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Epidemiologia e Serviços de Saúde

versão impressa ISSN 1679-4974versão On-line ISSN 2237-9622

Epidemiol. Serv. Saúde v.17 n.4 Brasília dez. 2008

http://dx.doi.org/10.5123/S1679-49742008000400003 

ARTIGO ORIGINAL

 

Perfil do consumo de bebidas alcoólicas: diferenças sociais e demográficas no Município de Campinas, Estado de São Paulo, Brasil, 2003

 

Alcohol Drinking Patterns: Social and Demographic Differences in the Municipality of Campinas, State of São Paulo, Brazil, 2003

 

 

Marilisa Berti de Azevedo Barros; Letícia Marín-León; Helenice Bosco de Oliveira; Paulo Dalgalarrondo; Neury José Botega

Departamento de Psicologia Médica e Psiquiatria, Faculdade de Ciências Médicas, Universidade Estadual de Campinas, Campinas-SP, Brasil

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

O objetivo deste trabalho é analisar o padrão de uso de álcool segundo fatores demográficos e sociais. Trata-se de estudo transversal de base populacional realizado no Município de Campinas, Estado de São Paulo, Brasil, em 2003. Entrevistas que incluíram a escala psicométrica do teste de identificação de transtornos causados pelo uso de bebida alcoólica (AUDIT) foram aplicadas a 515 indivíduos com 14 anos ou mais de idade, selecionados em amostragem estratificada e por conglomerados. As análises levaram em conta o desenho amostral. Verificou-se que 12,4% da população consomem bebidas alcoólicas duas ou mais vezes por semana, 7,5% bebem cinco ou mais doses em dia típico e 3,7% consomem seis ou mais doses semanal ou diariamente. O consumo é mais elevado nos homens. A freqüência de consumo é maior nos adultos e idosos, embora adultos e jovens apresentem consumo de maior risco. O estrato de maior escolaridade consome com maior freqüência, porém, o consumo de maior risco é mais elevado no segmento de escolaridade inferior. As diferenças do padrão de consumo devem ser levadas em conta nas propostas de promoção de hábitos saudáveis.

Palavras-chave: consumo de álcool; AUDIT; transtornos causados pelo uso de bebida alcoólica; determinantes sociais.


SUMMARY

The objective of this work is to analyze the demographic and socioeconomic differences in the patterns of alcohol consumption, using the Alcohol Use Disorder Identification Test (AUDIT). A household survey with 515 people 14 and older, randomly selected through stratified cluster sampling, was carried out in the Municipality of Campinas, State of São Paulo, Brazil. Prevalence and 95% confidence intervals for the AUDIT questions were calculated considering the sample design. Results showed that 12.4% of the population drinks twice in a week or more, 7.5% drink five or more doses on a typical day, and 3.7% drink six or more doses weekly or daily. Men have a higher drinking pattern. Adults and older people drink with greater frequency but adults and adolescents showed higher risk drinking. The higher schooling strata presents greater drinking frequency while those of lower schooling present higher risk drinking. Differences in patterns of alcohol use must be emphasized in promoting healthier alcohol drinking habits.

Key words: alcohol use; AUDIT; alcohol use disorders; social determinants.


 

 

Introdução

Embora a literatura médica evidencie efeitos benéficos do uso moderado de álcool,1 são sistematicamente reconhecidas as conseqüências danosas à saúde acarretadas pelo consumo abusivo de bebidas alcoólicas. Essa ingestão abusiva produz malefícios de diferentes naturezas, como o aumento dos riscos de cirrose hepática, de neoplasias de diversas localizações, de doenças cardíacas, de acidente vascular cerebral e de transtornos mentais. Também é considerada um fator de risco para comportamento suicida.2,3 Ao consumo excessivo de álcool atribui-se, também, parcela importante dos acidentes de trânsito, acidentes de trabalho e episódios de violência, os quais incluem maus tratos a crianças e violência doméstica,4,5 além de sua associação com a criminalidade.6

O alcoolismo é considerado, atualmente, um dos principais problemas de Saúde Pública, responsável por parcela significativa dos óbitos evitáveis. Atenção especial tem sido destinada ao consumo de bebidas alcoólicas por adolescentes e aos episódios de ingestão excessiva.7 Estima-se que 6 a 15% da população que demanda cuidados primários de saúde fazem uso abusivo ou são dependentes do álcool, prevalência que aumenta para 15 a 61% nos pacientes que procuram clínicas ou hospitais especializados. Apenas um terço desses pacientes, entretanto, tem seu problema de alcoolismo detectado pelo médico.8

