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Epidemiologia e Serviços de Saúde
versão impressa ISSN 1679-4974versão On-line ISSN 2237-9622
Epidemiol. Serv. Saúde v.17 n.2 Brasília jun. 2008
http://dx.doi.org/10.5123/S1679-49742008000200014
RESUMO
PRÊMIO DE INCENTIVO AO DESENVOLVIMENTO E À APLICAÇÃO DA EPIDEMIOLOGIA NO SUS MENÇÃO HONROSA ESPECIALIZAÇÃO
Cárie dentária em crianças indígenas Xakriabá
Adyler Duarte Diab; Simone Dutra Lucas (Orientadora)
Faculdade de Ciências da Saúde, Universidade de Brasília, Brasília-DF, Brasil
Introdução
O presente estudo foi desenvolvido em escolas indígenas da reserva Xakriabá, localizada no Município de São João das Missões, norte do Estado de Minas Gerais (MG). Com uma área aproximada de 54.000 ha., o Município possui um dos menores índices de desenvolvimento humano (IDH) do Estado. A etnia conta com 6.498 indivíduos, dos quais 5.498 encontram-se distribuídos em 42 aldeias localizadas na reserva indígena; o restante dessa população reside em quatro aldeias situadas fora da reserva (Funasa, 2006). Essa é a maior etnia indígena presente em Minas Gerais.
O serviço de saúde bucal destinado à população indígena iniciou-se sob a responsabilidade da Fundação Nacional do Índio (Funai), com atendimentos esporádicos. Por volta de 1999, essa responsabilidade era da prefeitura municipal; posteriormente, foi transferida para a Fundação Nacional de Saúde (Funasa). No início, os trabalhos eram realizados em dois consultórios instalados no Pólo-base de Brejo Mata Fome, para atender todo o povo Xakriabá, onde trabalhavam dois cirurgiões-dentistas, três médicos, três enfermeiros e três auxiliares. Posteriormente, com a criação do Pólo-base de Sumaré, este recebeu um dos consultórios do Pólo-base de Brejo Mata Fome e conta, atualmente com um cirurgião-dentista, um atendente de consultório dentário e diversos agentes indígenas de saúde – AIS (Mota, 2006). Na atualidade, as ações de saúde dirigidas a essa população indígena são encarregadas à Funasa e realizadas por intermédio do Distrito Sanitário Especial Indígena – DSEI MG/ES – e da Secretaria Municipal de Saúde de São João das Missões-MG.
O ponto de partida deste estudo é a afirmação de que os levantamentos ou inquéritos epidemiológicos em saúde bucal são considerados estudos transversais, que possibilitam um retrato da situação de saúde de uma população. Pela situação das condições das doenças bucais, é possível realizar um planejamento ou modificação dos serviços de saúde bucal, além de monitorar sua eficácia (OMS, 1999).
No Brasil, é muito pouco conhecida a epidemiologia da saúde bucal entre povos indígenas, constatação que reflete um quadro geral de desconhecimento sobre as condições de saúde dessas populações (Coimbra Jr. & Santos, 2000). Estudos epidemiológicos de saúde bucal nas populações indígenas brasileiras abordam, principalmente, a ocorrência de lesões de adornos labiais e as várias relações entre hábitos alimentares e culturais e saúde bucal (Blanco Pose, 1993). Neste levantamento epidemiológico de crianças escolares indígenas Xakriabá, obteve-se o índice de cárie para a dentição decídua (ceo-d) aos seis anos e o índice de dentes cariados, perdidos e obturados (CPO-D) aos 12 anos de idade. Esses índices, originalmente formulados por Klein e Palmer em 1937 e os mais utilizados em todo o mundo, permitem medir o ataque de cárie por dente e são referência para diagnóstico das condições dentais e para formulação e avaliação de programas de saúde bucal. Também foi medido o percentual de crianças livres de cárie aos seis anos de idade. A opção pela análise do percentual de crianças livres de cárie aos seis anos – ceo-d – e do CPO-D aos 12 anos (OMS, 1978; FDI, 1982) deve-se ao fato de a política nacional priorizar crianças na escola e à significativa prevalência da doença cárie nessas faixas etárias. Pretendeu-se avaliar a política de saúde desenvolvida, orientar o planejamento futuro e melhorar a qualidade de vida dessa população.
Esta pesquisa, cuja hipótese central é a existência de desigualdades no nível de saúde bucal da população indígena, visa contribuir para o entendimento de fatores associados a variações nos níveis de CPO-D médio aos 12 anos de idade, no sentido de cumprir a meta da Organização Mundial da Saúde (OMS) – CPO-D igual ou inferior a três, aos 12 anos, e proporções definidas de crianças livres de cárie aos seis anos de idade.
