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Epidemiologia e Serviços de Saúde

versão impressa ISSN 1679-4974versão On-line ISSN 2237-9622

Epidemiol. Serv. Saúde v.17 n.2 Brasília jun. 2008

http://dx.doi.org/10.5123/S1679-49742008000200012 

RESUMO

 

PRÊMIO DE INCENTIVO AO DESENVOLVIMENTO E À APLICAÇÃO DA EPIDEMIOLOGIA NO SUS MENÇÃO HONROSA MESTRADO

 

Cobertura da solicitação do perfil lipídico: é diferente entre o setor público e o privado?

 

 

Luciano Nunes Duro; Maria Cecília Assunção; Iná S. Santos; Juvenal Dias da Costa (Orientadores)

Programa de Pós-graduação em Epidemiologia, Universidade Federal de Pelotas, Pelotas-RS, Brasil

 

 


Introdução

As doenças cardiovasculares (DCV) são as principais causas de morte entre adultos no mundo inteiro, sendo a dislipidemia um de seus principais fatores de risco. Estudos comprovam os benefícios da detecção precoce das elevações dos níveis séricos do colesterol e suas frações, pois o tratamento dessas disfunções reduz as taxas de mortalidade por DCV. Atualmente, o rastreio da dislipidemia é feito conforme consensos estabelecidos entre grupos especializados de vários países, em que é enfatizada a importância de não apenas detectar indivíduos com alterações mas também identificar aqueles com maiores riscos de desenvolver eventos cardiovasculares indesejados no futuro. As vantagens do rastreio para dislipidemia incluem: melhor prognóstico para os casos detectados; tratamentos, em geral, menos radicais e, consequentemente, menos caros; e tranqüilidade daqueles para os quais o resultado desse rastreio foi negativo. Por outro lado, as desvantagens incluem: geração de maior morbidade para casos cujo prognóstico não é modificável; tratamentos desnecessários de indivíduos com resultados duvidosos; falsa tranqüilização daqueles com testes falsos-negativos; ansiedade, com maior morbidade, naqueles com resultados falsos-positivos; e custos para a testagem, tanto para o indivíduo quanto para o sistema de saúde. Outrossim, resultados positivos podem demandar a utilização de medicações nem sempre disponíveis, tanto no âmbito privado (pelo alto custo) quanto no público. Sabe-se que no Brasil, menos de 50% da população têm acesso às medicações essenciais, o que pode tornar o tratamento das dislipidemias detectadas um problema. Na ausência de um programa formal de rastreio, como é o caso do Município de Pelotas, no Estado do Rio Grande do Sul (RS), o contrabalanço entre essas vantagens e desvantagens deve permear a decisão médica, no momento de solicitar esse ou outros testes para diagnóstico precoce em indivíduos assintomáticos. Para verificar a adequação da solicitação médica do perfil lipídico dos pacientes que atendiam aos critérios de rastreio trienal, este estudo avaliou a cobertura, o foco, os erros e a razão de rastreio entre a população maior de 20 anos de idade que teve acesso a consulta nos últimos três anos, na cidade de Pelotas-RS, de acordo com a forma de financiamento da consulta.

 

Objetivo

Medir a cobertura, o foco, verificar tipos de erros e avaliar fatores associados à solicitação médica do perfil lipídico em maiores de 20 anos de idade na cidade de Pelotas-RS, observando possíveis associações com a forma de financiamento da consulta (sistema público de saúde, privado ou convênio).

 