A Região Sudeste do Brasil, onde se localiza o Município, apresenta um padrão de consumo de álcool em que 50% da população com 18 anos ou mais de idade ingerem bebida alcoólica, 6% diariamente e 18% uma a quatro vezes à semana. A cerveja é a bebida alcoólica mais consumida, seguida do vinho.9

Revisão sistemática da literatura sobre intervenções em atenção primária voltadas à redução do consumo de álcool oferece evidências do sucesso dos programas desenvolvidos,4 indicando a viabilidade da atuação dos serviços de saúde na redução de danos e na promoção de hábitos saudáveis frente à ingestão de bebidas alcoólicas. Análises sobre resultados de intervenções breves também vêm sendo realizadas no Brasil.10

A identificação epidemiológica dos segmentos sócio-demográficos mais susceptíveis à dependência alcoólica é essencial para orientar a formulação de políticas e programas de controle efetivos.

Leis de controle da venda, propaganda e consumo de bebidas alcoólicas têm sido aprovadas e medidas para redução do consumo implementadas em muitos países.3 No Brasil, a política nacional de promoção da saúde imprime forte ênfase nas ações educativas e na veiculação de informações sobre os danos do uso abusivo do álcool e propõe iniciativas para a restrição de acesso a bebidas alcoólicas pelos segmentos vulneráveis.11

A utilização de um instrumento fácil de aplicar, válido para obter o padrão do consumo de bebidas alcoólicas e diagnosticar problemas de alcoolismo constitui importante ferramenta na promoção de um maior envolvimento das equipes de saúde, conseqüente mobilização e proposição de intervenções adequadas. Há evidências de que um bom conhecimento da história do paciente sobre sua ingestão alcoólica, seguido de um manejo ou encaminhamento adequado, pode reduzir o consumo de álcool.12 O monitoramento do perfil de consumo de álcool pelos diferentes segmentos da população, por sua vez, torna-se necessário à formulação de estratégias eficazes para o controle da dependência e a redução de danos.

O objetivo do presente artigo foi analisar o perfil do consumo de bebida alcoólica segundo idade, sexo e escolaridade na cidade de Campinas-SP. Para tanto, adotou-se o Alcohol Use Disorder Identification Test, conhecido pela sigla AUDIT – escala psicométrica do teste de identificação de transtornos causados pelo uso de bebida alcoólica –, como instrumento de avaliação.

Esta pesquisa foi desenvolvida como parte de um inquérito de base populacional realizado no Município de Campinas, Estado de São Paulo, no ano de 2003. Ela integrou o "Estudo Multicêntrico de Intervenção no Comportamento Suicida (SUPRE-MISS)", da Organização Mundial da Saúde – OMS.13,14

 

Metodologia

A pesquisa foi realizada no Município de Campinas-SP, situado a 100km da capital do Estado, que concentrava, em 2003, uma população estimada de um milhão de habitantes, 98% residentes na área urbana e 78% com idade igual ou superior a 14 anos. Foi incluída no inquérito a população de 14 anos ou mais, não institucionalizada, residente na zona urbana do Município.

Um tamanho mínimo de amostra de 500 indivíduos possibilitou a estimativa de uma prevalência de 3%, com um erro de amostragem de 2%, ou uma estimativa de 30%, com um erro de amostragem de 5,7%, considerando-se um nível de 95% de confiança e um efeito do delineamento de 2. Adotou-se a amostragem estratificada, por conglomerados, em três estágios, sendo as unidades de amostragem, respectivamente: setor censitário, domicílio, e indivíduo.

Neste estudo, utilizou-se o cadastro de domicílios e setores censitários do "Inquérito de Saúde do Estado de São Paulo (ISA-SP)".15 Os setores censitários de Campinas-SP foram agrupados em três estratos, segundo o percentual de chefes de família com nível universitário: Estrato A (mais de 25%; total de 278 setores); Estrato B (de 5 a 25%, totalizando 252 setores); e Estrato C (menos de 5%, 305 setores). Foram sorteados dez setores em cada estrato. Os setores sorteados foram percorridos por pesquisadores de campo, que fizeram o arrolamento de todos os domicílios existentes.15

A partir da relação de endereços registrados no arrolamento, foram sorteados 20 domicílios em cada setor censitário, aplicando-se amostragem sistemática. Esse procedimento resultou em 200 domicílios por estrato – 600 domicílios no total. Finalmente, em cada domicílio, durante o trabalho de campo, foi sorteado um indivíduo de 14 anos ou mais, por meio de contagem seqüencial e contínua dos residentes no domicílio dispostos em ordem crescente de idade, até que se atingisse um número aleatório, previamente definido, impresso na capa do formulário.

