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Epidemiologia e Serviços de Saúde

versão impressa ISSN 1679-4974versão On-line ISSN 2237-9622

Epidemiol. Serv. Saúde v.19 n.3 Brasília set. 2010

http://dx.doi.org/10.5123/S1679-49742010000300005 

ARTIGO ORIGINAL

 

Flebotomíneos (Diptera: Psychodidae) em áreas de ocorrência de leishmaniose tegumentar americana no Distrito Federal, Brasil, 2006 a 2008*

 

Phlebotominae fauna (Diptera: Psychodidae) in areas of transmission of american cutaneous leishmaniasis in the Federal District, Brazil, from 2006 to 2008

 

 

Maria do Socorro L. de CarvalhoI; Angelika BredtI; Eliza Roberta S. MeneghinII; Cristiane de OliveiraIII

IDiretoria de Vigilância Ambiental em Saúde, Subsecretária de Vigilância à Saúde, Secretaria de Estado da Saúde do Distrito Federal, Brasília-DF, Brasil
IIDiretoria de Vigilância Epidemiológica, Subsecretaria de Vigilância à Saúde, Secretaria de Estado da Saúde do Distrito Federal, Brasília-DF, Brasil
IIICoordenação Geral de Emergências Ambientais, Diretoria de Proteção Ambiental, Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis, Ministério do Meio Ambiente, Brasília-DF, Brasil

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

OBJETIVO: conhecer a distribuição geográfica das espécies de flebotomíneos em áreas de ocorrência de leishmaniose tegumentar americana no Distrito Federal, com ênfase para as espécies vetoras.
METODOLOGIA: coletaram-se os flebotomíneos com armadilha luminosa CDC, mensalmente durante 24 meses, por quatro noites consecutivas, em diferentes fitofisonomias de cerrado, em abrigo de animais e no intradomicílio.
RESULTADOS: identificou-se 17.737 espécimes, distribuídos em 27 espécies, pertencentes aos gêneros Brumptomyia e Lutzomyia. Destaca-se a identificação das espécies de importância médica: Lutzomyia whitmani, Lutzomyia intermedia, Lutzomyia neivai, Lutzomyia davisi, Lutzomyia flaviscutellata e Lutzomyia longipalpis.
CONCLUSÃO: a espécie Lutzomyia whitmani foi a mais frequente (75,9%), seguida de Lu. longipalpis (8,76%). A identificação de mais duas espécies vetoras, Lutzomyia neivai e Lutzomyia davisi auxilia no mapeamento das áreas de risco à transmissão das Leishmanias.

Palavras-chave: Lutzomyia longipalpis; flebotomíneos; leishmaniose tegumentar americana; Brasília; Distrito Federal.


SUMMARY

OBJECTIVE: to know the geographic distribution of species of sandflies in areas with cutaneous leishmaniasis in the Brazilian Federal District. The study has been carried out with the objective of identifying the local fauna and a cutaneous leishmaniasis vector.
METHODOLOGY: sand flies were collected with CDC traps, in a monthly basis for four consecutive nights during two years, in the Cerrado vegetation, in animal shelters and in residences.
RESULTS: 17,737 specimens representing 27 species were captured: 2 species ofBrumptomyia and 25 species ofLutzomyia. Species ofmedical interest were: Lutzomyia whitmani, Lutzomyia intermedia, Lutzomyia neivai, Lutzomyia davisi, Lutzomyia flaviscutellata and Lutzomyia longipalpis.
CONCLUSION: the mostfrequent species were Lutzomyia whitmani (75.9%) and Lutzomyia longipalpis (8.76%). The identification of the two other vectors species (Lutzomyia neivai and Lutzomyia davisi) helps mapping areas of Leishmanias transmission in the Federal District.

Key words: Lutzomyia longipalpis; sandfly; american tegumentar leishmaniasis; Brasília; Federal District.


