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Epidemiologia e Serviços de Saúde

versão impressa ISSN 1679-4974versão On-line ISSN 2237-9622

Epidemiol. Serv. Saúde v.17 n.4 Brasília dez. 2008

http://dx.doi.org/10.5123/S1679-49742008000400005 

ARTIGO ORIGINAL

 

Mortes maternas e mortes por causas maternas

 

Maternal deaths and mortality due to a maternal underlying cause of death

 

 

Ruy Laurenti; Maria Helena P. de Mello Jorge; Sabina Léa Davidson Gotlieb

Departamento de Epidemiologia, Faculdade de Saúde Pública, Universidade de São Paulo, São Paulo-SP, Brasil

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Ao mensurar-se mortalidade materna, é necessário distinguir 'mortes por causas maternas' e 'mortes maternas'. Para a Organização Mundial da Saúde – OMS –, mortes maternas são as que ocorrem na gestação, no parto e até 42 dias após o parto; e mortes por causas maternas englobam as causas classificadas no Capítulo XV da Classificação Estatística Internacional de Doenças e Problemas Relacionados à Saúde, Décima Revisão (CID-10), incluindo as ocorridas quando passados 42 dias do parto. Apresentam-se resultados da investigação de mortes femininas em idade fértil – 10 a 49 anos – nas capitais de Estados e no Distrito Federal do Brasil, em 2002. Adotou-se a metodologia RAMOS, comparando-se as causas básicas das declarações de óbito originais com as das declarações preenchidas após o resgate de informações, obtidas em entrevistas domiciliares e prontuários. Entre as mortes por causas maternas originais, 15,9% não eram mortes maternas, de acordo com a definição da OMS. Houve, concomitantemente, subenumeração de mortes maternas. Sugestões são feitas para melhorar o preenchimento das declarações de óbito e inclusão de novas categorias na CID-10, visando melhorar a informação das causas maternas.

Palavras-chave: mortes maternas; causas maternas; mulher em idade fértil.


SUMMARY

It is necessary to distinguish 'maternal deaths' from 'deaths due to maternal causes', as underlying causes, when measuring maternal mortality. World Health Organization – WHO – defines maternal deaths as those occurred during pregnancy and until 42 days of puerperium, and maternal causes like all deaths classified in Chapter XV of Statistical Classification of Diseases and Related Health Problems, 10th Revision – ICD-10th Revision –, including even those occurred after 42 days of postpartum. Some results of the investigation of women in childbearing age – 10 to 49 years old – deaths, residents in Brazilian capitals and the Federal District in 2002, are discussed. The RAMOS methodology was adopted. Comparing the underlying causes of the original death certificates with those filled after the household interview and consulting of hospital records, 15.9% of deaths due to maternal causes were not maternal deaths in fact, according to WHO definition; there was also a sub-enumeration of maternal deaths. It is recommended to improve the filling of death certificate by physicians, and inclusion of new categories in the ICD-10th Revision, regarding maternal causes.

Key words: maternal death; maternal underlying cause of death; women in childbearing age.


 

 

Introdução

A ocorrência de uma morte materna é muito importante, na medida em que sua mensuração em uma população constitui excelente indicador, não apenas da saúde da mulher como, indiretamente, do nível de saúde da população geral. Deve-se lembrar também que, do ponto de vista estatístico, a razão de mortalidade materna (RMM), cujo cálculo baseia-se nessas mortes, apresenta bom poder discriminatório em análises de programas e atividades de atenção em saúde. De fato, enquanto nas áreas consideradas desenvolvidas em termos de saúde, a RMM raramente ultrapassa o valor de 10 por 100 mil nascidos vivos (n.v.) e, em alguns locais, esses valores são de 3 a 4 por 100 mil n.v., nos países em vias de desenvolvimento, o mesmo índice é, praticamente, dez a cinqüenta vezes maior, variando de 30 a 40 por 100 mil n.v. até ultrapassar razões de 400 a 500 por 100 mil n.v. em áreas muito pobres.1

Há de se mencionar a existência de dois conceitos básicos para o entendimento da mortalidade materna: o de mortes maternas; e o de mortes por causas maternas. Existem diferenças importantes entre ambos, que resultam no fato de algumas das mortes por causas maternas não poderem ser consideradas mortes maternas.