O instrumento aplicado baseou-se no European Parasuicide Study Interview Schedule (EPSIS), utilizado no WHO/EURO Multicentre Study on Suicide Behaviour.13 A versão aplicada compõe-se das seguintes seções: informações sócio-demográficas; história de comportamento suicida pessoal e em membros da família; opinião sobre problemas da comunidade; saúde física e mental; contato com serviços de saúde; e questões relacionadas com consumo de álcool e drogas.13

Foram acrescentadas ao protocolo local duas escalas psicométricas: Alcohol Use Disorder Identification Test (AUDIT); e Sef-Reporting Questionnaire (SRQ-20), ambos validados no Brasil.16-18

As entrevistas foram realizadas por 12 entrevistadores treinados, empenhados em até três tentativas de entrevista com a pessoa sorteada. Todas as entrevistas foram feitas sem a participação de terceiros. Zonas residenciais consideradas perigosas foram abordadas na forma de mutirão de pesquisadores, com apoio de viatura da universidade. A entrevista foi reaplicada a 50 indivíduos, selecionados aleatoriamente, para se averiguar a confiabilidade dos dados. O estudo de campo foi realizado entre maio e julho de 2003.

O padrão de consumo de álcool foi analisado segundo as respostas aos itens componentes do teste de escala psicométrica AUDIT. Foram calculadas as prevalências segundo gênero, faixas etárias (14-29; 30-59; 60 anos ou mais de idade), escolaridade (<8 e 8 anos ou mais de estudo) e presença de uso abusivo de álcool. Definiu-se como caso presumível de dependência/ uso excessivo de álcool, pessoas que obtiveram 8 ou mais pontos no AUDIT, cujo período de referência, em sua aplicação pelo entrevistador, correspondeu aos 12 meses prévios à entrevista.

As diferenças foram avaliadas pelo teste X2, considerando-se um nível de significância de 5%. Foram calculados intervalos de 95% de confiança para as prevalências da população total. Todas as análises foram ponderadas, a fim de compensar as distintas probabilidades de seleção dos indivíduos da amostra, e levaram em conta o efeito de delineamento. Em cada estrato, o peso de um indivíduo sorteado, em dado domicílio de determinado setor censitário, foi o inverso de sua probabilidade de seleção. Todos os cálculos estatísticos foram realizados pelo programa Stata versão 8.0, o qual, para a estimativa dos intervalos de confiança das prevalências, utiliza o método de linearização de Taylor.

Considerações éticas

Todos os participantes assinaram Termo de Consentimento Livre e Esclarecido. Foi assegurada a confidencialidade das informações. O inquérito foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa da Faculdade de Ciências Médicas da Universidade de Campinas.

 

Resultados

Foram sorteados 538 indivíduos e houve 23 recusas (4,2% do total de pessoas abordadas), perfazendo 515 entrevistas realizadas. O número de recusas foi maior no Estrato A, seguido do B e C (17, cinco e uma, respectivamente). A análise dos resultados da replicação das entrevistas apontou concordância de respostas superior a 80%.

O perfil do consumo de álcool da população residente no Município de Campinas-SP é apresentado na Tabela 1: 12,4% consomem bebida alcoólica duas ou mais vezes por semana; 21,2% ingerem três ou mais doses em um dia típico; 9,6% tomam seis ou mais doses pelo menos uma vez ao mês; 4,5%, com alguma freqüência, não se lembram do que aconteceu na noite anterior por conta da bebida; 7,8% são criticados pelas bebedeiras; e 6,3%, com alguma freqüência, têm alguém que já sugeriu que parassem de beber. A análise do padrão de consumo segundo gênero revelou diferenças significativas nos seguintes itens: freqüência de consumo; número de doses em dia típico; freqüência de seis ou mais doses; e as freqüências de (i) beber sem conseguir parar, de (ii) deixar de fazer o esperado devido à bebida e de (iii) ser incapaz de se lembrar do que aconteceu por conta da bebida. Em todos esses itens, as maiores prevalências foram do sexo masculino (Tabela 1).

