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Epidemiologia e Serviços de Saúde

versión impresa ISSN 1679-4974versión On-line ISSN 2237-9622

Epidemiol. Serv. Saúde v.17 n.1 Brasília mar. 2008

http://dx.doi.org/10.5123/S1679-49742008000100003 

ARTIGO ORIGINAL

 

Sonolência excessiva diurna em condutores de ambulância da macrorregião Norte do Estado do Rio Grande do Sul, Brasil

 

Excessive daytime sleepiness in ambulance arivers from the Northern macro-region of the state of Rio Grande do Sul, Brazil

 

 

Patrícia Ambrósio; Lorena Teresinha Consalter Geib

Instituto de Ciências Biológicas, Universidade de Passo Fundo, Passo Fundo-RS, Brasil

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

A abstinência de sono pode colocar em risco os usuários do Sistema Único de Saúde (SUS), especificamente os motoristas de ambulância. Com o objetivo de investigar a sonolência excessiva diurna desses motoristas da área de abrangência da Macrorregião Norte do Rio Grande do Sul, realizou-se este estudo transversal com 105 condutores, incluídos por amostragem aleatória. Foram coletados os dados por entrevistas estruturadas e aplicada a Escala de Sonolência de Epworth, obtendo-se 27,6% de sonolência excessiva diurna: 22,9% com sonolência leve; e 4,8% com sonolência moderada. Calcularam-se as odds ratio com intervalo de confiança IC95%, teste de qui-quadrado com nível de significância de 0,05 e regressão logística múltipla no software SPSS 10.0. A sonolência diurna associou-se com apnéia e roncos, embora não com as variáveis sociodemográficas, padrões de sono, condições de saúde e estilo de vida. O manejo clínico-administrativo da sonolência excessiva diurna moderada poderá contribuir para a saúde dos motoristas e a segurança nas estradas.

Palavras-chave: sono; fatores de risco; transporte de pacientes.


SUMMARY

The sleep deprivation may jeopardize patients of the Brazilian Health System (SUS), ambulance drivers specifically. This cross-sectional study was conducted to investigate the excessive daytime sleepiness of these drivers from the Northern Macro-Region of Rio Grande do Sul. The sample was composed of 105 randomly selected drivers. Data were collected by means of structured interviews and application of the Epworth Sleepiness Scale, which revealed 27.6% of excessive daytime sleepiness: 22.9% mild; and 4.8% moderate. One had calculated odds ratio with reliable interval of 95%, qui-square test, with level of significance of 0.05% and multiple logistic regression in software SPSS 10.0. Daytime sleepiness was associated with apnea and snore, yet not with sociodemographic variables, sleeping pattern, health status and life style. The clinical-administrative management of daytime sleepiness, especially of moderate severity, may contribute to the health of drivers and safety on the roads.

Key words: sleep; risk factors; patient transportation.


 

 

Introdução

A sonolência é conceituada como uma probabilidade aumentada para dormir, classificada como excessiva quando o indivíduo sente-se compelido a dormir em momentos inapropriados, cochila involuntariamente ou sofre ataques de sono.1,2

A causa mais comum de sonolência excessiva diurna (SED) é a privação crônica de sono.3 A quantidade necessária de sono tem variações individuais e parece ser determinada geneticamente. A duração média de sono para os adultos saudáveis gira em torno de 7,5 a 8 horas, podendo haver variações entre quatro e dez horas. O sono suficiente, entretanto, pode ser melhor avaliado em termos de o indivíduo acordar descansado e restaurado do que em termos de horas absolutas de sono. Aqueles que necessitam de dez horas de sono e dormem apenas oito horas poderão apresentar privação do sono e hipersonolência. A privação de sono tem efeito cumulativo, de modo que a pessoa não diminui sua necessidade de sono, nem se acostuma com sua privação.4

Indivíduos com sonolência excessiva têm como características evidentes cochilos diurnos, que se prolongam por uma hora ou mais, ou episódios inadvertidos de sono. Estes são percebidos pelo sujeito como não reparadores e, geralmente, não melhoram o estado de vigília. Acometem o indivíduo de forma gradativa ao longo de um determinado período de tempo e ocorrem em situações de baixa estimulação e baixa atividade, como durante palestras, leitura, assistência à televisão ou condução de veículos por longas distâncias.5 Podem se tornar perigosos quando o indivíduo dirige ou opera máquinas, além de levar a uma redução da eficiência de desempenho, do poder de concentração e da memória durante suas atividades diurnas.

