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Epidemiologia e Serviços de Saúde

versão impressa ISSN 1679-4974versão On-line ISSN 2237-9622

Epidemiol. Serv. Saúde v.17 n.3 Brasília set. 2008

http://dx.doi.org/10.5123/S1679-49742008000300005 

ARTIGO ORIGINAL

 

Assistência ao parto normal no Estado de Pernambuco: aspectos geográficos, socioeconômicos e profissionais, com ênfase no papel da enfermeira

 

Care to Normal Deliveries in the State of Pernambuco: Geographic, Socioeconomic and Professional Aspects, Emphasizing the Role Played by Nurses

 

 

Maria de Fátima Costa CaminhaI; Maria Cristina dos Santos FigueiraI; Lannuze Gomes de Andrade dos SantosI; Emídio Cavalcanti de AlbuquerqueI; Pedro Israel LiraII; Malaquias Batista FilhoI

IInstituto Materno-infantil Professor Fernando Figueira, Recife-PE, Brasil
IIInstituto de Nutrição, Universidade Federal de Pernambuco, Recife-PE, Brasil

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Analisou-se a assistência ao parto normal prestada por diferentes agentes profissionais segundo aspectos geográficos e socioeconômicos das mulheres atendidas. Utilizou-se o banco de dados da II Pesquisa Estadual de Saúde e Nutrição (1997), mediante inquérito de base populacional de 2.078 crianças menores de cinco anos de idade, das quais 1.459 mães tiveram parto normal, na Região Metropolitana do Recife, Estado de Pernambuco, Brasil, no Interior Urbano e no Interior Rural. Constatou-se que 52,2% dos partos foram assistidos por parteiras, 34,5% por médicos e 13,2% por enfermeiras (os). A distribuição dos atendimentos por categorias profissionais variou significativamente, em função do espaço geográfico, renda familiar, escolaridade das parturientes e acesso às consultas de pré-natal. Conclui-se que a assistência ao parto normal era substancialmente condicionada por fatores socioeconômicos e ambientais da clientela. O estudo representa uma linha de base para nova avaliação, dez anos após.

Palavras-chave: parto normal; desigualdades em saúde; recursos humanos em saúde.


SUMMARY

The study analyzed the assistance to normal delivery by different health professionals, according geographic and socioeconomic aspects of the women assisted. Database from the II State Research on Health and Nutrition (1997) was utilized from a survey based on a population of 2,078 children less than five years of age, among whom 1,459 mothers had experienced normal delivery, from the Metropolitan Area of the Municipality of Recife, State of Pernambuco, Brazil, in the inland both Urban and the Rural areas. It was found that 52.2% of deliveries were assisted by midwives, 34.5% by doctors and 13.2% by nurses. Care distribution according to professional category varied significantly due to geographic location, family income, parturient's schooling, and previous access to pre-natal treatments. It was concluded that assistance to normal delivery was substantively conditioned by socioeconomic and environmental factors. The study represents a baseline for a new assessment after ten years.

Key words: normal delivery; health inequalities; human resources in health.


 

 

Introdução

O segmento materno-infantil representa, demograficamente, o principal componente biológico da população brasileira. Em conjunto, crianças, adolescentes e mulheres no período reprodutivo somam aproximadamente, 63% do atual efetivo demográfico do país.1 O acompanhamento da evolução dos indicadores aplicados a esse segmento populacional é essencial para avaliar o impacto de mudanças sociais e econômicas, assim como de avanços ou eventuais retrocessos na disponibilidade e qualidade dos serviços de saúde.2,3

A mortalidade materna é, em termos relativos, o indicador epidemiológico mais distintivo da situação de saúde entre países pobres e nações desenvolvidas como conseqüência de complicações relacionadas ao ciclo gravídico-puerperal.4 Exemplificando: em Serra Leoa (África) e no Afeganistão (Ásia), a mortalidade materna para cada 100.000 partos no ano 2000 situava- se, respectivamente, em 2.000 e 1.900 óbitos. Em contraposição, o mesmo indicador aplicado à Eslováquia expressava uma mortalidade materna de 3/100.000, enquanto na Suécia morriam duas mulheres em 100.000 partos. Isso significa uma razão de mortalidade materna exatamente 1.000 vezes mais elevada na comparação dos resultados extremos de Serra Leoa e da Suécia. No bloco dos países industrializados, a mortalidade materna atinge 13 mulheres para cada 100.000 partos, resultando em uma razão 68,5 vezes maior que nos países menos desenvolvidos (890/100.000). Já em relação à mortalidade infantil, a razão de prevalência entre países menos desenvolvidos (182/100.000) e países industrializados (10/100.000) é de 18,2 vezes.5 Este fato também demonstra a importância da mortalidade infantil como fator fundamental de distinção de níveis de saúde entre povos e regiões.