 

 

Com relação à idade, a freqüência do consumo revelou-se distinta entre as faixas analisadas. Embora a maior proporção de quem nunca bebeu álcool fosse encontrada entre os mais idosos, o percentual de quem bebe quatro ou mais vezes por semana atinge índices superiores a 6% justamente nos mais idosos e nos adultos de 30 a 59 anos de idade (Tabela 2). Os mais jovens (14 a 29 anos de idade) apresentaram prevalências, significativamente mais elevadas, de (i) ser criticado pelas bebedeiras, de (ii) não se lembrar do ocorrido por conta da bebida e, no limiar da significância estatística, de (iii) sentir-se culpado depois de beber. Ainda que sem diferenças significativas, 9,6% dos mais jovens e 2,7% das pessoas com 60 anos ou mais de idade referem tomar cinco ou mais doses em um dia típico (Tabela 2).

 

 

A análise do padrão de consumo segundo o nível de escolaridade revela a maior prevalência de abstêmios no segmento de menor escolaridade (52,0% versus 29,8%), o qual, entretanto, também apresenta o percentual mais elevado dos que ingerem bebidas alcoólicas quatro ou mais vezes por semana (8,3% versus 2,2%) (Tabela 3). A freqüência – semanal ou diária – de seis ou mais doses é maior no estrato de escolaridade inferior (5,1% versus 3,3%), o qual, também com maior freqüência, tem alguém que já sugeriu que parasse de beber (8,4% versus 3,1%).

 

 

A Tabela 4 apresenta as diferenças do perfil de consumo, todas com elevada significância estatística (p<0,001), entre as pessoas classificadas como positivas e as não classificadas como tal pelo AUDIT, considerando-se o ponto de corte de 8. Observa-se que, entre as pessoas com dependência de álcool, 51,6% consomem bebida alcoólica duas a quatro vezes ao mês e 62,8% consomem cinco ou mais doses em dia típico.

 

 

Discussão

O percentual de abstêmios encontrado em Campinas-SP é inferior ao observado no Município de Rio Grande, Estado do Rio Grande do Sul, por Mendoza-Sassi e Béria.19 Em Campinas-SP, 42,6% da população de 14 anos ou mais de idade referiu nunca ingerir bebida alcoólica. Esse percentual é de 57% em Rio Grande-RS, na população de 15 anos ou mais de idade; em Campinas-SP, entretanto, 4,6% consomem bebida alcoólica quatro ou mais vezes por semana enquanto em Rio Grande-RS, 5,6% relatam essa freqüência de consumo.19 Estudo desenvolvido em 107 cidades do Brasil observou que 31,3% das pessoas de 12 a 65 anos de idade nunca haviam consumido bebidas alcoólicas.20

Dados de inquérito sobre morbidade e fatores de risco realizado em capitais brasileiras2 apontam percentuais que variam entre 67,6% (João Pessoa-PB) e 41,4% (Florianópolis-SC) de pessoas de 15 anos ou mais de idade que não consumiram bebida alcoólica nos 30 dias anteriores à entrevista. Inquérito realizado em quatro localidades do Estado de São Paulo (ISA-SP) revela que 53,7% das mulheres e 31,6% dos homens com 18 ou mais anos de idade referiram nunca consumir bebida alcoólica.21 Embora não inteiramente comparáveis, o percentual da população de Campinas-SP que ingere bebida alcoólica é dos mais elevados frente aos observados para as capitais brasileiras.2

A prevalência de consumo de cinco ou mais doses em um dia típico foi de 7,5% em Campinas-SP e de 10,1% em Rio Grande-RS e a freqüência semanal ou diária de seis ou mais doses, de 3,7% em Campinas-SP e de 12,0% em Rio Grande-RS.19 Considerando-se apenas os que consomem bebidas alcoólicas, os percentuais de Campinas-SP aumentam para 12,9% e 6,0%, respectivamente. O percentual de consumo excessivo do Município de Campinas-SP, embora menor que o do Município gaúcho, é bastante elevado alertando para prejuízos individuais e possíveis prejuízos sociais como absenteísmo, acidentes de trabalho, violência intrafamiliar, acidentes de trânsito e homicídios.

