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Epidemiologia e Serviços de Saúde

versión impresa ISSN 1679-4974versión On-line ISSN 2237-9622

Epidemiol. Serv. Saúde v.20 n.2 Brasília jun. 2011

http://dx.doi.org/10.5123/S1679-49742011000200014 

ARTIGO ORIGINAL

 

Prática alimentar e diabetes: desafios para a vigilância em saúde

 

Food practice and diabetes: challenge to surveillance in health

 

 

Andréa Fernanda Lopes dos SantosI; José Wellington Gomes AraújoII

IHospital Getúlio Vargas, Secretaria de Saúde do Estado do Piauí, Teresina-PI, Brasil. Faculdade de Saúde, Ciências Humanas e Tecnológicas do Piauí, Teresina-PI, Brasil
IIDepartamento de Epidemiologia e Métodos Quantitativos em Saúde, Escola Nacional de Saúde Pública Sérgio Arouca, Fundação Osvaldo Cruz, Rio de Janeiro-RJ, Brasil

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

OBJETIVO: caracterizar as dificuldades encontradas para mudanças de práticas alimentares de pessoas com diabetes mellitus tipo 2 atendidas em consultório de nutrição de um ambulatório de alta complexidade.
METODOLOGIA: a amostra foi composta por pessoas com diabetes mellitus tipo 2 atendidas no ambulatório de nutrição do Sistema Único de Saúde em Teresina, Piauí, pelo método da pesquisa qualitativa, mediante entrevista semiestruturada.
RESULTADOS: foi possível compreender as práticas alimentares em sua multidimensionalidade; essas valorações, quando não consideradas pelos profissionais, dificultam a relação com as pessoas, que não aderem satisfatoriamente ao plano dietoterápico; valores culturais e afetivos e limitações econômicas também interferem na adesão ao tratamento.
CONCLUSÃO: o estudo detectou o uso frequente da medicina popular na tentativa de cura ou melhora da doença; o conhecimento de aspectos subjetivos da realidade, com foco regionalizado, pode contribuir para a vigilância em saúde ao oferecer subsídios para intervenções nutricionais eficazes.

Palavras-chave: diabetes mellitus; vigilância em Saúde Pública; educação em saúde.


SUMMARY

OBJECTIVE: to characterize the difficulties encountered in changing the eating habits of people with type 2 diabetes mellitus treated at an outpatient nutrition clinic of high complexity.
METHODOLOGY: the sample consisted of people with type 2 diabetes mellitus attending the outpatient nutrition clinic of the Unified Health System (SUS) in the Municipality of Teresina, State of Piauí, Brazil; the authors adopted the method of qualitative assessment, through semi-structured interviews.
RESULTS: it was possible to understand the eating practices in its multidimensionality; these valuations, while not considered by the professionals, complicate the relationship with people who do not adhere satisfactorily to diet therapy plan; cultural and emotional values, and economic limitations, also interfere with treatment adherence.
CONCLUSION: the study found a frequent use of traditional medicine in an attempt to cure or improvement. The knowledge of subjective aspects of reality with regionalized focus may contribute to health surveillance, offering support for effective nutritional interventions.

Key words: diabetes mellitus; vigilance in public health; education in health.


 

 

Introdução

Importantes transformações marcaram o perfil epidemiológico do Brasil nas últimas décadas. De um quadro caracterizado por altas taxas de morbidade e mortalidade por doenças infecciosas e parasitárias, transitou-se, em um período de tempo relativamente curto, para um predomínio das doenças crônicas não transmissíveis (DCNT), provocando alterações na maneira de adoecer e morrer da população.1,2 No Brasil como um todo, essa transição epidemiológica não foi homogênea, o que se pode explicar pelas diferenças regionais quanto à situação socioeconômica, acesso a serviços de saúde, diversidade cultural, velocidade de urbanização, acesso e uso de informações, e mudanças de estilo de vida.2,3

A complexidade etiológica das DCNT implica estas não estarem condicionadas pelos aspectos sociais, culturais, políticos e ambientais, e, de forma mais direta, por fatores de risco comportamentais e atitudinais, os quais se imbricam de forma sinérgica, como no tabagismo, consumo excessivo de álcool, alimentação inadequada, dislipidemias, baixo consumo de frutas e verduras, consumo elevado de colesterol e gordura saturada e sedentarismo.4-6