Quando persistente, a sonolência diurna pode provocar comportamentos automatizados, com pouca ou nenhuma recordação subseqüente das atividades desenvolvidas. No caso dos motoristas, pode acontecer de ultrapassarem o ponto onde deveriam chegar sem se darem conta de que dirigiram automaticamente durante os últimos minutos.

A SED acomete 31% da população adulta americana,4 com riscos de acidentes, problemas de saúde, redução no desempenho profissional e acadêmico e comprometimento das funções psicossociais. Nos Estados Unidos da América, os acidentes de trânsito envolvendo motoristas que adormecem ao volante ultrapassam 100 mil casos anuais, com aproximadamente 1.500 óbitos, superando, entre os jovens, os acidentes relacionados ao consumo de álcool.

No Brasil, a prevalência da SED é pouco conhecida. Nas estatísticas oficiais de acidentes de trânsito, essa causa permanece sub-registrada pela dificuldade de aferir, objetivamente, o grau de sonolência do motorista nas horas ou minutos que antecederam o acidente; condição diferente do abuso de álcool, por exemplo, em que a análise do etilômetro permite evidenciar a provável causa do acidente. Essa dificuldade na obtenção das evidências relacionadas à privação do sono faz com que a SED não conste nos laudos de acidentes. Dessa forma, a identificação da SED como fator de risco de acidentes automobilísticos deve contribuir com medidas preventivas contra esses acidentes.

Os motoristas de ambulâncias são profissionais cotidianamente expostos a vários riscos de saúde ocupacional e a jornadas de trabalho prolongadas. Essa sobrecarga, além de acarretar danos fisiológicos e alterações na ritmicidade biológica, prejudica a qualidade e quantidade de sono. Tal condição, vinculada a sintomas como estresse, mau humor, hipertensão, redução no desempenho da prestação dos serviços, entre outros, poderá levar à lentidão de reflexos.

A sonolência parece estar relacionada aos acidentes na proporção de 0,5 a 40%, fator que dependeria do tipo de estrada, hora do dia e gravidade do acidente.6

Em pesquisa realizada no ano de 1999, nas três rodovias mais movimentadas do Estado do Rio Grande do Sul, com o objetivo de avaliar a qualidade e quantidade de sono, Rizzo entrevistou 1.000 motoristas, 33% deles caminhoneiros. Esse autor observou indicadores que apontaram para privação de sono, embora os motoristas tenham afirmado que a qualidade de seu sono era boa. Vinte por cento dos entrevistados apontaram fadiga e a sonolência como razões para acidentes automobilísticos prévios.7

Para a avaliação dos níveis de sonolência, emprega-se a Escala de Sonolência de Epworth, desenvolvida por Murray W. Johns em 1991, no Hospital Epworth, Austrália. A escala mensura os níveis de sonolência em determinadas situações, de acordo com escores definidos. Ela pode ser empregada para medir a sonolência em populações gerais e específicas, caso do presente estudo com motoristas de ambulâncias. Poucas investigações, entretanto, têm sido realizadas para verificar a sonolência excessiva na direção e sua possível vinculação aos acidentes em estradas. Mais escassos, todavia, são os estudos de sonolência excessiva que envolvem transportes públicos, cujos motoristas, quase sempre, são expostos à privação do sono decorrente de longas jornadas de trabalho e excessivas distâncias a percorrer, em qualquer horário do dia.8

As explicações mais comuns acerca dos acidentes automobilísticos voltam-se para as más condições das estradas, a inadequada manutenção dos automóveis, ônibus e caminhões e a "falha humana". Esta última, muitas vezes usada como sinônimo de imprudência ou abuso de álcool, raramente é atribuída ao motorista, envolvido em acidente, que dormiu ao volante.8 Este trabalho objetivou investigar a prevalência e os fatores associados à sonolência excessiva diurna de motoristas de ambulâncias da área de abrangência da Macrorregião Norte do Rio Grande do Sul, visando à prevenção de acidentes de trânsito por distúrbio de sono em condutores de veículos de serviços públicos de saúde.

 

Metodologia

Trata-se de um estudo transversal, realizado no período de maio a novembro de 2005, com uma amostra aleatória simples de 105 motoristas de ambulância da área de abrangência da Macrorregião Norte do Estado do Rio Grande do Sul, que compreende as seguintes Coordenadorias Regionais de Saúde (e número de Municípios abrangidos por elas): 6a (58), 11a (31), 15a (26) e 19a (28), perfazendo um total de 143 Municípios.