 

 

Introdução

A leishmaniose tegumentar é uma zoonose de ampla distribuição. No Brasil há registro de transmissão da doença em todos os estados brasileiros desde 2003. Em 2008 foram notificados 21.430 casos confirmados do agravo. A região Centro-oeste registrou o segundo maior coeficiente de detecção (19,9 casos por 100.000 habitantes) tendo o Estado do Mato Grosso como detentor do terceiro maior coeficiente de detecção do Brasil - 76,5 casos por 100.000 habitantes.1

O Distrito Federal (DF) registra a transmissão da leishmaniose tegumentar americana (LTA) de ocorrência cíclica desde 1992 e, a partir de então, apresenta coeficientes de detecção bem inferiores ao que é considerado como baixo, segundo parâmetros do Ministério da Saúde (<2,5 casos por 100.000 habitantes).2,3

A ocorrência da doença no DF ainda está relacionada à inserção de residências nas proximidades de mata e/ou à exposição de pessoas em áreas de mata preservada ou residual para atividades de lazer ou ocupacionais. Contudo, é esperado que o padrão epidemiológico sofra modificações ocasionadas por alterações no cenário primário.

O crescimento desordenado e acelerado das áreas urbanas, com intensa ocupação do solo tem sido observado no DF desde 1985.4 Embora a transferência da Capital e a ocupação do DF tenham sido objeto de muitos estudos, o território tem sido ocupado ordenadamente, por um lado, e de forma desordenada, por outro, com proliferação de parcelamentos informais e invasões com características urbanas. No período de 1995 a 2005 o aumento verificado no número de parcelamentos urbanos foi de 54,5%.5 Este modelo de ocupação de terras tem levado ao desaparecimento de áreas representativas do bioma Cerrado e a grande pressão antrópica tem contribuído para a redução da biodiversidade local e a supressão de recursos naturais.6 Estes fatores podem ter reflexos na mudança de hábitos dos flebotomíneos e de animais silvestres, reservatórios da doença, promovendo a adaptação destes ao novo ambiente construído. A riqueza e diversidade de espécies pertencentes a diferentes grupos apresentam padrões distintos de distribuição. Algumas espécies são restritas ao ambiente silvestre e outras registradas em áreas profundamente alteradas pela ação do homem.7

Um dos poucos estudos sobre flebotomíneos realizados no DF relata a presença de oito espécies: Lutzomyia flaviscutellata, Lu. intermedia, Lu. whitmani, Lu. fischeri, Lu. lenti, Lu. pessoai, Lu. pinoti e Lu. shannonni.8 O levantamento da fauna flebotomínica do DF, conduzido pela Diretoria de Vigilância Ambiental de julho de 2004 a dezembro de 2005, identificou 15 espécies, dentre estas, Lu. longipalpis, registrado pela primeira vez no DF em outubro de 2004 na região administrativa (RA) de São Sebastião.9 Neste estudo 27 espécies de flebotomíneos foram identificadas. O conhecimento sobre a distribuição geográfica dos flebotomíneos no DF ainda é escasso, dificultando a identificação das áreas de risco à transmissão das leishmanioses e a atuação das vigilâncias ambiental e epidemiológica na prevenção destas parasitoses.

São relatados os dados do estudo sobre o monitoramento de flebotomíneos realizado em áreas de ocorrência de LTA no DF no período de maio de 2006 a abril de 2008, os quais permitem conhecer os aspectos bio-ecológicos e comportamentais dos vetores das leishmanioses e, para tanto, esclarecer os fatores que favorecem a disseminação e transmissão desta doença, permitindo identificar as áreas de risco e oferecer subsídios para atuar no controle.

 

Metodologia

O DF localiza-se no Bioma Cerrado entre os para­lelos 15o30' e 16o3' de latitude sul e os meridianos de 47o25' e 48o12' de longitude WGR, com área de 5.801,937 km2 e população de 2.455.903 habitantes. O clima é classificado como tropical, segundo Kõppen, com duas estações definidas, o período chuvoso, de novembro a janeiro, e o período seco, que corresponde aos meses de junho a agosto.10,11 A vegetação é do tipo Cerrado, que ocorre em gradiente de formas fisionômicas dependendo do substrato.12

Para a coleta dos flebotomíneos utilizou-se como critério a presença de residências nos locais prováveis de infecção (LPI) dos casos de LTA e áreas com diferentes fitofisionomias de cerrado. Todos os locais de coleta situavam-se em áreas rurais das RA de Sobradinho, Planaltina, São Sebastião e Gama, localizadas nas bacias hidrográficas dos rios Maranhão, São Bartolomeu e Corumbá.