De início, deve-se observar as definições desses dois eventos, conforme determina a Organização Mundial da Saúde (OMS):2

- Morte materna é a morte de uma mulher durante a gestação ou dentro de um período de 42 dias após o término da gestação, independentemente da duração ou da localização da gravidez, devida a qualquer causa relacionada com ou agravada pela gravidez ou por medidas em relação a ela, porém não devida a causas acidentais ou incidentais.

- Morte por causa materna é a morte que ocorre pelas causas que constam no Capitulo XV – Gravidez, parto e puerpério – da Classificação Estatística Internacional de Doenças e Problemas Relacionados à Saúde, Décima Revisão (CID-10).

A OMS também estabelece outras definições relevantes, que permitem análises mais minuciosas em relação à morte materna, apresentadas a seguir.2

- Mortes relacionadas à gravidez são as mortes de mulheres enquanto grávidas ou até 42 dias após o término da gravidez, qualquer que tenha sido a causa de morte.

- Mortes obstétricas diretas são resultantes de complicações obstétricas na gravidez, no parto e no puerpério devidas a intervenções, omissões, tratamento incorreto ou a uma cadeia de eventos resultantes de quaisquer dessas causas mencionadas.

- Mortes obstétricas indiretas são resultantes de doenças existentes antes da gravidez ou de doenças que se desenvolveram durante a gravidez, não devidas a causas obstétricas diretas mas que foram agravadas pelos efeitos fisiológicos da gravidez.

- Mortes maternas tardias são mortes de mulheres por causas obstétricas diretas ou indiretas, ocorridas mais de 42 dias, porém menos de um ano após o término da gravidez.

Está claro que todas as causas agrupadas e relacionadas no Capítulo XV da CID-10 – Gravidez, parto e puerpério – constituem-se em causas maternas e que nem todas as mortes por causas maternas (Capítulo XV) podem ser englobadas no cálculo da razão de mortalidade materna, havendo a exclusão de todos os casos considerados como mortes maternas tardias (O96 da CID-10) e seqüelas de causa materna (O97 da CID-10), haja vista que, nesses códigos, incluem-se aqueles óbitos que ocorreram fora do ciclo gravídico-puerperal (GPP), portanto, além dos 42 dias após o parto. As causas referidas como 'Exclusão', no início do Capítulo XV da CID-10 – a saber: doenças causadas pelo vírus da imunodeficiência humana – HIV –; conseqüências de causas externas; necrose pós-parto da hipófise; osteomalácia puerperal; tétano obstétrico; e transtornos mentais e comportamentais associados ao puerpério – devem ser incorporadas ao numerador da RMM desde que acontecidas no ciclo gravídico-puerperal e comprovada a interação entre essas causas e o estado gravídico-puerperal. A consideração de estar no ciclo GPP pode ser observada, no Brasil, pela resposta positiva às questões 43 ou 44 da declaração de óbito (DO), conforme comentado a seguir.

É amplamente reconhecido, de acordo com numerosas pesquisas nacionais e internacionais,3-7 que as mortes maternas, freqüentemente, são subenumeradas em função da má qualidade do preenchimento das DO por alguns médicos, no que diz respeito às causas de morte. Tal fato levou a OMS a recomendar que fossem estimados fatores de ajuste ou correção para as mortes maternas.4 Estes são calculados pela razão entre o número total real (verdadeiro) de mortes maternas, obtido em algum tipo de investigação, como a metodologia Reproductive Age Mortality Survey (RAMOS), 3,8 e o número total oficial de mortes maternas, isto é, aquele baseado na apuração das DO oficiais. Este último é assim referido por corresponder ao valor que aparece nas estatísticas de mortalidade, segundo a causa básica, elaboradas por sistemas de informações sobre mortalidade, os SIM – no caso do Brasil, o SIM do Ministério da Saúde.

Admite-se, portanto, que o valor da RMM é, quase sempre, submensurado. Como já foi comentado neste relato, o preenchimento por alguns médicos nas DO não é adequado, muitas vezes deixando de declarar uma causa materna que realmente existiu.