Metodologia

O estudo foi realizado em Pelotas, Município do Estado do Rio Grande do Sul com população estimada de 340.000 habitantes, 93% dos quais moradores na zona urbana. Foi utilizado o delineamento transversal, com base populacional, em adultos (20 anos ou mais de idade) moradores do perímetro urbano. Os domicílios sorteados foram visitados e questionários individuais aplicados por entrevistadoras treinadas e cegas quanto aos objetivos e hipóteses do estudo. Os questionários foram previamente testados em estudo-piloto conduzido em setor censitário não incluído por este estudo. Cerca de 10% das entrevistas foram refeitas por supervisores, com questionário reduzido, para fins de controle de qualidade. A variável 'Solicitação médica do perfil lipídico' foi obtida pela informação do entrevistado que havia se consultado com um médico, nos três anos anteriores à entrevista (excluindo consultas em serviços de emergência), sobre 'Ter tido exame de colesterol solicitado pelo médico em pelo menos uma ocasião'. A adequação da solicitação do exame de colesterol foi avaliada mediante análise da cobertura (proporção de pessoas que atendiam aos critérios de rastreio e que tiveram pelo menos um exame solicitado no período), foco (proporção de pessoas que se enquadravam nos critérios recomendados para o rastreio, entre todos os que realizaram o exame), razão de rastreio (divisão entre duas proporções: percentual do rastreio solicitado para pessoas que atendiam ao critério/percentual solicitado para quem não o atendia) e erros de testagem [solicitação de exame para aqueles com nenhum ou apenas um fator de risco, desde que não apresentassem diabetes mellitus ou DCV (a taxa de "sobre-rastreio"). E a adequação da não-solicitação, avaliada para aqueles com dois ou mais fatores de risco ou DM ou DCV estabelecidas (taxa de "sub-rastreio")]. As duas formas de financiamento da consulta médica incluíram o sistema público [quaisquer unidades do Sistema Único de Saúde (SUS)], convênios (planos de saúde ou sindicatos) ou particular (pagamento direto ao profissional). O local de consulta foi definido mediante questionamento de onde o indivíduo costuma procurar atendimento médico quando necessita de consulta. Foram excluídos dessas análises os indivíduos que citavam serviços de urgência/emergência ou hospitalares. Foram coletadas informações sobre os fatores de risco para DCV: sexo; idade (em anos completos); diagnóstico referido de diabetes mellitus e hipertensão arterial sistêmica (HAS); tabagismo; e história familiar. Utilizou-se o teste do qui-quadrado para as análises bivariadas, com o intuito de detectar associações entre forma de financiamento da consulta médica e solicitação do rastreio. Todas as análises consideraram a amostragem por conglomerados.

Considerações éticas

A pesquisa foi submetida e aprovada pelo Comitê de Ética em Pesquisa da Faculdade de Medicina da Universidade Federal de Pelotas. Todos os respondentes assinaram um Termo de Consentimento Informado.

 

Resultados

A amostra inicial continha 3.353 adultos. Em razão de perdas e recusas, que totalizaram 6,5%, foram entrevistadas 3.136 pessoas. Os indivíduos entrevistados eram, em sua maioria, mulheres (56,1%), brancos (84%), com média de idade de 44 anos [Desvio-padrão (DP) 16,4]. Em relação aos fatores de risco para DCV, 28,2% dos homens tinham 35 anos ou mais de idade e 27,1% das mulheres, 45 anos ou mais de idade. As prevalências referidas de HAS, diabetes mellitus e DCV foram, respectivamente, de 32,7%, 9,5%, e 9,3%. Cinqüenta e um por cento e 11,3% dos entrevistados relataram, respectivamente, história familiar e morte precoce de familiar por DCV. Entre os entrevistados, 26,7% eram fumantes. A prevalência de indivíduos que atendiam aos critérios de rastreio na população total do estudo foi de 55,6% (1.745 pessoas). Desses, 1.538 consultaram com médico nos últimos três anos e 1.535 lembraram a solicitação de exames. As consultas médicas foram oferecidas, sobretudo, a mulheres e nos níveis econômicos mais elevados. Entre os que se submeteram a consulta, independentemente do risco para DCV, a prevalência da solicitação de dosagem de colesterol foi de 61,3%. A cobertura da solicitação de rastreio do colesterol foi de 73,2%; e o foco, de 67,2%. A razão de rastreio foi de 1,59, indicando ser quase 60% mais provável que o exame fosse solicitado para quem apresentasse fatores de risco do que para quem não os apresentasse. Mais de um quarto das pessoas que atendiam aos critérios de rastreamento (27,0%), entretanto, não foi testada (taxa de sub-rastreio). Por outro lado, 549 pessoas que não atendiam aos critérios tiveram o teste solicitado: uma taxa de sobre-rastreio de 46%. O total de erros de testagem foi de 35,2%. Separando-se as consultas pelas diferentes categorias de financiamento, observou-se que a maioria foi disponibilizada pelo sistema público (1.511 pessoas), correspondendo a 51,1% do total. O número médio de consultas diferiu entre essas categorias, sendo maior no SUS (23,3; DP 32,3) do que nos convênios ou particulares (16,4; DP 23,7) (p<0,001), no período de três anos. A prevalência de indivíduos que atendiam ao critério de rastreio trienal foi diferente entre as modalidades de financiamento, sendo de 58,4% (IC95% 56,4-61,3) entre os que consultavam no SUS e de 52,7% (IC95% 50,1-55,2) nas consultas por convênio/particulares. No sistema público de saúde, a cobertura foi de 65,2%, com 74,7% de foco. Trinta e quatro por cento das solicitações foram inadequadas. Ao verificar-se o tipo de erro, o mais comum observado (34,8%) foi o de não solicitar o exame aos que atendiam ao critério de risco (sub-rastreio). A taxa de sobre-rastreio (solicitar aos que não precisavam) foi de 33,1% e a razão de rastreio, de 1,97. Nas consultas pagas por convênios ou particulares, comparativamente às do setor público, a cobertura foi maior (82,2%) e o foco menor (62,3%). Quanto aos erros de testagem, observou-se que 35,9% das solicitações foram inadequadas. Nestas consultas, o sobre-rastreio foi mais freqüente que o sub-rastreio (56,4% versus 17,8%). A razão de rastreio foi de 1,46.