Estudo multicêntrico realizado em nove capitais brasileiras, entre 1986 e 1988, demonstrou uma prevalência de diabetes mellitus de 7,6% na população de 30 a 69 anos de idade.7 Dados mais recentes, como os de um estudo realizado em Ribeirão Preto, Estado de São Paulo, apontaram uma prevalência de 12,1% em população da mesma faixa etária.8 A Sociedade Brasileira de Diabetes estima que no Brasil, em 2005, existiam em torno de oito milhões de indivíduos com DM.5

O aumento do sobrepeso e a obesidade, associado aos estilos de vida e ao envelhecimento populacional, são os principais fatores a explicar o crescimento da prevalência de diabetes tipo 2.9,10 A orientação nutricional e o estabelecimento de dieta para o controle metabólico de pacientes com diabetes mellitus, e sua associação a mudanças no estilo de vida - incluindo a atividade física, - são considerados fundamentais.

No plano alimentar, deve-se levar em consideração os hábitos alimentares dos indivíduos, suas condições socioeconômicas e o acesso aos alimentos. Porém, as mudanças esperadas não são fáceis de serem realizadas, pois envolvem valores arraigados na cultura, nas tradições regionais e no espaço social-alimentar do homem.11 Diversos autores chamam a atenção para o fato de que a alimentação não se limita a um ato que satisfaz necessidades biológicas: mais do que isso, ela representa valores sociais e culturais, envoltos em aspectos simbólicos que materializam a tradição na forma de ritos e tabus.12,13 A visão antropológica da alimentação também se faz necessária quando o tema é abordado pela Saúde Pública. Esse diálogo tem proporcionado vários enfoques, como os da antropologia e da alimentação, que enriquece a compreensão da forma como aspectos sociais e culturais relacionados a hábitos alimentares condicionam o comportamento dos indivíduos de determinada sociedade.12,14

O objetivo deste estudo foi caracterizar as dificuldades encontradas para a mudança de práticas alimentares de pessoas com diabetes mellitus tipo 2 atendidas no consultório de nutrição de um ambulatório de alta complexidade. Seus autores esperam que ele possa contribuir para a adoção de práticas de vigilância em saúde e ações de educação e comunicação em saúde pelos serviços.

 

Metodologia

Realizou-se um estudo descritivo em um consultório de nutrição de um ambulatório de alta complexidade, por meio de uma abordagem qualitativa, com o propósito de investigar a experiência das pessoas em sua vida cotidiana, buscando compreender questões da sua própria realidade, incluindo fatos, fenômenos e situações que, a rigor, não se pode quantificar.15

O cenário de investigação foi o Hospital Getúlio Vargas, da rede estadual do Sistema Único de Saúde (SUS), um hospital de ensino de nível terciário e referência regional localizado no município de Teresina, capital do Estado do Piauí. Seu ambulatório recebe grande afluxo de pessoas dos bairros periféricos, de cidades do interior do Estado e de Estados vizinhos.

Os sujeitos do estudo foram pessoas com diagnóstico de diabetes mellitus tipo 2, referidos para atendimento no ambulatório. Esses indivíduos foram encaminhados ao profissional de nutrição (responsável pela pesquisa) por médicos ou outro(s) profissional(is) do mesmo hospital, bem como de outros serviços. Os critérios de inclusão referiam-se a pessoas com diabetes tipo 2, entre 18 e 60 anos de idade, residentes em Teresina-PI. Foram excluídas pessoas de grupos vulneráveis - população carcerária, indígenas, pessoas com transtornos psiquiátricos - e gestantes ou nutrizes com diabetes gestacional.

O instrumento de coleta de dados constituiu-se de um roteiro para entrevista semiestruturada, aplicado após previa autorização dos sujeitos pesquisados. O número de pessoas entrevistadas foi de 20 pacientes, encerrando-se a coleta com esse número ao se constatar saturação do discurso. A pesquisa foi realizada no período de maio a junho de 2008.