Sabe-se, também, que os médicos quase nunca preenchem o item da DO referente ao intervalo de tempo entre o parto e a morte. Assim, entre aqueles casos para os quais esses profissionais declararam causa materna, pode haver sido morte ocorrida depois de 42 dias ou, mais raramente, passado um ano do parto. Poderia, então, ocorrer uma super-enumeração de mortes maternas, uma vez que se trata de mortes por causa materna embora não se constituam em mortes maternas, de acordo com a definição da OMS, cujo critério de inclusão é o fato de ter ocorrido até 42 dias após o parto.

Teoricamente, poder-se-ia pensar em uma compensação entre as mortes maternas não declaradas pelos médicos como tais e aquelas atestadas indevidamente, pois, em realidade, não seriam mortes maternas e sim mortes por causas maternas. O fato ainda não havia sido mensurado no país. A realização da "Investigação de mortalidade de mulheres em idade fértil – 10 a 49 anos – com ênfase na mortalidade materna",3 entretanto, possibilitou esse tipo de análise.

O objetivo deste trabalho é estabelecer as diferenças conceituais entre mortes maternas e mortes por causas maternas, considerando-se os resultados da investigação citada3 e os dados oficiais do país obtidos pelo SIM.9 Pretende-se, ademais, estabelecer, para os dois grupos referidos, a distribuição dos óbitos decorrentes de causas obstétricas diretas e indiretas, verificar as causas maternas responsáveis pelas mortes ocorridas entre 43 dias até um ano após o parto, que receberam o código O96 (mortes maternas tardias) e, quando passado mais de um ano, o código O97 (seqüelas de morte materna) da CID-10.

 

Metodologia

Para entender a comparação, por intermédio dos dados da investigação,3 é importante citar que a metodologia está descrita, minuciosamente, no Relatório Final do Projeto.3 Em síntese, a metodologia adotada consistiu no que se convencionou chamar Reproductive Age Mortality Survey – RAMOS –, ou seja: a partir da declaração de óbito preenchida pelo médico atestante, portanto, uma declaração de óbito original (DO-O), resgatavam-se dados complementares às informações existentes nessas DO-O, mediante entrevistas nos domicílios das mulheres em idade fértil (10 a 49 anos de idade) que faleceram. Logo, com as informações obtidas, preenchia-se um questionário e acrescentavam-se os dados coletados em consultas feitas aos prontuários hospitalares ou de outras instituições de saúde e aos laudos de serviços de verificação de óbito - SVO -, de institutos de medicina legal, e boletins de ocorrência policial, referentes às mulheres falecidas. Com base nos dados dessa acurada investigação, médicos previamente calibrados analisavam a história clínica de cada caso e preenchiam uma nova declaração de óbito (DO-N), que servia como padrão-ouro para as comparações com as causas de morte declaradas nas DO-O.

Considerações éticas

Este projeto foi aprovado pelas Comissões de Ética em Pesquisa da Faculdade de Saúde Pública da Universidade de São Paulo e da Secretaria de Estado da Saúde de São Paulo.

 

Resultados

A população da investigação refere-se a 7.332 mortes de mulheres de 10 a 49 anos de idade ocorridas no primeiro semestre de 2002, entre residentes nas capitais de Estados brasileiros e no Distrito Federal. Desse total, representado pelas respectivas declarações de óbito preenchidas pelos médicos antes da investigação (DO-O), 144, isto é, 2% delas, apresentavam uma causa materna como causa básica. Entre as DO-N, preenchidas após a investigação, com toda a informação resgatada, houve 239 falecimentos (3,3%) que referiam uma causa materna como causa básica.

Dessas 239 mortes, 38 não foram reconhecidas como mortes maternas: 33 eram mortes maternas tardias (código O96 do Capítulo XV da CID-10); e cinco, mortes por seqüelas de causas maternas (código O97 do Capítulo XV da CID-10). Assim, 84,1% constituíram mortes maternas e 13,8% e 2,1% eram, respectivamente, mortes maternas tardias e mortes por seqüela de causas obstétricas, ou seja, mortes por causas maternas e não mortes maternas (Figura 1 e Tabela 1).