A amostra foi calculada estimando-se uma prevalência de 30% de SED na população adulta, um erro amostral de 5% e um intervalo de confiança (IC95%) de 25 a 35%. Chegou-se a 87,5 mais 20% para compensação de perdas, resultando em amostra de 105 motoristas. Ressalta-se que a inexistência de dados nas Coordenadorias Regionais acerca do número de ambulâncias e motoristas dos Municípios por elas compreendidos motivou o cálculo da amostra a partir da estimativa de um motorista por Município.

Foram incluídos os motoristas das ambulâncias e/ou veículos oficiais de frota própria das Prefeituras Municipais da Macrorregião Norte e de serviços terceirizados, desde que identificados externamente, com nome ou logotipo da Secretaria Municipal de Saúde (SMS) ou Prefeitura do Município de origem. Excluíram-se os condutores dos veículos oficiais das SMS/Prefeituras Municipais não destinados ao transporte de usuários dos serviços de saúde.

A coleta dos dados foi realizada pela pesquisadora (P.A.), mediante questionário estruturado e aplicação da Escala de Sonolência de Epworth em motoristas de ambulância. O questionário, elaborado a partir do referencial teórico desta pesquisa, foi pré-testado em estudo-piloto realizado com 10% da amostra e aplicado a motoristas procedentes de Municípios da Macrorregião Norte não selecionados para o estudo.

A Escala de Sonolência de Epworth é um instrumento de baixo custo, rápido e padronizado, empregado em estudos clínicos e pesquisas em vários países, incluindo o Brasil.9-11 Ela quantifica a chance de um indivíduo cochilar em oito situações diferentes. Possui alta sensibilidade e confiabilidade, além de elevado grau de consistência interna, podendo discriminar pacientes com níveis diferentes de sonolência e indivíduos normais, além de detectar variações de SED em pacientes submetidos a tratamento, especialmente nos portadores de apnéia obstrutiva do sono. Para sua validação, seus escores foram correlacionados com aqueles obtidos no Teste Múltiplo das Latências do Sono, considerado padrão-ouro, para a latência do sono diurno; e com a polissonografia, para o sono noturno.12,13 Mede a propensão ao sono, da menor à maior, em situações cotidianas como: sentado e lendo; vendo televisão; sentado em lugares públicos (por exemplo: sala de aula e igreja); andando de trem, carro ou ônibus por uma hora, sem parar; deitando-se à tarde para descansar, quando as circunstâncias permitem; sentado e conversando com alguém; sentado calmamente, após o almoço, sem ter tomado bebida alcoólica; e sentado à direção de um carro parado, por alguns minutos, em trânsito intenso (congestionado). Para cada uma das situações apontadas, o indivíduo assinala a probabilidade de cochilar ou adormecer de acordo com o seguinte gabarito: a) nenhuma chance; b) pequena chance; c) média chance; e d) grande chance. A pontuação para cada resposta varia de zero a três.9,13 A soma das oito situações descritas atinge valores de zero a 24 pontos. Na versão brasileira14,15 da Escala de Epworth,12 a classificação da sonolência excessiva é a seguinte: de zero a 6, normal; de 7 a 9, limite; de 10 a 14, leve; de 15 a 20, moderada; e acima de 20, grave.

Quanto às entrevistas, solicitou-se a permissão dos motoristas para que fossem realizadas no interior da ambulância, durante o período da espera do retorno dos pacientes em atendimento nos serviços de saúde, garantindo sua privacidade. Nas entrevistas, de duração média de dez minutos, foi solicitado aos motoristas assinalar os oito itens da Escala de Sonolência de Epworth.

Variáveis estudadas

Variável dependente: sonolência excessiva diurna – considerou-se portador de sonolência excessiva diurna aquele que atingisse o valor mínimo de 10 pontos na Escala de Sonolência de Epworth.

Variáveis independentes

a) variáveis sociodemográficas e suas respectivas categorias – sexo, idade, estado civil, escolaridade, procedência, vínculo trabalhista, tempo de trabalho como motorista e distância percorrida do Município de origem até a cidade de Passo Fundo-RS –; e

b) variáveis relacionadas aos transtornos de sono e condições de saúde – ritmo circadiano, transtornos respiratórios (apnéia obstrutiva do sono), transtornos depressivos, transtornos relacionados a medicamentos e substâncias psicoativas, exposição à toxina, consulta médica regular, exercícios físicos regulares, cefaléias recorrentes e desmaios freqüentes.