O trabalho baseia-se em observações individuais sobre crianças indígenas escolares de seis e de 12 anos de idade. Vale ressaltar que a economia-base dessa população indígena é agrária e a água que ela bebe não é fluoretada. Teria esse povo cumprido as metas da OMS para os 12 e para os seis anos de idade, para efeito de comparações internacionais em localidades onde crianças ingressam nas escolas nessa idade (OMS, 1999)?
Objetivos
Objetivo geral
Obter informações sobre as condições de saúde bucal (cárie dental) em crianças escolares indígenas Xakriabá.
Objetivos específicos
I. Identificar o acesso de crianças escolares indígenas Xakriabá de seis e de 12 anos de idade ao serviço de saúde bucal mediante a análise dos dentes obturados e extraídos.
II. Compreender a situação da cárie dental nessa população mediante a análise da composição interna do índice CPO-D, ceo-d e do percentual de crianças livres de cárie aos seis anos de idade.
III. Determinar a gravidade da cárie dental na população estudada.
Metodologia
Conforme já apresentado, este trabalho contempla a compreensão da situação de cárie dental em escolares indígenas Xakriabá nas idades de seis e 12 anos, mediante a análise da composição interna dos índices CPO-D e ceo-d e do percentual de crianças livres de cárie aos seis anos de idade.
O estudo, de base individual e do tipo transversal, baseia-se em dados primários.
Para o estudo de base individual, foi analisada uma população escolar indígena, localizada em um Município de baixo índice de desenvolvimento humano – IDH –, sem água fluoretada e com pouco investimento no modelo assistencial em saúde bucal.
Na etnia indígena selecionada, a amostra foi de conveniência, considerando crianças das maiores escolas localizadas nas áreas de Brejo Mata-Fome e de Sumaré, que possuem unidades de atendimento odontológico; e na aldeia Rancharia, que não possui assistência odontológica para efeitos de comparação.
No caso de uma criança selecionada não ter comparecido ao exame, foi sorteada outra e enviado o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido aos respectivos pais, para formalização de sua autorização.
Como não há estudos preliminares confiáveis, a amostra é composta de 50% de escolares indígenas matriculados nas idades de seis e 12 anos. Foram examinadas 102 crianças de seis anos e 56 crianças de 12 anos de idade.
O processo de recrutamento das crianças escolares indígenas envolveu algumas etapas:
- contato com o Conselho Local Indígena;
- contato com a Secretaria Municipal de Saúde;
- contato com a Funasa;
- levantamento das escolas com crianças de seis e 12 anos de idade, localizadas nas aldeias assistidas pelos Pólos-base de Brejo Mata Fome e de Sumaré e na aldeia Rancharia;
- contato com os diretores das escolas;
- obtenção da lista das crianças por escola e sorteio das crianças;
- contato com os pais e/ou responsáveis, para obtenção de seu consentimento livre e esclarecido.
Participaram deste estudo as seguintes escolas destinadas às crianças de seis e 12 anos de idade: Escola Estadual Indígena Xukurank; Escola Estadual Indígena Bukinuk; Escola Estadual Indígena Bukimuju; e Escola Estadual Indígena Kuhinãn. Elas estão localizadas nas aldeias Barreiro e Sumaré, que pertencem à área atendida pelo Pólo-base de Sumaré, e às de Brejo Mata-Fome e Imbaúbas, pertencentes à área do Pólo-base de Brejo Mata Fome, além da aldeia Rancharia, que não possui unidade de saúde específica.
A coleta de dados do estudo de base individual envolveu a realização do exame clínico das crianças. Seria difícil contar com um único examinador para a população indígena envolvida na pesquisa. Diante disso, o autor do projeto foi calibrado juntamente com duas acadêmicas do Curso de Graduação da Faculdade de Odontologia da Universidade Federal de Minas Gerais (FOUFMG).
Para calibração interexaminadores, na Escola Municipal Teodomiro Corrêa, São João das Missões-MG, foram examinadas dez crianças com seis anos e seis crianças com 12 anos de idade, totalizando 16 exames de crianças que receberam escovação dentária supervisionada anteriormente aos exames clínicos. Após cada exame, os diagnósticos eram comparados: em caso de discordância, o exame era refeito com o objetivo de obter a concordância entre os examinadores.
A estatística Kappa, que mede a concordância, foi de 95%, obtendo-se um conceito ótimo. (Pereira, 2000). Os exames foram realizados à luz natural, sem o uso de sonda exploradora, de maneira a preservar a privacidade dos examinados. As normas de biossegurança foram devidamente obedecidas. Os seguintes instrumentos e suprimentos foram utilizados: espelhos clínicos; pinças clínicas; recipientes para instrumentos estéreis contaminados; toalhas de papel; luvas; gorros; e máscaras descartáveis.