 

 

 

 

Não foi possível construir uma distribuição de mesmo enfoque para os 144 casos de causas maternas das DO-O, por não constar, nos atestados originalmente preenchidos pelos médicos, o momento do puerpério em que a morte ocorrera.

Comparando-se as 201 mortes maternas detectadas após a investigação (DO-N) e os 144 casos classificados nas DO-O, observam-se algumas discrepâncias que merecem ser ressaltadas, como a destacada diferença relativa às mortes por complicações do puerpério; estas compreenderam 18,7% do total das DO-O e apenas 8,4% das DO-N (Tabela 2).

 

 

É de interesse e importância para as autoridades da Saúde Pública, antes da tomada de decisões adequada, conhecer as causas maternas básicas que acabaram por ser codificadas como morte materna tardia em função do momento de ocorrência da morte.

Os resultados da investigação apontam como causa obstétrica de maior ocorrência, entre as 33 mortes maternas tardias, a miocardiopatia pós-parto (24,2%). Seguem-se, em freqüência, as complicações hipertensivas da gravidez ou doença hipertensiva específica da gravidez (eclampsia ou pré-eclampsia), em 21,3% dos casos; em seguida, aparecem as doenças do aparelho circulatório complicando a gravidez (12,1%), outras doenças especificadas (12,1%) e abortos (12,1%). Detectaram-se duas mortes (6,1%), por ruptura de incisão de cesariana e por infecção puerperal, compreensivelmente. Estes dois casos são passíveis de levar à morte no período puerpério tardio, em razão da lenta evolução desses agravos (Tabela 3).

 

 

Das quinze mortes maternas tardias, dez apresentaram complicações do puerpério como causa básica, três mostraram hipertensão complicando a gravidez e duas decorreram de aborto. E assim foram reconhecidas, após o resgate dos dados e preenchimento das DO-N. A análise das respectivas DO-O indicou que elas se encontravam diagnosticadas e contabilizadas como mortes maternas, nos dados oficiais. Tal fato significa a existência de super-enumeração de mortes maternas nas estatísticas oficiais, casos que deveriam ser excluídos do cálculo da razão de mortalidade materna mas não o foram (Tabela 4).

 

 

Considerando-se os cinco casos de seqüelas de causas obstétricas diretas (097), do ponto de vista das causas maternas existentes, em dois casos, fora declarada eclampsia não especificada quanto ao período, e em três casos, apresentavam-se, concomitantemente, infecção do trato genital na gravidez, parto vaginal subseqüente à cesariana anterior e ruptura de incisão obstétrica no períneo. Não foram detectados casos por seqüelas de causas obstétricas indiretas, apenas por seqüelas de mortes obstétricas diretas.

Em 2003, para os 1.584 casos constantes das estatísticas oficiais, essa distribuição segundo algumas especificações apresenta aspectos distintos dos obtidos a partir da investigação em tela (Tabela 5)

 

 

 

Discussão

Na forma como apresentados, os resultados da "Investigação da mortalidade de mulheres em idade fértil – 10 a 49 anos – com ênfase na mortalidade materna"3 possibilitaram detectar a existência de mortes por causas maternas que, em verdade, não se constituíam em mortes maternas, de acordo com as definições da OMS. A importância desse achado diz respeito ao fato de que, como os médicos não registram nas declarações de óbito – DO – o período de tempo entre o parto e a morte, as mortes correspondentes são contabilizadas como mortes maternas e, portanto, há superenumeração da mortalidade materna. Teoricamente, conforme já referido, poderia haver uma compensação quanto à subenumeração, em razão da reconhecida declaração incompleta de causas maternas nas DO pelos médicos. Na prática, entretanto, esses valores não seriam equivalentes.

Poder-se-ia admitir que, entre as DO-N, se houve 239 casos de mortes por causas maternas e 201 delas foram consideradas mortes maternas, mantida essa mesma relação, nas DO-O, ter-se-iam 121 mortes maternas e não as 144 apresentadas, evidenciando, dessa forma, tal superenumeração (19%).

