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Epidemiologia e Serviços de Saúde
versão impressa ISSN 1679-4974versão On-line ISSN 2237-9622
Epidemiol. Serv. Saúde v.17 n.2 Brasília jun. 2008
http://dx.doi.org/10.5123/S1679-49742008000200011
RESUMO
PRÊMIO DE INCENTIVO AO DESENVOLVIMENTO E À APLICAÇÃO DA EPIDEMIOLOGIA NO SUS MENÇÃO HONROSA MESTRADO
Citopatológico e exame de mama: desigualdade de acesso para mulheres negras no sul do Brasil
Fernanda Souza de Bairros; Stela Nazareth Meneghel; Maria Teresa Anselmo Olinto (Orientadoras)
Universidade do Vale do Rio dos Sinos, São Leopoldo-RS, Brasil
Introdução
A preocupação com as desigualdades e as iniqüidades raciais em saúde tem aumentado nos últimos anos. Iniqüidades em saúde são expressas pelos diferenciais nos riscos de adoecer e de morrer, originados de condições heterogêneas de existência e de acesso a bens e serviços. As diferenças são consideradas iníquas se ocorrem porque as pessoas dispõem de escolhas limitadas, acesso restrito a recursos de saúde e exposição a fatores prejudiciais por conta de injustiças. Diversos estudos já vêm documentando disparidades na saúde de grupos raciais distintos, em termos de morbimortalidade, e em relação ao acesso dos serviços de saúde para prevenção, diagnóstico e tratamento.
No Brasil, a discussão sobre diferenças raciais na saúde ainda é incipiente. A necessidade de evidenciar o impacto do racismo no processo saúde-doença-cuidado e morte fizeram com que pesquisadores da área da Saúde buscassem, também, o conhecimento da sociologia na noção de raça/cor. Por meio da variável raça/cor, é possível identificar, pelo menos, parte da desigualdade e injustiças sociais provocadas pelo racismo, que estudos centrados somente na determinação socioeconômica não dão conta de apontar.
Raça/cor é uma categoria importante para definir as populações. As diferenças fenotípicas, de fato, muitas vezes atuam como indicadores para a distribuição diferencial dos direitos. Para Krieger, o termo raça/cor é uma categoria social, mais do que biológica, referente a grupos que têm em comum uma herança cultural. Dessa maneira, a cor da pele pode ser considerada uma expressão biológica da raça ou uma expressão racializada da biologia, quando exposta ao racismo. O ponto em comum entre a maioria dos autores é que os significados e as categorias raciais são construídos em termos sociais e não biológicos.
No campo da Saúde, há evidências de vulnerabilidades que fragilizam mulheres negras em termos de diferenciais de morbidade, acesso e atenção à saúde – principalmente, quanto ao acesso e qualidade dos atendimentos ginecológicos e obstétricos.
A saúde reprodutiva deve ser vista dentro dos marcos da atenção integral à saúde da mulher, onde a consulta ginecológica em padrões adequados é um procedimento indispensável à manutenção da saúde, relevante não só em termos de contracepção e sexualidade como também para a prevenção das doenças sexualmente transmissíveis e das neoplasias do aparelho reprodutor feminino. No Brasil, as neoplasias de mama e de colo do útero constituem as de maior prevalência na população feminina. As maiores incidências desses tipos de câncer encontram-se nas Regiões Sudeste e Sul, onde o Estado do Rio Grande do Sul apresenta as maiores taxas de câncer de mama e de colo do útero, com coeficientes de incidência de 88 e 30/100.000 mulheres, respectivamente.
Condutas preventivas, como exame clínico de mama e citopatológico, simples e de baixo custo, podem reduzir em cerca de 80% a mortalidade por câncer de mama e de colo do útero. Tem-se observado que os coeficientes de mortalidade continuam elevados no Brasil, provavelmente porque a doença é diagnosticada em estágio avançado. Em relação às mulheres negras, pesquisas apontam que o diagnóstico é feito mais tardiamente, todavia, em comparação com o das mulheres brancas.
Esta pesquisa foi realizada tendo em vista a necessidade de estudos sobre a saúde da população negra. Seu objetivo é verificar o acesso aos exames de detecção precoce dessas doenças, por exame clínico de mama e citopatológico, em mulheres negras e brancas residentes em duas cidades do sul do Brasil.
Objetivos
Verificar o acesso aos exames de detecção precoce de câncer de mama e de câncer de colo do útero em mulheres negras e brancas residentes em duas cidades do sul do Brasil.
Metodologia
Trata-se de um estudo transversal de base populacional que utilizou informações procedentes de amostras de duas pesquisas realizadas com mulheres adultas nos Municípios de São Leopoldo, em 2003, e Pelotas, em 2001, ambos no Estado do Rio Grande do Sul (RS).