A Bacia do São Bartolomeu, representada por cotas entre 1.250m e 1.270m, a maior em extensão, nasce no norte do DF e se estende no sentido norte-sul. Nesta bacia estão situadas parte das RA de Sobradinho, Planaltina, Paranoá, São Sebastião e Santa Maria. No ano de 1983 foi criada a área de proteção ambiental (APA) do São Bartolomeu com o objetivo de proteger a área para construção futura de barragem.13

A Bacia do Rio Maranhão está localizada na porção norte do DF, apresentando como limites ao sul as Bacias do rios Descoberto, São Bartolomeu e Lago Paranoá. Nesta bacia estão situadas parte das RA de Brazlândia, Sobradinho e Planaltina. Abrange uma das áreas ambientalmente mais preservadas do DF, possuindo relevo mais acidentado e cota entre 1.000m ou menor.13

A Bacia do Rio Corumbá localizada na porção sudoeste do DF, compreende as RA de Samambaia, Recanto das Emas, Gama e Santa Maria. Caracteriza-se por alta declividade, solos de baixa fertilidade e com deficiência hídrica. Seus solos com pouca cobertura vegetal facilitam a ocorrência de processos erosivos e o transporte de sólidos nesta bacia.13

Para análise dos dados optou-se por utilizar como unidade geográfica as bacias hidrográficas, tendo em vista as peculiaridades de cada uma em relação às características ambientais e antrópicas. As coordenadas dos pontos amostrais foram coletadas com a utilização de aparelhos GPS (Global Position System) da marca Garmin, modelo Etrex Legend, produzido em Taiwan.

Os flebomíneos foram coletados com armadilha luminosa CDC "miniature light trap" no período de maio/2006 a abril/2008. As armadilhas foram instaladas em cada ponto de coleta mensalmente, por quatro noites consecutivas das 17 às 7h, em diferentes fitofisionomias do cerrado (campo sujo, cerrado "strictu sensu", mata seca e vereda), no interior de casa e nos abrigos de animais (chiqueiro, galinheiro e canil). O número de armadilhas por estação de coleta variou segundo o número de ecótopos existentes nas respectivas estações. As pessoas que manusearam as armadilhas adotaram medidas preventivas de exposição à picada do inseto, como a utilização de roupas adequadas e o uso de repelente.

Os flebotomíneos foram montados entre lâminas e lamínulas, identificados e classificados segundo chave dicotômica,15 no laboratório de entomologia da Diretoria de Vigilância Ambiental (Dival). A identificação das espécies foi confirmada pelo Centro de Pesquisas René Rachou, da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), referência nacional e internacional em taxonomia de flebotomíneos.

 

Resultados

Foram realizadas 552 capturas em 30 locais diferentes, totalizando 1.344 horas de coleta por armadilha. Assim, na bacia do rio Maranhão selecionou-se 15 locais, totalizando 288 capturas, na bacia do rio São Bartolomeu, oito locais e um total de 144 capturas e, na bacia do rio Corumbá, sete locais, com um total de 120 capturas.

Do total de 17.737 espécimes coletadas, identificou-se 27 espécies pertencentes aos gêneros Lutzomyia e Brumptomyia (Tabela 1).

 

 

Dentre as 27 espécies, Lu. whitmani foi a mais frequente (75,9%). Outras seis espécies apresentaram frequência acima de 1%, e corresponderam a 24,1% dos espécimes coletados. Neste grupo estão incluídas Lu. longipalpis, Lu. neivai e Lu. davisi, potenciais veiculadores de Leishmania (Tabela 1). A Figura 1 mostra a distribuição geográfica das espécies vetoras e a Figura 2, as áreas de ocorrência de casos autóctones de LTA.

 

 

 

 

Na bacia do rio São Bartolomeu verificou-se maior diversidade de espécies (25 espécies - 92,6%) e a ocorrência de cinco espécies de flebotomíneos de importância a saúde humana: Lu. neivai (35,43%), Lu. whitmani (23,87%), Lu. longipalpis (5,10%), Lu. davisi (0,20%) e Lu intermedia (0,12%) (Tabela 1). Nesta bacia também, concentram-se o maior número de casos de LTA (Figura 2).

Na bacia hidrográfica do Maranhão registrou-se maior frequência de espécimes capturados (87,4% - 15.498 espécimes), sendo visível a predominância de Lu. whitmani (83,6% - 12.961 espécimes) sobre as demais espécies. A segunda espécie mais frequente foi Lu. longipalpis (9,4% - 1.458) (Tabela 1). É esperado que o número de flebotomíneos seja maior na bacia do rio Maranhão do que nas demais, já que maior número de armadilhas foi colocado nesta bacia (288 armadilhas). Entretanto, observando a média de flebotomíneos por armadilha, a bacia do Maranhão possui a maior média (Maranhão: 53,8; São Bartolomeu: 11,8; Corumbá: 4,45) (Tabela 1).