Relativamente às causas de morte, cabe um comentário sobre a miocardia pós-parto, uma causa importante que passa despercebida, pois se manifesta no puerpério e, geralmente, apresenta evolução lenta e prolongada; conseqüentemente, a morte acontece após 42 dias do parto.

Uma possível explicação para a diferença relativa entre as mortes por complicações do puerpério que constam nas DO-O e nas DO-N – respectivamente, 18,7% e 8,4% do total – é de que teria acontecido uma complicação oriunda na gravidez, que evoluiu para óbito, embora este ocorresse no puerpério. Então, na DO-O, a causa básica teria sido declarada como complicação surgida no puerpério. Outra razão seria a de que, entre as DO-O, haveria dez mortes por complicações no puerpério que a investigação permitiu concluir, de fato, serem óbitos ocorridos após 42 dias do parto, ou seja, no puerpério tardio.

Dignos de nota são os casos de morte por causa obstétrica não especificada, presentes em 7,5% das DO-N e em apenas 1,4% das DO-O. Um achado aparentemente paradoxal, pois seria de se esperar que, na investigação, os diagnósticos fossem bem esclarecidos. Uma possível suposição é a de que o médico, ao declarar a causa básica da morte na DO-O, teria registrado uma causa obstétrica bem especificada, a qual, com o resgate de dados pela investigação, não foi possível esclarecer, haja vista, na busca de mais dados, nada constar no prontuário hospitalar da falecida.

Marcante é a diferença entre as proporções de causas obstétricas indiretas e o total de mortes maternas; nas DO-N, essa freqüência foi igual a 25,4%, e nas DO-O, chegou a 16%. Ocorreu que a investigação coletou um maior número de informações médicas anteriores ao desenlace fatal, permitindo verificar a existência de doenças anteriores à gravidez que a complicaram, até levar a paciente à morte; entretanto, o médico que assina a declaração de óbito, geralmente, assiste apenas ao quadro final e nele se baseia para o preenchimento da DO. Esse resultado – quanto às causas obstétricas indiretas nas DO-N – está mais próximo do valor esperado para as capitais de Estados e o Distrito Federal: as causas obstétricas indiretas representaram um quarto das mortes maternas.

A qualidade do dado tem mudado, nos últimos anos, em razão da atuação dos Comitês de Prevenção das Mortes Maternas ou gestores do SIM, os quais, ao investigar as mortes de mulheres de 10 a 49 anos de idade, detectam os casos de mortes maternas não declaradas e os que eram, de fato, causas maternas e não mortes maternas. Essa correção é informada ao SIM. Nas estatísticas de mortalidade, já começam a aparecer mortes codificadas como O96 e O97. Em 2003, das 1.584 mortes por causas maternas, há 57 casos de mortes maternas tardias e seis casos de mortes por seqüelas de causas maternas obstétricas diretas.9 Portanto, no cálculo da RMM, no numerador, devem ser colocados não os 1.584 óbitos e sim esse valor menos 57 casos, ou seja, 1.527 mortes maternas (acontecidas no ciclo gravídico-puerperal).

Os resultados da investigação mostraram, claramente, que esses casos têm, como causas reais das mortes, causas obstétricas bastante bem especificadas, importantes de serem conhecidas na definição das ações de prevenção. Apenas como exemplo, das 33 mortes maternas tardias, ocorreram oito casos (24,2%) de miocardiopatias pós-parto, representando, no conjunto dos 239 óbitos por causas maternas, proporção igual a 3,3%.

Em 2003, nos 1.534 casos de mortes maternas ocorridas no Brasil, apresentados no SIM, 21 (1,37%) foram por essas causas. No mesmo ano, o SIM informou 57 casos de mortes maternas tardias, entre as quais, quase que certamente, existiriam casos de miocardiopatias pós-parto – além de outras causas –, que precisariam ser conhecidos e não "escondidos" ou "embutidos" no código O96.

Levando-se em conta essa questão e os resultados da investigação, os autores deste relato propuseram à OMS, por intermédio de seu Mortality Reference Group (MRG, ou Grupo de Referência em Mortalidade), que o código O96 da CID-10 fosse alterado nos seguintes termos:

O96: Morte por qualquer causa obstétrica que ocorre mais de 42 dias, porém menos de um ano após o parto.