São Leopoldo-RS é um Município localizado na Região Metropolitana de Porto Alegre-RS, capital do Estado. Conta com uma população de 206.942 habitantes, enquanto Pelotas-RS se localiza na região Sudeste do Rio Grande do Sul e possui uma população de 338.544 habitantes. Dados da Fundação Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) (2000) indicam que a população negra representava, respectivamente, 9% e 16% da população geral de São Leopoldo-RS e Pelotas-RS.
A amostra do estudo foi definida em conglomerados, correspondendo a 36 setores censitários sorteados em São Leopoldo-RS e 40 em Pelotas-RS. Constitui-se de 2.030 mulheres adultas, correspondendo à junção de 1.026 mulheres de São Leopoldo-RS e 1.004 mulheres de Pelotas-RS – todas entre 20 e 60 anos de idade. O tamanho de cada uma das amostras foi estabelecido de acordo com critérios que permitissem identificar uma razão de 2,0 para classe social, um nível de confiança de 95% e um poder estatístico de 80%. A razão de não expostos foi de 1,3 em São Leopoldo-RS e de 1,6 em Pelotas-RS. Acrescentou-se ao tamanho da amostra 10% para possíveis perdas e recusas e 15% para controle de fatores de confusão.
A classificação de raça/cor utilizada em ambos os estudos foi a de heteroatribuição, em que o entrevistador classifica a pessoa entrevistada. Essa classificação leva em consideração, basicamente, traços fenótipos externos, como a cor da pele. Inicialmente, as entrevistadas foram agrupadas em quatro categorias: branca; negra; parda; e mista (indígena e orientais). Para análise estatística, foram classificadas como negras as mulheres categorizadas como negras ou pardas; e como brancas, aquelas classificadas como brancas e mistas. As últimas representam apenas 0,5% da amostra.
As variáveis explanatórias investigadas foram: idade; estado civil; classe econômica segundo classificação da Associação Nacional de Empresas de Pesquisa – ANEP –, que enfatiza a estimativa do poder de compra; renda familiar per capita, em salários mínimos; e escolaridade, em anos de estudo, informada pela entrevistada. Os desfechos investigados foram a realização de exame de mama no último ano e a realização de exame citopatológico em dia, categorizados em 'Sim', 'Não' (mulheres que realizaram o exame há mais de três anos) e 'Nunca fez'.
Foi realizado controle de qualidade dos dados e dupla digitação pelo programa Epi Info 6.0, para diminuir os erros de consistência; e as freqüências univariadas e bivariadas, calculadas pelo programa estatístico Statistical Package for the Social Sciences 13.0 (SPSS). Calcularam-se as razões de prevalência e os intervalos de confiança de 95% para cada categoria das variáveis exploratórias, considerando-se como expostas as mulheres negras. Com a finalidade de identificar o efeito da raça/cor sobre a realização de exames de mama e citopatológicos, procedeu-se a estratificação por idade, renda, escolaridade e classe econômica.
Considerações éticas
Os dois estudos, realizados adotando-se os mesmos procedimentos metodológicos, foram aprovados pelo Comitê de Ética da Universidade Federal de Pelotas.
Resultados
Foram estudadas 2.030 mulheres: 327 (16,1%) negras e 1.703 (83,9%) brancas. Entre as mulheres amostradas, mais da metade encontrava-se na faixa etária de 20 a 39 anos (51,4%), era casada ou encontrava-se em união estável (61,5%), pertencia à classe econômica C e D (64,5%) e possuía uma renda per capita menor de três salários mínimos (76,3%).
Em relação às características demográficas da população amostrada, segundo raça/cor, não houve diferença estatisticamente significativa entre as idades das mulheres negras e brancas (p=0,102). Quanto ao estado civil, verificou-se que a probabilidade de as mulheres negras serem viúvas foi 95% maior que a das mulheres brancas. Quanto às características socioeconômicas, 56% das mulheres negras apresentaram menos do que oito anos de escolaridade, 45% pertenciam às classes D e E e 89% viviam com renda familiar per capita menor ou igual a três salários mínimos. Com as medidas de efeito, observa-se que houve um aumento de 264% na probabilidade de as mulheres negras pertencerem à classe econômica E, quando comparada à mesma probabilidade para as mulheres brancas.
Nas associações de raça/cor com acesso aos exames de detecção precoce para a saúde da mulher, observou-se que, embora 53,4% e 77,0% de todas as mulheres da amostra tenham realizado exame de mama e citopatológico no último ano, apenas 43,4% e 68,6% das mulheres negras realizaram esses exames no mesmo período. Chama a atenção que 17,2% das mulheres negras nunca fizeram exame citopatológico, apresentando risco 100% maior que as mulheres brancas (9,7%).