No Brasil, ainda segundo o Fundo das Nações Unidas para a Infância (UNICEF), a mortalidade materna relatada seria de 72/100.000 nascidos vivos; ou de 260/100.000 nascidos vivos, se se fizer o ajustamento do indicador conforme explicitado na fonte citada.5 Em realidade, as estatísticas oficiais do Brasil referentes à mortalidade materna acham-se comprometidas pelo viés da subnotificação, conforme reconhece o próprio Ministério da Saúde.6 Ademais, a situação do indicador no Brasil e na Região Nordeste praticamente manteve-se inalterada entre 1996 e 2001. Ao lado das desigualdades socioeconômicas, os cuidados prestados às mulheres durante a gravidez e o parto implicam os grandes fatores diferenciais dessas estatísticas, haja vista os indicadores econômicos do país, por exemplo, serem bem melhores que os encontrados em Cuba e na Costa Rica, onde a mortalidade materna é, respectivamente, duas e cinco vezes menor que no Brasil.6

Admite-se, portanto, que a grande maioria das mortes maternas seja evitável desde que se oriente e atenda as mulheres eficazmente; e que as ações de saúde, oportunamente aplicadas, possam reverter grande parte dos fatores determinantes de risco que demarcam essas diferenças sociais e regionais no parto, mediadas por condições socioeconômicas e ambientais desfavoráveis.7

Na década de 1970, a Organização Mundial da Saúde (OMS) instituiu metas para reduzir as desigualdades de acesso aos serviços básicos de saúde das populações dos países em desenvolvimento.8,9 Entre essas metas e estratégias, figuram a extensão da cobertura dos serviços de saúde e a melhoria do ambiente, a organização e participação da comunidade com vistas a seu bem-estar, a articulação intersetorial, o desenvolvimento da pesquisa e de tecnologias apropriadas, a produção e disponibilidade de produtos e equipamentos especializados, a formação e utilização de recursos humanos, o financiamento setorial e a cooperação internacional.10

Nessa perspectiva, é interessante avaliar o desempenho e as desigualdades na atenção à saúde, como cuidados pré-natais, assistência ao parto e cobertura vacinal dos grupos vulneráveis, entre outros.11,12 Com o propósito de resgatar a qualidade e humanizar a assistência ao nascimento e ao parto, a OMS elaborou recomendações, entre as quais se destaca que qualquer intervenção dever-se-ia respaldar por uma razão fundamentada, e que o prestador de serviços no parto normal deveria ser capacitado para tal função. A(o) enfermeira(o) obstétrica(o) encontra-se entre os profissionais-provedores de cuidados primários de saúde mais adequados a essa função, recomendando-se uma maior participação dessa(e) profissional na assistência à gestante de baixo risco e ao parto normal sem distocia.13

Apesar da orientação da OMS, permanecem marcantes divergências, de modo que nem todas as recomendações são aceitas de forma consensual pelos diferentes profissionais, tanto enfermeiras(os) como médicos(as) obstetras. Ademais, a superposição de funções gera conflitos de poder e de atribuições específicas entre esses profissionais. Tal relacionamento conflituoso, provavelmente, é motivado pelo contexto histórico e social da construção de relações entre essas categorias profissionais, ao lado de aspectos socioeconômicos e culturais próprios de cada tempo e espaço geográfico.14 Nas Regiões Norte e Nordeste do Brasil, por exemplo, as parteiras tradicionais cumprem importante papel na saúde dessas mulheres,15 principalmente das moradoras em áreas de difícil acesso, prestando assistência ao parto normal domiciliar.16

Dada a relevância da assistência ao parto normal, torna-se importante identificar o papel dos diferentes profissionais responsáveis por seu atendimento no Estado de Pernambuco, em função das áreas geográficas [Região Metropolitana do Recife (RMR), Interior Urbano (IU) e Interior Rural (IR)], escolaridade materna, renda familiar per capita e exames pré-natais, para se ter uma linha de base e a posteriori compará-la com os resultados da III Pesquisa Estadual de Saúde e Nutrição (III PESN) do Estado de Pernambuco, já relatada ao Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) do Ministério da Ciência e Tecnologia (outubro de 2007); ou ainda, com outros estudos, análises e avaliações sobre a assistência materno-infantil. Espera-se que o presente estudo contribua para o planejamento das ações assistenciais no sentido da promoção do papel da(o) enfermeira(o) e de outros profissionais na assistência ao parto normal. Trata-se de um tema em que sua participação singular seja relevante, segundo as condições socioambientais e as perspectivas da boa utilização de tecnologias apropriadas para cada situação concreta.