Embora o padrão de consumo apresentado pelas mulheres seja menos danoso que o observado nos homens, é evidente a importância que a ingestão de álcool vem apresentando no sexo feminino: 5,9% das mulheres de Campinas-SP com 14 anos ou mais de idade são criticadas pelas bebedeiras, 4,3% delas recebem, com alguma freqüência, sugestão no sentido de pararem de beber e 4,5% bebem cinco ou mais doses em um dia típico. Ainda no que diz respeito ao gênero, a maior freqüência de consumo de álcool entre homens é inteiramente consistente com os relatos da literatura.2,3,5,22,23

Quanto às faixas etárias, embora a freqüência do consumo seja mais elevada nos adultos de 30 a 59 anos (17% consomem bebida alcoólica 2 ou mais vezes por semana), o consumo de 3 ou mais doses em dia tipico, é maior nos mais jovens atingindo 25,9%, comparativamente a 20,8% nos adultos de meia idade e 8% nos idosos. Também o consumo de maior risco é mais freqüente entre os mais jovens (14 a 29 anos de idade), dos quais 7,1% referem ser incapazes de lembrar o que aconteceu na noite anterior por conta da bebida e 12,2% são criticados pelas bebedeiras.

Inquérito de morbidade e fatores de risco2 revelou, em capitais brasileiras, maior freqüência de uso de álcool nos 30 dias prévios à entrevista no segmento de 25 a 49 anos de idade e menor prevalência no grupo de 50 anos ou mais; os jovens de 15 a 24 anos apresentavam percentual um pouco inferior ao dos adultos. Costa e colaboradores24 verificaram, em Pelotas-RS, maior uso abusivo em idosos, enquanto dados do Sistema de Vigilância de Fatores de Risco e Proteção para Doenças Crônicas por Inquérito Telefônico (Vigitel) apontam maior uso abusivo entre os mais jovens.5 A maior prevalência de ingestão abusiva nos adolescentes e adultos jovens é preocupante e coerente com as observações de crescimento do consumo de álcool por adolescentes.25 Os jovens são considerados o grupo populacional sob maiores riscos, de forma que as prevalências de consumo e o padrão de beber nesse segmento demográfico precisam ser especialmente monitorados.7,9 Nos jovens, os episódios de bebedeira estão relacionados a acidentes de trânsito, envolvimento em brigas e episódios violentos, uso de drogas ilícitas, gravidez indesejável e outros danos.4,7 Vieira e colaboradores26 verificaram intensidade de ingestão e freqüência de episódios de uso abusivo mais elevadas no segmento que inicia o consumo de bebidas alcoólicas mais precocemente.

Quanto à escolaridade, maior número de abstêmios foi encontrado entre os de menor escolaridade, a despeito desse segmento também apresentar o maior percentual com uso excessivo (quatro ou mais vezes por semana; e com seis ou mais doses ingeridas semanal ou diariamente). O maior número de abstêmios entre estratos de menor escolaridade pode estar relacionado a padrões culturais e de filiação a religiões que preconizam evitar o uso de bebida alcoólica.23

Não foram observadas diferenças significativas entre os estratos de escolaridade nos itens que apontam dependência, como: não conseguir parar de beber, necessitar de bebida pela manhã, sentir-se culpado e ser incapaz de lembrar o que ocorreu por conta da bebida. Inquérito domiciliar realizado em capitais brasileiras2 também encontrou maior prevalência dos que consumiram bebida alcoólica nos 30 dias prévios à entrevista no segmento de maior escolaridade. Inquérito realizado em áreas do Estado de São Paulo observou uma dependência de álcool maior entre os estratos de menor escolaridade nos homens; e o inverso nas mulheres.21 Dados do Vigitel revelam não haver diferença significativa entre estratos sociais definidos pelo nível de escolaridade quanto ao uso abusivo de álcool.5 Os achados apresentados na literatura são contraditórios quanto ao consumo de bebida alcoólica e seu uso abusivo por estratos sociais;23 essas publicações, entretanto, tendem a confirmar maior consumo nos segmentos sociais de melhor padrão socioeconômico e maior dependência/consumo de risco nos estratos de menor renda e escolaridade.19,23,27

O uso abusivo do álcool em Campinas-SP, avaliado pelo teste AUDIT, aponta que proporção significativa (51,6%) dos dependentes do Município bebe duas a quatro vezes ao mês e apenas 22,3% ingerem álcool quatro ou mais vezes à semana, o que enfatiza a importância de ações voltadas aos que consomem esporadicamente e não apresentam dependência diária de consumo de álcool. Os dados do presente trabalho, por sua vez, mostram que, entre os dependentes do Município estudado, 68,3% referem nunca se sentirem culpados depois de beber, 33,7% afirmam nunca terem sido criticados pelas bebedeiras e 51,7% nunca terem recebido sugestão para que parassem de beber. A compreensão desses aspectos é relevante no sentido de adequar as intervenções voltadas ao controle de danos e à redução de comportamentos nocivos à saúde.