Nas análises que mostram a relação entre raça/cor e a realização dos exames de mama ajustados por idade, escolaridade, classe econômica e renda per capita em salários mínimos, verifica-se que, independentemente da idade e da escolaridade, as mulheres negras apresentaram um risco maior de não-realização de exame de mama no último ano, comparativamente às mulheres brancas. Salienta-se que o maior risco de as mulheres negras não realizarem exame de mama desaparece entre as de renda mais elevada (p>0,05). Entre as de menor renda, a desvantagem das mulheres negras persiste (RP 1,18; IC95% 1,06-1,32). Em contraponto, observando-se a classe econômica, os diferenciais raciais são explícitos para as mulheres das classes A, B e C; e desaparecem quando se comparam as mulheres das classes D e E.
Já nas análises que mostram a relação entre raça/cor e realização do exame citopatológico ajustada por idade e variáveis socioeconômicas, evidencia-se que as variáveis socioeconômicas e a idade modificam o efeito de raça/cor sobre a realização do exame citopatológico. Nas mulheres jovens, não houve diferença estatisticamente significante entre negras e brancas (p=0,356). Para as mulheres de 40 a 60 anos de idade, entretanto, manteve-se o risco elevado das mulheres negras nunca terem realizado citopatológico (RP 3,63; IC95% 2,09-5,39). Similarmente, nas melhores categorias socioeconômicas (elevada escolaridade, classe econômica e renda), não houve diferença da realização de exame citopatológico em relação a raça/cor (p=0,635, 0,212 e 0,415 respectivamente). Não obstante, mulheres negras com baixa escolaridade, pertencentes às classes D e E e de menor renda mantiveram risco elevado de nunca terem se submetido a exame citopatológico. As razões de prevalência e intervalos de confiança foram, respectivamente, RP=2,62 (IC95% 1,80-3,81), RP=1,59 (IC95% 1,12-2,26) e RP=2,90 (IC95% 2,40-3,49).
Conclusões, recomendações e impacto potencial dos resultados em Saúde Pública
Esta pesquisa utilizou dados epidemiológicos representativos de duas cidades de porte médio do Estado do Rio Grande do Sul para descrever a atenção à saúde de mulheres segundo raça/cor. O critério adotado para definir raça/cor foi o da heteroatribuição, que mostra a forma como os indivíduos são vistos pela sociedade. Embora essa classificação apresente limitações, ou seja, exclua a autopercepção do entrevistado, foi possível mostrar desigualdades raciais no acesso a serviços, entre as mulheres amostradas
O perfil das mulheres negras neste estudo não diferiu do das brancas em relação à idade. Porém, diante dos indicadores sociais, as negras encontram-se em desvantagem e situação de precariedade social. Os dados socioeconômicos reforçam os achados de diversos trabalhos, que identificam a desvantajosa situação das mulheres negras neste país. Elas se concentram no segmento de menor renda per capita em salários mínimos e têm menos anos de estudo; além disso, há cerca de quatro vezes mais mulheres negras na classe E. Chama a atenção o elevado percentual de mulheres negras viúvas, podendo-se inferir a maior mortalidade masculina e o aumento na vulnerabilidade dessas mulheres quando, dessa forma, tornam-se chefes de família.
Neste estudo, as mulheres negras apresentaram risco maior de não terem sido examinadas para detecção precoce de câncer de mama no último ano. Ademais, as mulheres negras que nunca realizaram exame citopatológico constituíram o dobro das mulheres brancas. A maioria das associações entre raça/cor e realização de exames de detecção precoce se manteve após a estratificação dos dados de acordo com variáveis econômicas e demográficas, indicando a desigualdade na atenção às mulheres negras, todavia acentuada nas idades mais tardias. Assim, mulheres negras mais velhas tornam-se ainda mais vulneráveis socialmente. Observou-se que mulheres negras acima de 40 anos de idade têm maior probabilidade de não haverem realizado exame citopatológico ou estarem com o exame atrasado.
Ressalta-se que a variável raça/cor pode ser considerada um marcador demográfico de desigualdade na medida em que as mulheres negras encontram-se em situação de maior vulnerabilidade econômica, social e de atendimento à saúde. As mulheres negras que nunca realizaram exame citopatológico foram as mais velhas, com menor escolaridade, de classe social inferior e baixa renda. Os dados evidenciaram, entretanto, que mulheres negras com melhor escolaridade, classe social e renda não apresentam diferenciais na realização de citopatológico, quando comparadas com as brancas. Efeito similar foi observado quanto à realização de exame de mama em mulheres negras de maior renda. Porém, a desigualdade no acesso ao exame de mama manteve-se em relação às mulheres negras de melhor situação social – escolaridade e classe econômica –, mostrando que, ao contrário do que afirmam os críticos da variável raça/cor, as iniqüidades em saúde persistem, a despeito da superação da estratificação socioeconômica.