 

Metodologia

Este estudo foi realizado a partir de banco de dados da II Pesquisa Estadual de Saúde e Nutrição (II PESN),17 com informações colhidas entre fevereiro e maio de 1997, graças à parceria entre o Instituto Materno-infantil Professor Fernando Figueira (IMIP) e o Departamento de Nutrição da Universidade Federal de Pernambuco (DN/UFPE). Os autores também contaram com o apoio da Secretaria de Saúde do Estado de Pernambuco (SSE-PE) e o financiamento do antigo Instituto Nacional de Alimentação e Nutrição.

O objetivo básico da II PESN foi estudar o perfil de saúde e nutrição de crianças menores de cinco anos de idade e de mulheres em idade reprodutiva (dez-49 anos), mediante inquérito de base populacional, tendo a criança como referência, a família como unidade de observação e o setor censitário da Fundação Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) como espaço físico amostral. O estudo, de tipo transversal, utilizou-se de nove formulários.

Para este trabalho, particularmente, foram selecionadas, em função da hipótese e dos objetivos estabelecidos, variáveis incluídas no Formulário 1 [área geográfica do domicílio, categorizada como Região Metropolitana do Recife, Interior Urbano (IU) e Interior Rural (IR)], no Formulário 2 (escolaridade materna, em anos), no Formulário 3 (renda per capita em salários mínimos) e no Formulário 4 (profissional que assistiu ao parto normal, categorizado como enfermeira(o), parteira(o) e médico(a); e número de consultas de pré-natal).

A amostra utilizada na II PESN é representativa do Estado de Pernambuco em três espaços geográficos (Região Metropolitana do Recife; Interior Urbano; e Interior Rural), tendo como referência de estimativa estatística os atributos básicos da pesquisa original [I Pesquisa Estadual de Saúde e Nutrição (I PESN)].18 A II PESN, aqui utilizada, compreendeu uma amostra de 1.431 domicílios, totalizando 7.748 pessoas, entre as quais 2.078 crianças menores de cinco anos e 2.280 mulheres em idade reprodutiva. Das mães das crianças menores de cinco anos incluídas na amostra, 1.459 tiveram parto normal e constituíram a amostra aqui estudada. Em alguns casos, a exemplo da assistência pré-natal, não há informações devidamente registradas sobre todos os casos pesquisados, de modo que o cruzamento de variáveis não se aplica integralmente à amostra. Na amostra final estudada, ou seja, de 1.459 partos, não foram incluídos os casos de parto normal cujas mães desconheciam o profissional que as assistiu ou outras pessoas que lhes prestaram atendimento – policial, motorista, bombeiro, vizinho, marido, etc.– não relacionadas às três categorias de profissionais de saúde.

Realizada em 1997, a II PESN abrangeu um conjunto de 18 Municípios, entre os quais cinco pertencentes à Região Metropolitana do Recife (Recife; Cabo de Santo Agostinho; Jaboatão dos Guararapes; Olinda; e Paulista) e 13 do interior do Estado (Belém de São Francisco; Bodocó; Caruaru; Camocim de São Félix; Goiana; Itaíba; Itaquitinga; Orobó; Palmares; Panelas; Ribeirão; São Bento do Una; e Triunfo). Com exceção dos Municípios circunscritos à Região Metropolitana do Recife, todos os demais foram estudados em dois estratos: urbano e rural.

Para o processamento dos dados da II PESN, empregou- se o software Epi Info versão 6.04.b, com dupla entrada de dados. A partir desse banco de dados, foram selecionadas as variáveis de interesse que permitiram descrever o papel da enfermagem e de outros serviços profissionais no conjunto de atividades que constituem a assistência ao parto normal em Pernambuco.