Algumas limitações metodológicas do presente estudo devem ser consideradas. Apesar de o número total de entrevistas adequar-se ao tamanho amostral requerido para as estimativas globais de prevalência, em algumas categorias de resposta, o quantitativo de indivíduos foi pequeno. Tal fato limita a interpretação de alguns resultados, com possibilidade de ocorrência de erros de tipo 2. Por sua vez, as múltiplas comparações podem ter elevado a probabilidade de erros de tipo 1.

Outro ponto diz respeito ao instrumento utilizado para avaliação do consumo de bebidas alcoólicas, o teste AUDIT. Embora ele constitua uma das escalas mais difundidas e utilizadas, com reconhecidas qualidades psicométricas,28 discute-se, ainda, sobre os melhores pontos de corte para a definição de caso presumível de uso abusivo ou dependência. Alguns autores defendem que sejam utilizados pontos de corte diferenciados para homens e mulheres.29

Este estudo, possibilitou verificar distintos padrões de consumo de álcool conforme gênero, faixa etária e nível de escolaridade. Adultos e idosos ingerem álcool com maior freqüência, embora moderadamente, enquanto o uso abusivo por jovens decorre, principalmente, de práticas de bebedeiras mensais, semanais ou com menor freqüência, conferindo especial importância às intervenções focadas em adolescentes e adultos jovens. Ações de saúde visando diminuir o consumo abusivo de álcool e suas conseqüências, além de dirigidas ao conjunto da população, precisariam contemplar, de forma apropriada, os grupos mais vulneráveis. Em Campinas-SP, encontra-se estruturada uma rede de cuidado para o tratamento da dependência de álcool e drogas que, além do conjunto de serviços gerais de saúde e de ambulatórios especializados vinculados a universidades, conta com o Centro de Atenção Psicossocial em Álcool e outras Drogas (CAPS AD) e o Núcleo de Apoio à Dependência Química (NADEQ). O CAPS AD, oferece atendimento ambulatorial semi-intensivo e intensivo e dispõe de amplo espectro de atividades, como desintoxicação, atendimento psiquiátrico, atendimento clínico, grupos de psicoterapia, oficinas terapêuticas e atividades abertas (caminhada, Liang Gong e oficinas de artesanato).

Os resultados deste estudo indicam a importância de se enfatizar as ações de promoção de saúde entre adolescentes e escolares, de forma a evitar o padrão de risco de consumo episódico e excessivo de álcool e sua evolução para casos crônicos de dependência e/ou progressão para o uso de outras drogas. O conhecimento do padrão de consumo de álcool é essencial para o estabelecimento de atividades de vigilância e de metas para os programas de intervenção. E a identificação dos grupos mais vulneráveis e seu monitoramento são fundamentais para avaliar os programas e orientar estratégias mais efetivas de controle e redução de danos.

Agradecimentos

À Organização Mundial da Saúde – OMS – (Processo No M4/445/119) e à Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo – Fapesp – (Processo No 02/08288-9), pelo apoio financeiro necessário à realização desta pesquisa.

Ao projeto do "Inquérito de Saúde do Estado de São Paulo (ISA-SP)", pela disponibilidade das listagens de domicílios de setores sorteados.

E à Secretaria de Vigilância em Saúde do Ministério da Saúde (Convênio No 2763/2003), por intermédio do Centro Colaborador em Análise de Situação de Saúde, no âmbito do Departamento de Medicina Preventiva e Social da Faculdade de Ciências Médicas da Universidade Estadual de Campinas, pelo suporte à análise dos dados do presente artigo.

 

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Endereço para correspondência:
Universidade Estadual de Campinas,
Faculdade de Ciências Médicas,
Departamento de Medicina Preventiva e Social,
Rua Tessália Vieira de Camargo, 126,
Campinas-SP, Brasil.
CEP: 13083-970
E-mail:marilisa@unicamp.br

Recebido em 31/12/2007
Aprovado em 11/06/2008