 

Conclusões, recomendações e impacto potencial dos resultados em Saúde Pública

A solicitação do perfil lipídico mostrou-se influenciada por fatores externos a critérios técnicos exclusivamente. A cobertura total de 73% indica que poucas pessoas deixaram de realizar o rastreio; quando outros parâmetros são estudados, entretanto, as diferenças aparecem. Talvez a principal seja a de que a cobertura aumenta com o envolvimento de custo direto da consulta, ou seja, quanto mais envolvimento de pagamentos na consulta (seja sob forma de convênio ou particular), maior a cobertura. O sistema público rastreia menos que o privado, embora, quando o faz, tem melhor foco. Uma hipótese para essa diferença é a de que os médicos, ao atenderem no setor público, podem estar menos atentos à prevenção de doenças crônicas do que quando atuam nos demais setores. O maior foco, por outro lado, pode estar indicando que o profissional que trabalha no SUS é mais criterioso ao pedir exames complementares, devido aos custos, cotas ou tetos financeiros. As taxas de erro são semelhantes; porém, 'Precisar e não fazer' é mais freqüente no setor público, enquanto 'Não precisar e fazer' é mais freqüente no setor privado. Isso se deve, possivelmente, ao fato de esses modelos assistenciais, embora sob controle de gastos com exames complementares, não são tão rigorosos em sua economia quanto no SUS. No setor privado, a probabilidade de indivíduos sem critérios serem rastreados é 3,2 vezes maior que a de indivíduos com critérios não serem rastreados; diferentemente do observado no setor público, em que essa razão foi de 0,95. Compreende-se que seja mais fácil solicitar exames aos pacientes de convênios ou particulares, independentemente do nível de risco, gerando maiores custos e aumentando o risco de iatrogenia. Pode-se inferir, outrossim, que há formas diferentes de atenção à população, em relação à solicitação do perfil lipídico, nos diferentes locais de consulta. No setor público, as probabilidades de sobre e sub-rastreio são praticamente as mesmas e a razão de rastreio – um indicador de qualidade no rastreio, refletindo maior ou menor adequação –, ou seja, a probabilidade de atender ao critério entre os rastreados é duas vezes maior que a de não atender. No SUS, a disponibilidade de antilipemiantes é escassa e o acesso a esse tipo de medicamento, limitado. A avaliação da adequação da solicitação do perfil lipídico na população pode fornecer informações importantes sobre o cumprimento de protocolos de rastreamento e acompanhamento das dislipidemias, em diferentes sistemas de saúde e, em um mesmo sistema, sob formas diferentes de financiamento. Como no Brasil, ainda não foram definidos os rumos a se tomar no sentido do rastreamento da dislipidemia em nossa população, avaliações desse tipo proporcionam a oportunidade de diagnosticar desigualdades e planejar ações que garantam a qualidade do cuidado da forma mais equânime possível. Para melhorar o perfil de morbimortalidade por DCV da população, os serviços de saúde precisam incorporar à prática cotidiana ações preventivas, cuja efetividade tenha sido demonstrada.