A análise comparativa dos resultados foi realizada pelo teste do qui-quadrado. Adotou-se o nível de significância de 5% para a rejeição da hipótese de nulidade. Os dados foram processados pelo software SPSS para Windows, versão 13.1 (SPSS Inc., Chicago, IL, USA).

 

Considerações éticas

Esta pesquisa está de acordo com a Declaração de Helsinque e com as normas da Resolução No 196/96, da Comissão Nacional de Ética em Pesquisa/Conselho Nacional de Saúde (Conep/CNS). O projeto foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa em Seres Humanos do Instituto Materno-infantil Professor Fernando Figueira, em Reunião Ordinária realizada no dia 14 de junho de 2007 (Projeto de pesquisa No 991).

 

Resultados

Em nível estadual, das 1.459 mães que tiveram partos normais, pouco mais de 1/3 (34,5%) foi assistida por médicos. A participação dos médicos nesse tipo de atendimento alcançou 73,3% na Região Metropolitana do Recife e 10,0% na zona rural do Estado. A atuação das parteiras que atenderam mais da metade de todos os partos normais em nível estadual predominava no meio rural (73,6% dos casos), mantendo-se elevada (59,7%) em relação às mães do meio urbano do interior. Nas três situações, a assistência prestada pela(o) enfermeira(o) representou a menor parcela do atendimento: 13,2% para todo o Estado e 8,5% para a Região Metropolitana do Recife. As diferenças encontradas nos percentuais de assistência ao parto normal pelas três categorias de profissionais de saúde, conforme descreve a Tabela 1, foram estatisticamente significativas (p<0,001).

 

 

A participação do médico na assistência ao trabalho de parto normal aumentava com o nível de escolaridade das mães, elevando-se de 16,8% em relação às que nunca freqüentaram a escola para 58,3% nas parturientes com o Segundo Grau completo ou com nível superior de educação formal. De forma inversa, a participação da parteira foi registrada em 67,7% dos casos de parto normal referentes às mães sem qualquer educação formal, baixando para 33,3% de assistência ao estrato de escolaridade mais elevada. A contribuição relativa dos profissionais de enfermagem na assistência ao parto normal apresentou, dentro do respectivo grupo profissional, variações percentuais menos expressivas. De acordo com a Tabela 2, as diferenças resultantes dos níveis de escolaridade materna na distribuição da assistência segundo os profissionais responsáveis pelo atendimento foram estatisticamente significativas (p<0,001).

 

 

Na Tabela 3, são descritos os resultados do atendimento ao parto normal em função da renda per capita familiar em salários mínimos. Observa-se que a freqüência da assistência realizada pelo médico aumentava significativamente, na medida em que se elevava a renda. No estrato de mais baixa renda (<0,25 salário mínimo), 25,5% dos nascimentos das crianças estudadas receberam assistência médica. Esse percentual subiu de forma consistente, com o crescimento da renda, até 57,7% de assistência médica nos partos de mães com renda per capita familiar igual ou maior que um salário mínimo. A freqüência de atendimento desempenhado pela parteira, entretanto, caiu proporcionalmente com o aumento da renda familiar: de 60,7%, na faixa com menos de 0,25 salário mínimo, até 31,9%, no patamar correspondente a um ou mais salários mínimos.

 

 

Na Tabela 4, finalmente, descreve-se a participação relativa de diferentes profissionais na assistência ao parto normal, em função da estratificação por número de consultas recebidas no período pré-natal. Das mães que não foram assistidas no pré-natal, 68,3% foram atendidas por parteiras. Verificou-se que a participação do médico no parto acompanhava, proporcionalmente, o número de consultas realizadas no pré-natal, elevando- se de 25,7%, nos partos realizados em mães que fizeram até três consultas pré-natais, para 47,7%, nos partos daquelas que receberam seis ou mais consultas no decurso da gestação. Desempenho contrário observou-se na assistência ao parto efetuada por parteiras e enfermeiras(os), tendendo a diminuir na medida em que aumentava a freqüência de consultas pré-natais. As diferenças resultantes das alternativas de assistência ao parto normal em função da realização de consultas pré-natais foram estatisticamente significativas.

 

 

 

Discussão

Embora o principal objetivo do estudo seja a avaliação da assistência prestada ao parto normal na segunda metade dos anos 1990, descrevendo a situação no Estado de Pernambuco e particularizando alguns aspectos relacionados com o tema, para posteriores comparações, torna-se pertinente resgatar alguns antecedentes que ajudam a contextualizar os resultados e, inclusive, compreender seus desdobramentos quanto a futuras avaliações.