Dentre as espécies identificadas predominou Lu. whitmani (13.462 espécimes - 75,9%), presente nas três bacias hidrográficas (Figura 1 e Tabela 1), o que é consistente com estudos realizados anteriormente.8 Lu. whitmani foi mais frequente em abrigos de animais de criação (95,2% - 12.816 espécimes: chiqueiro -51,1%; canil - 24,7% e galinheiro - 24,2%) e, dentre as fitofisionomias (3,97% - 534 espécimes), foi mais frequente em cerrado (66,7% - 356) (Tabela 2).

 

 

Lu. longipalpis foi a segunda espécie mais frequente (8,76% - 1.553 espécimes) (Tabela 1) e ocorreu nas três bacias hidrográficas (Figura 1). Predominou, também, em abrigos de animais (chiqueiro: 45,6% - 708; canil: 32,7% - 508; galinheiro: 18,0% - 279). Dentre todos os ambientes coletados, Lu. longipalpis obteve menor frequência nas fitofisionomias (1,54% - 24 espécimes) (Tabela 2).

Lu. lenti foi a terceira espécie mais frequente (4% - 709 espécimes), mas não é considerada antropofílica (Tabela 1).16 Entretanto, é considerável a sua predominância em ambientes domiciliados (67,8%-481 espécimes), quando comparados aos naturais (32,16% - 228 espécimes), e a sua alta frequência em galinheiro (41,5% - 294) (Tabela 2).

Lu. neivai (3,4% - 604 indivíduos) só foi encontrada na bacia hidrográfica do São Bartolomeu (Figura 1 e Tabela 1), tendo sido a espécie que mais predominou nos ambientes de mata seca (45,5% - 275 espécimes) e intradomiciliar (27% - 163). Foi também frequente em canil (20,4% - 123 espécimes).

Lu. davisi (2,3% - 411) foi mais frequente em ambientes naturais (73% - 300).

Lu. flaviscutellata (0,11% - 19 espécimes) só esteve presente em dois locais de coleta, vereda (84,2% - 16 espécimes) e campo-sujo (15% - 3 espécimes). Esta espécie predominou em ambientes de vereda em relação às demais espécies (Tabela 2).

Dentre os vetores, Lu. intermedia foi o de menor frequência (0,01% - 2 espécimes) e, como Lu. neivai, esteve restrito à bacia do rio São Bartolomeu (Figura 2 e Tabela 1).

Seis espécies (22,2%) foram encontradas em todos os ambientes: Lu. whitmani, Lu. lenti, Lu. davisi, Lu. evandroi, Lu. sordellii e Lu. sallesi. A mata seca foi o local com maior variedade de espécies (23 espécies - 85,18%) e o chiqueiro e vereda o de menor variedade (12 espécies - 44,4%). No galinheiro foram encontradas 21 espécies (77,7%) (Tabela 2).

 

Discussão

Dentre as 27 espécies identificadas, apenas cinco haviam sido descritas anteriormente, Lu. whitmani, Lu. intermedia, Lu. flaviscutellata, Lu. shannoni e Lu. lenti, as demais estão sendo relatadas pela primeira vez no DF.8

Os resultados demonstram que no DF ocorrem seis espécies vetoras: Lu. whitmani, Lu. intermedia, Lu. neivai, da Leishmania (Viannia) braziliensis, Lu. davisi da Leishmania (Viannia) braziliensis e Leishmania (Viannia) naiffi, Lu. longipalpis da Leishmania (Leishmania) chagasi e Lu. flaviscutellata da Leishmania (Leishmania) amazonensis.17,22

Lu. whitmani predominou nas capturas e foi encontrada em todas as localidades e ambientes trabalhados. Este fato mostra a importância desta espécie como transmissor da Leishmania braziliensis no DF. Lu. whitmani é também considerado o mais importante vetor da LTA em grande parte do Brasil.23 A alta frequência desta espécie em abrigos de animais (95,2%) difere dos resultados encontrados por Vexenat,8 ao observar maior frequencia em mata de galeria. Entretanto, Loiola23 verificou também maior predomínio no peridomicílio, indicativo do potencial grau de domiciliação da espécie. Comportamento semelhante foi relatado por Rangel e Lainson24 ao descrever o predomínio da espécie no peridomicílio.

