municipal de Saúde de Belo Horizonte-MG
Marta Maria Alves da Silva
Ministério da Saúde
Mônica Dersola Negri
Secretaria Municipal da Saúde de Curitiba-PR
Mônica Valadares Martins
Universidade Vale do Rio Doce/Governador Valadares-MG
Nereu Henrique Mansano
Secretaria Municipal de Saúde de Cambé-PR
Paulo Germano de Frias
Instituto Materno-infantil Professor Fernando Figueira Secretaria de Saúde do Recife-PE
Paulo Roberto Lopes Corrêa
Secretaria Municipal de Saúde de Belo Horizonte-MG
Rita de Cássia Faria Bergo
Secretaria Municipal da Saúde de Atibaia-SP
Rosa Maria Sampaio
Ministério da Saúde
Rubens Wagner Bressanim
Ministério da Saúde
Sandhi Maria Barreto
Universidade Federal de Minas Gerais
Sônia Lansky
Secretaria Municipal de Saúde de Belo Horizonte-MG
Vânia Muniz Nequer Soares
Secretaria de Estado da Saúde do Paraná

 

Referências bibliográficas

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Endereço para correspondência:
Ministério da Saúde, Secretaria de Vigilância em Saúde,
Coordenação-Geral de Doenças e Agravos Não Transmissíveis,
Esplanada dos Ministérios,
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Brasília-DF.
CEP: 10058-900
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Recebido em 01/06/2006
Aprovado em 12/06/2007