Os dados foram codificados, digitalizados e analisados pelo pacote estatístico SPSS versão 10.0, aplicando-se estatística descritiva, teste de qui-quadrado ou teste Exato de Fisher e medidas de força de associação, com nível de significância de 0,05. Para a análise multivariada, adotou-se a regressão logística múltipla, incluídas somente as variáveis associadas à SED com um nível de significância menor do que 0,20 nas análises bivariadas.

Considerações éticas

O projeto foi submetido à apreciação e obteve a aprovação do Comitê de Ética da Universidade de Passo Fundo-RS. Solicitou-se autorização das Coordenadorias Regionais de Saúde da Macrorregião Norte do Rio Grande do Sul e dos secretários de saúde dos Municípios incluídos no estudo, para coleta de dados junto aos motoristas das ambulâncias. A estes, foi solicitado consentimento mediante assinatura do Termo de Consentimento Livre e Esclarecido. O documento, em linguagem acessível, não só garantiu o necessário anonimato, privacidade e confidencialidade sobre as informações oferecidas como informou os entrevistados sobre os objetivos, justificativa, metodologia, riscos e benefícios da pesquisa, bem como o nome da pesquisadora, forma de contatá-la e ter acesso aos resultados parciais e finais do estudo.

 

Resultados

Participaram do estudo 105 motoristas de ambulâncias dos 143 Municípios que integram a Macrorregião Norte do Estado do Rio Grande do Sul. Houve duas recusas, repostas mediante novo sorteio. A média de idade dos motoristas entrevistados foi de 41,77 (desvio-padrão: 8,33), com uma variação de 23 a 58 anos; 85,7 % eram casados; em relação à escolaridade, 53,3% tinham ensino fundamental (35,2% com Primeiro Grau incompleto), 41,3% haviam cursado o ensino médio (28,6% concluído) e 4,8% o ensino superior (3,8% incompleto). Eram, predominantemente, funcionários de carreira das Prefeituras Municipais (89,5%), 37,1% contavam com tempo de atuação como motorista de ambulância de um a cinco anos e 30,5% cumpriam a função há mais de dez anos.

Na Tabela 1, encontra-se descrito o padrão de sono no último mês revelado por esses motoristas: duração média de sono noturno de 6,63 horas (desvio-padrão: 1,19); ausência de hábito de dormir durante o dia (61%); e horários regulares de dormir (64,8%) e acordar (67,6%). Em relação aos transtornos de sono, 52,4% admitiram roncar durante o sono, apesar de apenas 10,5% revelarem apnéias.

 

 

Dos 105 motoristas, 27,6% relataram problemas de saúde, destacando-se a hipertensão arterial (5,7%) e as dorsopatias (4,8%). Questionados sobre a presença de cefaléias regulares, 23,8% responderam afirmativamente, ao passo que apenas 1,0% relatou a ocorrência de desmaios freqüentes; 57,0% referiram realizar consultas médicas regulares e 56,2% afirmaram praticar exercícios físicos regulares, como se pode observar na Tabela 2.

 

 

A proporção de motoristas que utilizam medicamentos foi de 20%, enquanto a de usuários de bebidas alcoólicas foi de 65,7% e a de tabaco, de 14,3%. Apenas 0,95% desses condutores referiram uso de estimulantes ou contato com substâncias tóxicas (Tabela 3).

 

 

Os escores obtidos pelos motoristas na Escala de Sonolência de Epworth permitiram constatar que 29 deles (27,6%) apresentaram algum grau de sonolência, sendo assim classificados: sonolência leve (22,9%); e moderada (4,8%).