No DF o crescimento demográfico ocorrido nos últimos anos tem levado a um processo constante de degradação ambiental e social. O relatório da Unesco25 mostra que o intenso fluxo migratório e o crescimento da agricultura levaram à redução de 47% das formações florestais (matas ciliares, mesofíticas, de galeria, de encosta e cerradão), 74% de cerrado e 75% de campo. Estudos têm demonstrado que alterações nos padrões ambientais, demográficos e sociais exercem influência sobre os níveis endêmicos ou epidêmicos das doenças.26,27 Influência da ação antrópica sobre o meio ambiente e sua relação com a sucessão vetorial e a transmissão de Leishmania tem sido observada.28

No DF, apesar dos estudos de Vexenat, em 1939,8 relatar maior frequência de Lu. whitmani em mata de galeria, observa-se mudanças no comportamento de Lu. whitmani. A partir de então, a espécie foi encontrada em maior frequência em abrigos de animais, mostrando a influência do ambiente antrópico sobre o seu comportamento. Estas observações sugerem que a transmissão da LTA no DF pode acontecer associada à atividade peridomiciliar e não unicamente a atividades ocupacionais e de lazer, como tem sido caracterizado o perfil da doença no DF. Portanto aponta-se, também, para a ocorrência do padrão rural e periurbano em áreas de colonização, uma vez que a alta frequência deste vetor no peridomicílio é um indicativo de que a transmissão da Leishmania braziliensis possa ocorrer em ambiente domiciliar.29

O desmatamento tem sido o principal fator de alteração do ambiente no DF, em função da expansão urbana. Neste novo cenário, observa-se a proximidade das residências com áreas remanescentes de cerrado e, consequentemente, uma maior interação da fauna silvestre com o homem e seus animais de estimação e/ou produção. Estes animais, confinados, passam a ser uma nova fonte de alimentação, fácil e segura, para os flebotomíneos.

Outra espécie coletada e de importância para a saúde pública foi o Lu. longipalpis, principal vetor da leishmaniose visceral (LV). Identificado pela primeira vez no DF, em 2004, em área rural na bacia hidrográfica do São Bartolomeu, vem aumentando sua distribuição geográfica e frequência. A dispersão do Lu. longipalpis no DF ocorre simultaneamente à transmissão da leishmaniose visceral canina e humana. Sobradinho foi a RA de maior ocorrência do vetor com 9,4% de espécimes coletados e também a de maior incidência de leishmaniose visceral humana. No período de setembro de 2005 a maio de 2008 foram notificados os primeiros casos autóctones de LV no DF: dos 14 casos, 12 (85,71%) ocorreram na região de Sobradinho.

A predominância de Lu. longipalpis em ambientes domiciliares, 96,3 e 2,19% em abrigos de animais e intradomicílio, respectivamente, é indicativo do poder de adaptação da espécie ao ambiente antrópico.

Merece atenção neste trabalho a espécie Lu. neivai que predominou na bacia hidrográfica do rio São Bartolomeu e, dentre todas as espécies capturadas, foi a mais frequente no ambiente intradomiciliar.

No ano de 2003 ocorreu um surto da doença com 31 casos autóctones, sendo 27 notificados na RA de São Sebastião, localizada na bacia hidrográfica do rio São Bartolomeu. Os coeficientes de detecção em 2006 e 2007, 0,58 e 0,41 respectivamente, ocupam o 3o e 4o lugares na série histórica, período cuja ocorrência da doença esteve mais amplamente distribuída, afetando cinco das seis regiões administrativas com transmissão confirmada.

Até então eram conhecidos na região da bacia do rio São Bartolomeu os vetores Lu. whitmani e Lu. intermedia. Neste estudo, verificou-se que Lu. neivai foi mais frequente do que Lu. whitmani e Lu. intermedia. Lu. neivai e Lu. intermedia são considerados vetores da LTA em estados da região Sudeste do Brasil.23 Lu. neivai tem sido incriminado, também, como principal vetor de LTA em outros países e está associado com surtos e epidemias em ambientes altamente modificados.17 Condição esta, verificada na bacia do rio São Bartolomeu, cuja ocupação territorial desordenada, com a rápida transformação de áreas rurais em loteamentos com características urbanas, promoveu uma impressionante perda da vegetação natural.13