A equipe de trabalho foi composta pelo cirurgião-dentista da equipe de saúde do Pólo-base de Sumaré, acadêmicas da Faculdade de Odontologia da Universidade Federal de Minas Gerais, alunas indígenas Xakriabá do Curso Técnico em Higiene Dental e motoristas da Funasa.
Os resultados e comparações, feitas com ferramentas estatísticas, estão apresentadas no apartado Resultados deste relato. Os softwares estatísticos utilizados para realização desta análise foram o MINITAB e o SPSS, além do Microsoft Excel para montagem do banco de dados.
Considerações éticas
Inicialmente, a pesquisa foi submetida à apreciação do Conselho Local Indígena das comunidades envolvidas, recebendo sua aprovação. O Termo de Consentimento Livre e Esclarecido, com explicações sobre o plano de trabalho e a viabilidade do estudo, foi enviado para: Conselho Distrital Indígena MG/ES; Fundação Nacional de Saúde; Secretaria Municipal de Saúde de São João das Missões-MG; Diretores das Escolas Indígenas envolvidas; e pais e/ou responsáveis pelas crianças escolares participantes. Após esses procedimentos e as autorizações devidamente assinadas, o estudo foi avaliado pelo Comitê de Ética da Faculdade de Ciências da Saúde, da Universidade de Brasília, obtendo sua aprovação.
Resultados
A área com o menor índice ceo-d aos seis anos de idade é a do Pólo-base de Brejo Mata Fome, onde as crianças possuem, em média, três dentes comprometidos. A criança que possui o menor e o maior número de dentes comprometidos possui zero e 12 dentes, respectivamente. Ademais, para esse Pólo-base, o desvio-padrão também é o menor (aproximadamente três dentes), indicando a menor variabilidade entre os dados.
Segundo a análise descritiva para o CPO-D aos seis anos de idade, observou-se média de zero dentes comprometidos. Porém, a área que apresenta a maior média e desvio-padrão é a de Brejo Mata Fome, onde a criança que possui o menor e o maior número de dentes comprometidos possui zero e quatro dentes, respectivamente. O Pólo-base que possui o menor índice ceo-d, o de Brejo Mata Fome, também possui o maior índice CPO-D. As áreas do Pólo-base de Sumaré e da aldeia Rancharia apresentam, aproximadamente, os mesmos índices ceo-d e CPO-D.
O Pólo-base que apresenta o maior percentual de crianças livres de cárie aos seis anos de idade é o de Brejo Mata Fome (35% das crianças livres de cárie), seguido da aldeia Rancharia (aproximadamente 11% das crianças livres de cárie). O Pólo-base de Sumaré apresenta percentual de crianças livres de cárie aos seis anos de 4%, aproximadamente. Se analisarmos todo o conjunto estudado, independentemente da aldeia, apenas cerca de 24% das crianças estão livres de cárie aos seis anos de idade.
O Pólo-base que soma o menor índice CPO-D aos 12 anos de idade é o de Brejo Mata Fome. Porém, ao arredondar os valores das médias, conclui-se que os Pólos-base e a aldeia Rancharia apresentam, em média, o mesmo número de dentes comprometidos: aproximadamente três. A criança que possui o menor e o maior número de dentes comprometidos na área coberta pelo Pólo-base de Sumaré, como também na do Pólo-base de Brejo Mata Fome, possui zero e nove dentes comprometidos, respectivamente. Para a aldeia Rancharia, a criança que possui o menor e o maior número de dentes comprometidos possui zero e oito dentes, respectivamente. Aqui, também parece não existir diferença estatisticamente significante entre os dois Pólos-base e a aldeia, quanto ao desvio-padrão.
Quanto ao percentual de dentes hígidos, cariados, perdidos e obturados registrados por cada um dos Pólos-base e da aldeia Rancharia aos seis anos de idade, nota-se que o maior percentual de dentes decíduos cariados é o apresentado pelo Pólo-base de Sumaré (aproximadamente 92% das crianças), seguido da aldeia Rancharia (cerca de 90% das crianças) e do Pólo-base de Brejo Mata Fome (cerca de 65% das crianças). Ao se observar os dentes permanentes cariados, nota-se que a localidade que apresenta o maior percentual é Rancharia – aproximadamente 17% das crianças –, seguida de Sumaré e de Brejo Mata Fome, ambas com cerca de 13% de suas crianças nessa condição.