A sonolência diurna excessiva não se mostrou associada às variáveis sociodemográficas, a saber: idade, estado civil, escolaridade, distância percorrida, vínculo trabalhista e tempo na função de motorista de ambulância. Também não foi encontrada associação com as condições de saúde relatadas pelos condutores, tampouco com o consumo de medicamentos e substâncias psicoativas (álcool, fumo). O relato de uso de estimulantes e de contato com substâncias tóxicas teve apenas uma ocorrência. A SED mostrou-se independente do estilo de vida, muito embora tenha-se observado que motoristas sem consultas médicas periódicas e sem exercícios físicos regulares apresentassem uma chance 60% maior de SED, comparativamente àqueles que incorporaram essas condutas a seu estilo de vida. Em relação aos padrões de sono, observou-se que os motoristas com horários irregulares de dormir apresentaram risco duplicado de SED; e aqueles com hábito de cochilar por períodos superiores a 30 minutos, uma probabilidade 60% maior de manifestação daquele transtorno. A associação encontrada, entretanto, não foi significativa. No que diz respeito aos transtornos respiratórios, a SDE apresentou, sim, associação significativa com a presença de roncos no último mês (p=0,05). A chance dos motoristas que roncam apresentarem SED foi 2,6 vezes maior em relação à dos não roncadores. Nas análises bivariadas, o relato de apnéias/hipopnéias também se mostrou significativo, com uma chance de sonolência 10,7 maior do que os pares de referência (OR=10,7; IC>95%: 2,55-44,54; p=0,001) (Tabela 4). O ajuste das variáveis no modelo multivariado mostrou que a SED é determinada pelo vínculo funcional, com uma chance quase dez vezes maior de os motoristas vinculados aos serviços de saúde apresentarem SED, em relação àqueles sem esse vínculo (OR=9,71; IC95%: 1,60-58,75) (p=0,013) (Tabela 5). Outro fator determinante foi o relato de apnéias/hipopnéias com uma chance semelhante de SDE em relação aos motoristas sem esse relato (OR=9,58; IC95%: 2,05-44,65) (p=0,004). Não obstante, esses resultados devem ser avaliados com cautela, dado o reduzido poder estatístico para detectar associações em um número muito pequeno de motoristas com esses fatores.

 

 

 

 

Discussão

Os motoristas de ambulâncias ou carros oficiais de Prefeituras Municipais têm sob sua responsabilidade a preservação da vida dos usuários do Sistema Único de Saúde, transportados de um Município a outro para atendimento de saúde, além da preservação de suas próprias vidas; e dos ocupantes de outros veículos que trafegam pelas estradas. Os gestores públicos devem se assegurar das condições de saúde desses motoristas, incluindo-se, entre elas, a ausência de SED, por sua relação com o risco aumentado de acidentes.

Na Macrorregião Norte do Rio Grande do Sul, a prevalência de SED foi estudada em 105 motoristas de 143 Municípios. Não se descarta, entretanto, a possibilidade de viés de seleção, uma vez que as dificuldades logísticas encontradas no decorrer do estudo não permitiram conhecer o número de ambulâncias disponíveis e a população de motoristas em atuação nessa Macrorregião do Estado. Para minimizar esse problema, resguardou-se a inclusão probabilística dos Municípios da área de abrangência das Coordenadorias Regionais.

Outra limitação a ser considerada na interpretação dos resultados refere-se à possibilidade de subestimação, uma vez que os motoristas, ao serem entrevistados, mostravam-se temerosos de que os resultados pudessem comprometer seu emprego. Assim se referiram, alguns deles, após serem informados – e tranqüilizados – acerca das questões éticas respeitadas pela pesquisa. Além desse aspecto, deve-se considerar o viés da subjetividade da escala de sonolência empregada, o que pode ter contribuído, igualmente, para subestimar a prevalência de sonolência excessiva diurna. Mais uma questão a destacar, em relação às variáveis 'ronco' e 'apnéias/hipopnéia', é a possibilidade dessas terem sido subestimadas ao se considerar o relato do próprio motorista sobre sua ocorrência, o que tornaria essa informação pouco confiável – embora fosse remota a possibilidade de aferir esse dado objetivamente. Na maior parte dos casos, porém, os motoristas fizeram menção ao relato de seus companheiros de quarto sobre os eventos mencionados.

A prevalência obtida assemelha-se à de outros estudos brasileiros que empregaram a Escala de Sonolência de Epworth. Um desses estudos16 revelou uma prevalência de 27,5% de SED em 262 motoristas de ônibus de linha interestadual. É mister destacar que o ponto de corte para SED adotado por esses autores foi de escores maiores do que dez, enquanto no presente estudo, os escores iguais a dez foram classificados como 'sonolência'. Se se adotassem os mesmos critérios empregados pelos autores referidos, a prevalência de SED entre os motoristas da Macrorregião Norte do RS estaria próxima dos 23%, semelhante, portanto, àquela por eles encontrada e, no seu entender, alarmante, pelos prejuízos que causa à percepção do condutor, especialmente na diminuição da atenção, configurando-se alto risco para acidentes de trânsito.