É importante referir a Conferência de Alma-Ata (1978),19 onde 134 países, considerados os graves problemas de desigualdades na prestação da atenção básica de saúde, reconheceram, consensualmente, a necessidade de definir novos princípios, diretrizes e estratégias para ampliar e até universalizar a cobertura de um elenco básico de ações prioritárias no sentido de maximizar o acesso da população aos serviços de saúde. Então, a assistência materno-infantil assumiu um espaço de grande relevância, tendo em vista o reflexo das desigualdades econômicas, sociais e de acesso e resolubilidade dos serviços de atenção básica na estrutura de morbimortalidade, principalmente em relação às crianças e mulheres em período reprodutivo. Esse compromisso alcançou avanços consideráveis em 1990, quando, na Reunião de Cúpula de Nova York,20 definiu-se um conjunto de metas e estratégias para o decênio que se iniciava. Em termos políticos, programáticos e normativos, delinearam-se novos papéis para os serviços e profissionais de saúde, inclusive para agentes extra-setoriais, como os extensionistas de saúde sem formação graduada. Foi um evento histórico para a concepção e prática da socialização das ações de saúde, entre as quais figura a assistência pré-natal e ao parto. Por conseguinte, a situação aqui relatada, referente ao estudo de 1997, estabelece uma oportunidade muito apropriada para avaliar alguns aspectos, particularmente interessantes, sobre a assistência ao parto normal, a partir de 1.459 partos normais estudados, que representavam, naquela ocasião, 73,5% do total de partos, como se pode estimar do banco de dados da II PESN.17

O fato de, em 1997, 91,8% dos partos terem ocorrido em hospitais e casas de saúde e 80,2% das mães avaliadas na II PESN terem recebido assistência pré-natal17 já representou um avanço significativo em relação às estatísticas anteriores da assistência materno-infantil. O detalhamento da assistência ao parto normal sem complicações, aqui apresentado, possibilita a análise de aspectos qualitativos importantes sobre novos avanços na prestação de serviços obstétricos às mães no Estado de Pernambuco.

A análise dos resultados aqui expostos é, antes de tudo, suficientemente ilustrativa das assimetrias prevalentes na prestação de serviços de saúde às mães no Estado. São marcantes as diferenças na ocorrência de partos normais assistidos por médicos na Região Metropolitana do Recife (73,3%) e no Interior Rural (apenas 10,0%). Ademais, embora sem alcançar os mesmos valores, essa desigualdade já é crucial para a atenção médica às mães na amostra urbana do interior do Estado. As diferenças geográficas eram pouco notáveis em relação à assistência de enfermagem; entretanto, praticamente invertiam-se no que se refere ao papel da parteira, que chegava a 73,6% dos atendimentos no Interior Rural, enquanto a participação do médico, nessa condição, não alcançava 20% dos casos normais de parto. Evidentemente, na medida em que a grande maioria dos partos ocorria em maternidades e hospitais, não se poderia atribuir a esses contrastes a contribuição dos partos em domicílio, quase sempre efetuados por parteiras, ou melhor, por parteiras "tradicionais".

O caráter discriminante das condições socioeconômicas pode ser claramente compreendido quando os resultados da assistência ao parto normal são relacionados aos estratos de renda e à escolaridade das mães. Os médicos assistiram quase 60% dos partos nos casos de mães que cursaram o Segundo Grau ou que tinham formação de nível superior, não alcançando, porém, 17% das parturientes que não estudaram. Situação inversa ocorria com as parteiras, que assistiram mais de 2/3 das mães sem qualquer histórico escolar, reduzindo sua participação para 1/3 das parturientes que formavam o estrato superior de escolaridade. O papel da renda familiar segue, praticamente, as mesmas tendências de estratificação escolar das mães. As variáveis 'renda' e 'escolaridade' exercem papéis colineares na explicação das desigualdades de acesso dos usuários aos serviços e ações de saúde, representando os principais vetores das iniqüidades observadas nessa área.21 As próprias diferenciações verificadas no espaço territorial das áreas de amostragem (RMR; IU; e IR) refletem, provavelmente, efeitos dos contrastes socioeconômicos na distribuição geográfica da demanda e dos recursos humanos e materiais dos serviços de saúde.