Realizadas as entrevistas, seus resultados foram examinados com a referência teórica da análise de conteúdo, metodologia proposta por Bardin.16 Em seguida, esses conteúdos analíticos foram discutidos tendo como referências a literatura pesquisada e a experiência e vivência no atendimento em consultório. Por último, os mesmos conteúdos, após a discussão crítica, foram classificados em categorias temáticas, segundo diferentes dimensões do objeto de estudo, existentes a priori , previsíveis portanto, correspondentes a algumas hipóteses contidas no roteiro de entrevista: 'relação com o profissional e a prescrição da dieta'; 'prática alimentar dos entrevistados'; 'não aceitação da doença'; 'limitações econômicas' e 'valor afetivo da alimentação'. Mais uma categoria - 'uso da medicina popular' - surgiu espontaneamente, na fala dos entrevistados

Considerações éticas

As entrevistas foram realizadas em consonância com os ditames éticos da pesquisa em seres humanos. Cada pessoa foi informada sobre os objetivos da pesquisa e sua forma de participação, das gravações em áudio, da proteção do anonimato e resguardo do sigilo, bem como de sua opção de desistência do estudo a qualquer momento e sem prejuízo pessoal. A pesquisa foi aprovada pelo Comitê de Ética em Pesquisa da Escola Nacional de Saúde Pública Sérgio Arouca, da Fundação Oswaldo Cruz/ RJ (Protocolo CEP/ENSP n° 188/07).

 

Resultados

O grupo estudado foi composto de 20 pessoas, 18 do sexo feminino. A idade variou entre 30 e 59 anos. Quanto à ocupação, 11 eram servidores públicos, quatro aposentados e os demais: lavrador, doméstica e comerciante. Apenas um entrevistado referiu não ter qualquer renda, enquanto 16 recebiam mensalmente até três salários mínimos; e os demais, acima desse valor. Em relação à escolaridade, 14 referiram ter ensino fundamental; e os demais, ensino médio completo. Todos residiam em bairros da periferia de Teresina. Metade dos entrevistados referiu ter hipertensão arterial e 11 faziam uso de medicação hipoglicemiante.

Relação com o profissional e a prescrição da dieta

A prescrição de dietas para pessoas com diabetes mellitus tipo 2 é um aliado importante no controle clínico-metabólico desse agravo, sendo conduta rotineira do profissional de nutrição.

Assimetria da relação com o profissional de saúde - a formação do profissional de saúde é essencialmente tecnicista, com quase nenhuma referência aos aspectos culturais que, em algumas situações, podem ser decisivos, capazes de enviesar a compreensão do profissional e gerar problemas na troca de saberes com os diabéticos. Essas pessoas vêem na figura do profissional o detentor do saber e nele depositam toda a confiança para o seu tratamento.

No estudo, foi observada uma postura autoritária, por sua vez reproduzida pela família, podendo gerar sentimentos contraditórios de culpa, medo e raiva. Existem também profissionais que parecem adotar uma postura compreensiva e dialógica com seus clientes. As seguintes falas denotam essas situações:

[...] O médico me falou que eu podia comer qualquer fruta, qualquer alimento, mas que fosse só um pedaço, um pouco [...] eu tenho medo de comer manga mais eu como. Só que não satisfaz só com uma né? (AS)

Porque não vou dizer que aqui acolá eu não saio da dieta. Aí o dotô brigou muito comigo, e a minha filha estava comigo, Ave Maria! Fuipra casa calada e ela (a filha) só era jogando na minha cara. Fiquei com tanta raiva! (VM)

Conhecimento da dieta e demais orientações e reconhecimento de sua importância - nos discursos dos sujeitos, observou-se que há conhecimentos sobre o plano alimentar e um reconhecimento da importância dessa prescrição feita pelo profissional de nutrição, bem como das recomendações feitas pelos outros profissionais de saúde. Nesse sentido, são elucidativas as seguintes falas:

A médica da família, ela falou que a gente pode comer de tudo e de tudo nada [...] é um pouquinho de cada [...] mas a alimentação, o controle é do próprio diabético que faz. Eu acho que em primeiro lugar a gente tem que fazer a dieta. Eu tenho que comer controladamente. (FA)

Eu como muita verdura no feijão, como muita salada. Minha alimentação melhorou com minha dotora nutricionista. (FJN)