Quanto ao baixo número identificado de Lutzomyia intermedia (2 espécimes), convém esclarecer que até julho de 2007 Lutzomyia neivai era identificada como sendo Lutzomyia intermedia, espécie que só ocorria na região do São Bartolomeu. Por meio de revisão na identificação das espécies do DF, o Centro de Pesquisas René Rachou identificou Lu. neivai dentre os exemplares identificados como Lu. intermedia. Uma vez que grande parte das lâminas identificadas como Lu. intermedia foram descartadas, desconsiderou-se qualquer dado referente a esta espécie até julho de 2007. A partir de agosto de 2007 iniciou-se a identificação das duas espécies, observando-se a predominância de Lu. neivai (604 espécimes) sobre Lu. intermedia (2 espécimes). Lu. intermedia e Lu. neivai são espécies muito similares. Estudos com Lu. intermedia realizados em diferentes regiões demonstraram a existência das duas espécies nos exemplares reconhecidos como Lu. intermedia?10

Lu. flaviscutellata foi pouco frequente (0,11%) e só foi coletada em ambientes de cerrado, sendo as veredas (84,2%) os locais de coleta mais frequentes. A utilização de CDC como único método de coleta pode ter limitado o número de espécimes coletados de Lu. flaviscutellata, já que a armadilha de Disney, com uso de roedor como isca, é mais eficiente para coleta desta espécie.14 Considerando a alta frequencia de Lu. flaviscutellata em vereda, salientamos que são ambientes úmidos e com presença de pequenos roedores. Sobre o comportamento de Lu. flaviscutellata, estudos a descreveram como sendo uma espécie zoofílica cujo "habitat" são áreas de floresta, realizando o repasto sanguíneo em pequenos roedores dos gêneros Oryzomys e Proechimys, sendo considerada agente vetor da Leishmania (Leishmania) amazonensis que causa a leishmaniose cutânea difusa.31

Apesar da importância de Lu. davisi como vetor de Leishmania ainda ser discutida, inserimos esta espécie na relação dos potenciais transmissores da LTA por ter sido comprovado o seu envolvimento em ciclos enzoóticos e zoonóticos na região Amazônica, com isolamento de Leishmania (V.) naijfi e L. (V.) braziliensis.21,22

Lu. davisi apesar de ter sido encontrada nas três bacias hidrográficas, foi mais frequente na bacia do rio Corumbá do que nas bacias dos rios Maranhão e São Bartolomeu. E do total de espécies coletadas na bacia hidrográfica do Corumbá, foi também a mais frequente, com 304 espécimes coletados. Mesmo sendo uma espécie eclética, chama atenção a sua frequência em ambientes naturais em relação aos domésticos.

Apesar de se ter utilizado como unidade geográfica as bacias hidrográficas, este estudo não reflete a realidade da distribuição dos flebotomíneos por bacia. Foram observadas algumas diferenças na distribuição dos flebotomíneos por essas unidades hidrográficas, conforme já citado, mas o número reduzido de pontos de coleta em cada e a adoção de apenas um método de coleta não permitem esta afirmação. Para melhor caracterização da fauna flebotomínica e compreensão do processo de transmissão das leishmanioses no DF, faz-se necessário a realização de estudos que abordem a infecção natural dos flebotomíneos vetores, suas preferências alimentares, reservatórios e variação sazonal das espécies.

 

Agradecimentos

Às pessoas das comunidades de São Sebastião, Sobradinho, Gama e Planaltina, que permitiram a instalação das armadilhas em suas propriedades e que colaboraram no seu manuseio; aos técnicos do Laboratório de Entomologia (Dival/SVS/SES) Enilce de Oliveira, José Maria de Queiroz, Maria do Socorro Moreira Serra e Solange Ribeiro, pela contribuição na instalação das armadilhas CDC e montagem dos flebotomíneos; a Eriel Sinval Cardoso, Engenheiro Florestal e Agrônomo do Instituto Brasília Ambiental do Distrito Federal (Ibram), pela contribuição na identificação das fitofisionomias de cerrado e ao Programa de Pesquisa para o SUS (PPSUS) pelo apoio financeiro.

 

Referências

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Endereço para correspondência:
Diretoria de Vigilância Ambiental e Saúde/SES,
Estrada Contorno do Bosque,
Lote 4, SAIN, Brasília-DF, Brasil.
CEP:70620-000
E-mail:msocorro.laurentino@gmail.com

Recebido em 13/10/2009
Aprovado em 12/04/2010

 

 

*Trabalho financiado com recursos do PPSUS - Gestão Compartilhada do SUS. Processo no 193000106/2005.