Foi em função dessa realidade, em nível internacional e nacional, que se estabeleceu a própria justificativa política e programática no sentido de corrigir as evidentes distorções na prestação da assistência à saúde materna, inclusive resgatando recursos humanos que, informalmente, atuam à margem dos canais legitimados pelas instituições públicas. É o caso das "parteiras tradicionais" que, durante séculos, ocuparam um espaço praticamente vazio na assistência ao parto no meio rural e mesmo nas comunidades urbanas do Brasil. Essas profissionais voluntárias passaram a ser formalmente reconhecidas há várias décadas, com regulamentação específica pelo poder público, de acordo com decreto editado pela Secretaria Nacional de Vigilância Sanitária em 1932, em que se definia que "as parteiras e enfermeiras(os) especializadas em obstetrícia devem limitar-se aos cuidados indispensáveis às parturientes e aos recém-nascidos nos casos normais".22

No Estado de Pernambuco, contudo, o espaço aberto pela legislação sanitária para a assistência da enfermagem na área obstétrica não tem sido devidamente ocupado, como se depreende dos resultados do presente estudo, constatando-se que a parteira era, em 1997, o profissional mais demandado pela assistência ao parto normal, superando, inclusive, o atendimento do médico, para o conjunto da amostra. Já em 1996, a Sociedade Civil Bem-Estar Familiar no Brasil (Bemfam) observava, em estudo de âmbito nacional, a situação desfavorável da assistência ao parto no Brasil, notadamente nas Regiões Norte e Nordeste.15 Em decorrência dessa situação, o Ministério da Saúde instituiu, a partir do ano 2000, o Programa "Trabalhando com Parteiras Tradicionais", com o propósito de assegurar a melhoria do parto e do nascimento domiciliar.23 Essa circunstância, aliás, seria uma razão adicional para uma pesquisa mais detalhada da assistência ao parto no Estado de Pernambuco, como se fez neste estudo.

É importante ressaltar a associação entre a assistência pré-natal, o número de consultas realizadas durante a gravidez e a probabilidade do parto ser assistido – por ordem de referência – pelo médico, parteira e enfermeira(o). Assim, as mães que mais demandaram o pré-natal foram também as que mais demandaram os cuidados médicos no momento do parto; e a categoria que menos recorreu às consultas pré-natais formou o contingente de maior acesso à assistência a parteira no momento do parto. Entre os dois profissionais, em um desempenho intermediário, situava-se a demanda da enfermagem, que também diminuía sua participação relativa no parto na mesma proporção em que aumentava o número de consultas cumpridas no período pré-natal.

Esses resultados são demonstrativos de que a assistência pré-natal, analisada em termos de consultas no decurso da gestação, representava um importante fator de definição do atendimento ao parto pelos três tipos de profissionais responsáveis. Esta situação implica duas interpretações.

A primeira, provavelmente a mais importante no desfecho profissional do atendimento, destaca a observação de que as mães de melhor nível socioeconômico valorizam mais a atenção pré-natal, aceitando e até reclamando um acompanhamento mais cuidadoso da gestação. Por extensão desse comportamento, elas estariam mais condicionadas a demandar uma atenção melhor qualificada (a assistência médica) no momento do parto. A segunda hipótese seria a ocorrência de complicações obstétricas mais freqüentes, demandando mais consultas pré-natais e resultando, finalmente, em razões mais evidentes para contar com assistência médica no momento do parto. Finalmente, há de se considerar que esses dois pressupostos podem ser – simultaneamente – verdadeiros.

Em seu conjunto, as associações estatísticas encontradas na análise do atendimento profissional ao parto, como desfecho do processo gravídico, põem em evidência o quadro de desigualdades que caracteriza o acesso das mães às ações de saúde em Pernambuco. Da mesma forma como os indicadores de mortalidade materna discriminam as grandes desigualdades entre os povos mais atrasados e as nações mais desenvolvidas, o quadro de resultados heterogêneos referentes à assistência ao parto, a depender da renda familiar, do nível de escolaridade das mães e do acesso desigual ao pré-natal, implicam conseqüências socialmente adversas quanto ao padrão quali e quantitativo dos cuidados ao parto. O que ocorria com Pernambuco, na segunda metade da década passada, reflete uma situação que prevalecia, concomitantemente, em nível internacional24 e no próprio território brasileiro,15,21,25 com a constatação do caráter ainda discriminatório da clivagem socioeconômica.