No caso de motoristas que mantêm vínculo laboral com serviços públicos de saúde, a prevalência encontrada deve servir de alerta aos gestores. Ainda que a maior proporção de motoristas (23%) tenha apresentado sonolência leve, que costuma acometer o indivíduo em situações que requerem pouca atenção,17 a especificidade da ocupação desses trabalhadores requer a minimização de riscos para a saúde – dos ocupantes da ambulância e de outros veículos – em tráfego na mesma malha viária. Medidas nesse sentido atingem maior importância diante dos casos dos cinco condutores entrevistados (4,8%) e classificados em 'sonolência moderada', condição passível de comprometer atividades físicas leves e aquelas que requerem um grau moderado de alerta em atividades da vida diária, como capacidade de dirigir de maneira segura. Uma constatação favorável do estudo foi a ausência de sonolência grave entre os motoristas avaliados.

Cabe lembrar que o Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais (DSM-IV) descreve, entre as características diagnósticas, que a sonolência excessiva durante a vigília laboral ocorre gradualmente, em situação de baixa estimulação (exemplo: dirigir por longas distâncias), apresentando-se sob a forma de cochilos intencionais ou episódios inadvertidos de sono. Os cochilos diurnos tendem a ser prolongados, ultrapassando uma hora, e não têm efeito reparador. Neste estudo, os cochilos diurnos variaram de dez minutos a duas horas.

Em relação aos fatores associados à SED, não se evidenciou associação significativa com as variáveis sociodemográficas – idade, estado civil, escolaridade, vínculo trabalhista, tempo de ocupação e distância percorrida –, resultado em conformidade com os encontrados por diversos estudos efetuados com a população geral9,18-22 e com grupos específicos, como os idosos – com exceção, nestes, para o estado civil.23

Da mesma forma, os padrões de sono, avaliados pelos horários de dormir e acordar e pela duração do sono diurno e noturno, não mostraram associação significativa com a SED, diferentemente do que ocorreu com os transtornos respiratórios, especialmente com as pausas respiratórias (apnéias/hipopnéias). Estas apresentaram uma probabilidade 10,67 vezes maior de SED, relativamente aos motoristas que não referiram esse problema, ainda que o número de sujeitos acometidos tenha sido pequeno. A magnitude dessa associação é considerada grande,24 superando o pequeno efeito estatístico dos roncos relatados pelos motoristas, cuja associação com a SED foi significativa, porém limítrofe. Confirma-se, assim, a apnéia do sono como o principal fator associado à SED em adultos ativos.17

A apnéia do sono caracteriza-se por pausas repetidas e temporárias da respiração durante o sono, com interrupção do fluxo aéreo por um tempo mínimo de dez segundos, freqüentemente associada aos roncos. A hipopnéia, por sua vez, tem como característica uma importante diminuição de oxigenação, por vezes acompanhada de despertares transitórios.25 Esses resultados indicam maior influência, sobre a manifestação de SED, dos distúrbios intrínsecos do sono (apnéias) do que dos extrínsecos (higiene do sono) e do ritmo circadiano.

Estudos prévios descrevem que os indivíduos com distúrbios ventilatórios são mais propensos a sofrer acidentes de trânsito, em comparação àqueles que não apresentam essa condição.26-30 No caso dos motoristas de ambulância identificados como portadores desses distúrbios, caberia uma atenção médica especial, tão importante para prevenir acidentes como as implicações legais deles decorrentes. Essa medida contribuiria, por certo, para ultrapassar eventuais negligências de motoristas, empregadores e profissionais da saúde com a sonolência diurna. Nos serviços públicos de saúde, especialmente, seria uma medida salutar, tanto quanto a inclusão da avaliação de transtornos de sono nos processos seletivos de condutores de veículos ofíciais de transporte de pacientes do SUS. A elaboração de escalas de trabalho sem jornadas prolongadas, a conscientização dos motoristas sobre os riscos de dirigir com sonolência e a distribuição dos horários de viagens não coincidentes com os horários de maior sonolência diurna poderiam, igualmente, constituir-se em iniciativas capazes de reduzir os riscos de acidentes de trânsito envolvendo trabalhadores e usuários do Sistema Único de Saúde.

Em síntese, a prevalência de SED entre os motoristas de ambulância da Macrorregião Norte do Estado do Rio Grande do Sul assemelha-se à encontrada em outras populações. O grau de sonolência é predominantemente leve, podendo ser manejado com medidas clínicas e administrativas. Maior preocupação e atenção devem-se voltar aos motoristas com vínculo funcional e portadores de apnéia de sono, pela magnitude da associação com a sonolência excessiva diurna.

 

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Endereço para correspondência:
Rua Tiradentes, 400, Apto. 601,
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Recebido em 22/09/2006
Aprovado em 01/10/2007