O96.0: Obstétrica direta

O96.1: Obstétrica indireta

O96.9: Obstétrica não especificada

Nota: usar codificação múltipla para especificar a causa.

Além da proposta das subcategorias .0, .1 e .9, não existentes na CID-10, foi apresentada mais uma, no sentido de que os órgãos elaboradores de estatísticas de mortalidade codificassem as causas obstétricas diretas ou indiretas responsáveis pela morte, a qual, entretanto, ocorrera depois de 42 dias pós-parto; utilizar-se-ia, então, a metodologia de causas múltiplas. Esse método, que se utiliza dos recursos da microinformática, apresenta-se, atualmente, como de mais fácil execução.

Essas propostas do Brasil, baseadas nos resultados da investigação, foram aceitas pelo MRG e, logo, pela OMS, ficando estabelecido que serão introduzidas na próxima revisão da CID.

Quanto às mortes por seqüelas de causas obstétricas diretas, a hipótese dos autores é de que esse tipo de morte deveria existir, também, para as causas obstétricas indiretas. Os resultados evidenciaram apenas cinco mortes nesta última categoria, todas seqüelas de causas obstétricas diretas, não se verificando qualquer morte por causa obstétrica indireta. Uma possível explicação para esse achado estaria no pequeno número de casos analisados. Não obstante, a experiência destes autores, principalmente, baseada em resultados de investigações de Comitês de Prevenção das Mortes Maternas, mostra que tais casos existem. Assim, apresentou-se ao MRG nova proposta, semelhante à feita para o código O96, igualmente aceita e considerada como uma importante contribuição brasileira. O código O97 não será usado apenas para seqüelas de causas obstétricas diretas mas também para indiretas. Esse código também será alterado, nos seguintes termos:

O97: Morte por seqüelas de causas obstétricas

O97.0: Obstétrica direta

O97.1: Obstétrica indireta

O97.9: Obstétrica não especificada

Nota: usar codificação múltipla para especificar a causa.

A distinção entre morte materna, morte materna tardia e morte por seqüela de causa materna poderia ser feita nas declarações de óbito originais mediante preenchimento das variáveis 43 e 44, que permitem a identificação do intervalo de tempo entre o parto e a morte. Como esse item tampouco é preenchido pelos médicos de maneira satisfatória – nas DO-O do material aqui investigado, seu preenchimento ocorreu em menos de 50% dos casos –, é mister que pesquisas continuem a ser feitas, bem como promovidos investimentos, na forma de material instrucional adequado à educação da classe médica, para que se alcance, cada vez mais, um melhor preenchimento da declaração de óbito por esses profissionais.

 

Referências bibliográficas

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2. Organização Mundial da Saúde. Classificação Estatística Internacional de Doenças e Problemas Relacionados à Saúde – 10a Revisão. 2a ed. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo; 1995.

3. Ministério da Saúde. Mortalidade de mulheres de 10 a 49 anos com ênfase na mortalidade materna: relatório final. Brasília: MS; 2006.

4. Laurenti R, Mello Jorge MHP, Gotlieb SLD. A mortalidade materna nas capitais brasileiras: algumas características e estimativa de um fator de ajuste. Revista Brasileira de Epidemiologia 2004;7:449-460.

5. Laurenti R, et al. Mortalidade de mulheres em idade fértil no Município de São Paulo (Brasil), 1986. I Metodologia e resultados gerais. São Paulo. Revista de Saúde Pública 1990;24(2):128-133.

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8. World Health Organization. Verbal autopsies for maternal deaths: Maternal Health and Safe Motherhood Program. London: School of Hygiene and Tropical Medicine; 1994.

9. Ministério da Saúde. Informações de saúde [dados na Internet]. Brasília: MS [acessado durante o ano de 2006]. Disponível em: http://www.datasus.gov.br

 

 

Endereço para correspondência:
Universidade de São Paulo,
Faculdade de Saúde Pública,
Departamento de Epidemiologia,
Av. Dr. Arnaldo, 715,
São Paulo-SP, Brasil.
CEP: 01246-904
E-mail:laurenti@usp.br

Recebido em 04/10/2007
Aprovado em 17/06/2008