Algumas observações finais devem complementar a análise dos resultados, sobretudo no que se refere a sua validade interna e externa. As informações sobre a assistência médica ao parto, provavelmente, eram bem confiáveis. O mesmo não se pode dizer dos dados referentes à participação das(os) enfermeiras(os) e das parteiras. Para o público usuário dos serviços de saúde, não se faz distinção entre enfermeiras(os) e auxiliares de enfermagem: todos seriam enfermeiras(os). Quando, no mesmo ano de 1997, fez-se uma avaliação dos serviços de saúde mediante questionários diretamente aplicados aos profissionais alocados em 44 unidades no Estado de Pernambuco (hospitais terciários; hospitais regionais; e hospitais locais), concluiu-se que apenas 2,1% do total de partos eram assistidos por profissionais de enfermagem.26 Esse resultado se ajusta à observação de que, na época, existiriam apenas 0,3 enfermeiras(os) para cada 1.000 habitantes no Estado, com o agravante de que sua distribuição no espaço territorial era muito desigual, como sua própria alocação segundo os diferentes tipos de serviços.21 O limite do número de profissionais seria um fator restritivo a sua participação nas estatísticas de atenção ao parto.

Não existe, efetivamente, uma separação segura, em nível de conceituação popular, entre o que seria uma parteira com treinamento específico para atender ao parto e a chamada parteira prática, leiga ou curiosa. Todas são chamadas pela população, indistintamente, de parteiras, sobretudo nas cidades do interior e do meio rural. Sob essa compreensão vulgar, sua participação na assistência ao parto foi registrada pelos questionários da II PESN, aqui utilizados. A observação é pertinente e oportuna, para evitar confusão de conceitos e resultados entre estudos, relatórios e informes eventuais sobre o papel da(o) enfermeira(o) na assistência ao parto normal em Pernambuco e outras unidades federativas da Região Nordeste. Seria o caso, por exemplo, de um relatório produzido pelo Governo do Estado de Pernambuco, compondo Projeto para Redução da Mortalidade Materna e Perinatal, demonstrando que as parteiras práticas respondiam por 41,7% do atendimento ao parto neste Estado em 1997, segundo levantamento efetuado em 44 hospitais de um universo de 220 então avaliados em todo o Estado. O relatório demonstrava, de forma bastante significativa, que nenhuma dessas parteiras atendia os casos de parto nos hospitais de referência, embora sua participação já fosse expressiva (33,6%) nos hospitais regionais, tornando-se preponderante nos hospitais locais.

Era essa, também, a ordem em que se distribuíram os hospitais e leitos destinados para assistência ao parto na Região Metropolitana do Recife e nos Municípios do interior (regionais de saúde e hospitais locais), que respondem pelo atendimento da demanda das cidades interioranas e de suas respectivas populações rurais. A ordem hierárquica dos hospitais, daqueles de maior complexidade aos mais simples, acompanhava a própria seqüência do espaço geográfico e, no mesmo sentido, a crescente utilização de parteiras práticas, correlacionando-se com a gradação decrescente das condições socioeconômicas da população. Nesse contexto de diferenciação, estabelece-se a polarização do atendimento ao parto normal entre o médico e a parteira, com um espaço de trabalho mais restrito para os profissionais de enfermagem.

Por conseguinte, observam-se diferentes razões (socioeconômicas, profissionais, disposição da rede e da gestão de serviços) para as recomendações dos comitês internacionais, além dos espaços abertos na legislação brasileira, no sentido de estender a cobertura e melhorar a qualidade da atenção à saúde materna, notadamente ao parto normal – que não eram observadas com a desejada adequação em Pernambuco, na segunda metade da última década. Tal deficiência da rede e da operacionalização dos serviços hospitalares fica bem evidenciada em relação ao potencial que poderia ser aproveitado com a plena utilização dos serviços de enfermagem na assistência ao parto normal, principalmente no interior do Estado e para a clientela das zonas rurais.

O presente estudo, de linha basal, torna-se oportuno e necessário para comparações com uma nova avaliação, programada para passados mais dez anos, da situação atualizada da assistência obstétrica em função dos avanços esperados para a área de saúde materno-infantil.

 

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Endereço para correspondência:
Av. Dezessete de Agosto, 2413, Apto. 1901,
Casa Forte, Recife-PE, Brasil.
CEP: 52061-540
E-mail:fatimacaminha@imip.org.br

Recebido em 31/07/2007
Aprovado em 27/03/2008