Quanto ao percentual de dentes hígidos, cariados, perdidos e obturados aos 12 anos de idade registrado nos Pólos-base e em Rancharia, esta aldeia é a que apresenta o maior percentual de dentes decíduos cariados (aproximadamente 25% das crianças), seguida do Pólo-base de Sumaré (cerca de 14% das crianças) e do Pólo-base de Brejo Mata Fome (cerca de 13% das crianças). Ao se observar os dentes permanentes cariados, o Pólo-base que apresenta o maior percentual é o de Sumaré (aproximadamente 93% das crianças), seguido da aldeia Rancharia e do Pólo-base de Brejo Mata Fome (cerca de 83% e 80% das crianças, respectivamente).
Conclusões, recomendações e impacto potencial dos resultados em Saúde Pública
Neste estudo de cáries em crianças atendidas pelos Pólos-base de Sumaré e de Brejo Mata Fome e da aldeia Rancharia, somente o Pólo-base de Brejo Mata Fome e Rancharia cumpriram a meta da OMS referente à idade dos 12 anos. Na observância do índice CPO-D para crianças de 12 anos de idade, não se apresentou diferença significativa, estatisticamente, entre as três aldeias estudadas, cujo comportamento foi similar para esse índice e faixa etária.
O fato de haver ou não atendimento odontológico não interferiu no CPO-D, haja vista os Pólos-base e a aldeia apresentaram, em média, os mesmos valores para esse índice.
Ao analisar o índice ceo-d para crianças de seis anos de idade, o estudo mostrou que o Pólo-base de Brejo Mata Fome contou menor índice que o de Sumaré e a aldeia Rancharia, embora a diferença entre eles não tenha sido significante, estatisticamente. O fato de haver atendimento odontológico também não interferiu no achado, pelo menos no Pólo-base de Sumaré – onde existe esse atendimento, cujo índice foi equivalente ao da aldeia Rancharia, que não dispõe dessa atenção. Para o Pólo-base de Brejo Mata-Fome, esse índice foi estatisticamente diferente, inferior ao de Sumaré e da aldeia Rancharia – seja, portanto, com ou sem atendimento odontológico.
No que concerne ao papel desempenhado pelos serviços odontológicos sobre o nível de saúde bucal, os resultados deste trabalho não indicam associações significativas. Pode-se, entretanto, especular sobre o acesso de crianças de 12 anos de idade aos serviços de saúde bucal a partir da importância do componente 'C' (dentes cariados) na determinação do CPO-D, redundando em baixo impacto dos serviços sobre a situação de saúde (Nadanovsky & Sheiham, 1994).
O Pólo-base de Sumaré apresentou os maiores índices CPO-D e ceo-d e o menor percentual de crianças de seis anos de idade livres de cárie. São dados sugestivos da seguinte hipótese: as crianças atendidas nesse Pólo-base, pelo maior acesso a produtos industrializados, comparativamente às do Pólos-base de Brejo Mata Fome e da aldeia Rancharia, submetem-se a uma dieta cariogênica.
Em relação aos 50% de crianças livres de cárie aos seis anos de idade, nenhum Pólo-base atingiu essa meta. Alcançar a meta para os 12 anos é mais comum do que cumprir a meta para os seis anos de idade. Possivelmente, o fato está relacionado à ausência de escovação com dentifrício fluoretado até seis anos de idade, medida que passa a ser adotada quando as crianças entram na escola.
A busca de explicações sobre os determinantes da situação de saúde bucal deve ser mais aprofundada, em próximos estudos, para permitir que os planejadores tenham maior clareza sobre como enfrentar os problemas de saúde bucal com mais eqüidade. Isso porque há diferenças no acometimento da cárie na população, segundo esses determinantes.
Os dados desta pesquisa não podem ser generalizados para todas as etnias indígenas. Pode-se dizer, sim, que medidas coletivas e a concessão de prioridade para os serviços de saúde bucal, quando assumidas pelos gestores responsáveis, podem alcançar um controle de cárie dental na população.
Entre os Pólos-base e a aldeia examinados, somente Brejo Mata Fome alcançou a meta definida para a idade de 12 anos – não para as crianças livres de cárie aos seis anos de idade. Conclui-se que as medidas coletivas utilizadas não foram suficientes para alcançar níveis aceitáveis de saúde bucal nas populações estudadas, sendo necessária a adoção de instrumento mais efetivo nos procedimentos preventivos.
Para a etnia abordada, fica evidente a ausência de cirurgiões-dentistas e/ou de um modelo assistencial organizado de forma a articular procedimentos curativos e preventivos em todos seus Pólos-base. Também é necessária a distribuição de escovas e cremes dentais fluoretados para todos os Xakriabás. Essas iniciativas, de grande impacto e baixo custo, são mais efetivas que medidas individuais, as quais dificilmente cobrem toda a população.
Para os Xakriabás, fazem-se mister ações de saúde integradas entre todos os setores que atuam nessa reserva indígena, na perspectiva da busca da prevenção e promoção da saúde de sua população.