Não seguimento estrito da dieta prescrita - uma alimentação equilibrada é reconhecida, pelos entrevistados, como necessária para uma vida saudável e não apenas para o diabetes. Apesar disso, todos os entrevistados seguem a prescrição dietética de forma parcial. Alguns a seguem de forma estrita, apenas até a glicemia se aproximar do nível normal, quando então abandonam a prescrição, retornando a ela quando os sintomas reaparecem. Outros seguem a dieta de forma contínua, embora não em sua totalidade:

O negócio é muito ruim mais a gente tem que tentar. Tenho que fazer... pelo menos a metade. (V)

É muito importante o papel da dieta na minha saúde e na saúde de qualquer pessoa. Seguir direitinho a dieta, o certo é esse. Só que é muito difícil isso aí, pelo menos prá mim é. (TR)

É porque eu não obedeço como eu devia obedecer, quando eu estou sentindo qualquer problema aí eu obedeço, faço tudo direitinho e controlo, mas quando eu estou bem aí eu torno voltar tudo a estaca zero, como de tudo. (TM)

Prática alimentar dos entrevistados

As falas dos sujeitos demonstram claramente que outras dimensões têm forte influência no seu cotidiano.

As práticas tradicionais predominam sobre as prescrições dietoterápicas - as práticas alimentares tradicionais foram construídas a partir de diferentes dimensões e diferentes culturas, e condicionadas por um cardápio relativamente escasso em que, quase sempre, estão ausentes as verduras e as frutas. Nesse caso, a escassez foi historicamente compensada pela culinária variada, os mesmos alimentos sendo preparados de formas diversas. A dietoterapia, mesmo introduzindo outros alimentos, é considerada monótona e pouco apetitosa. O diabetes e seu tratamento causam um forte impacto nos hábitos rotineiros dos entrevistados. Aspectos familiares, culturais e afetivos se entrelaçam nesse contexto. Observou-se nas falas:

Eu como mão de vaca, panelada, lasanha, às vezes, se eu comer em excesso eu sinto assim, meio tonta [...] sei que coisas gordurosas nada disso eu posso comer [...] Na minha casa varia muito, cada dia uma comida diferente, eu como cozido, maria isabel, tudo isso eu faço e como [...] aos finais de semana tem as filhas que vêm a todas as refeições comigo. (TM)

É doutora se eu for dizer pra senhora a senhora até me reclama. Porque eu gosto de feijão com farinha [...] Mas a farinha me faz mal, acho que faz mal para todo mundo que é diabético [...] porque eu fui criada na roça, isso é de família. (FI)

A influência da mídia depende do poder aquisitivo - a propaganda de alimentos pode interferir na compra e no consumo da população. Nas falas dos entrevistados observamos que apesar de terem acesso à televisão, a mídia tem pouca influencia no consumo de alimentos industrializados. Por outro lado, a veiculação de informações relacionadas à dieta poderia reforçar o plano dietoterápico do profissional. Os conceitos diet e light não são conhecidos de todos:

(Diet e light)/á vi. Não me interessa pelo seguinte: é coisa cara pra gente comprar... O dinheiro não dá. (A)

Propaganda não. [...] Só o que a nutricionista fala ou as pessoas fala.[...] Mas é do mesmo jeito que ela fala na televisão. Eu acho até que a senhora já falou na televisão. (FI) O que me interessa é o que o médico me diz e o mais eu vejo nos livros, revista também. (MLL)

Não sei a diferença entre os dois (diet e light). (LM)

Não-aceitação da doença

A não aceitação da doença foi observada nas falas de algumas pessoas entrevistadas, em que, associada a essa rejeição, segue-se a não adesão completa à dieta, embora todos reconheçam sua importância no tratamento do diabetes. Em algumas falas, essa rejeição à doença parece ser uma não aceitação do tratamento, seja medicamentoso ou dietético. Contudo, pelo menos um dos entrevistados tinha uma compreensão peculiar - que lhe fora explicada por um profissional -, o que o fazia aceitar o diabetes com alguma serenidade. Outros aceitam a doença com resignação. As seguintes falas nos permitem refletir:

Tem dia que acho enjoativo, tem dia que estou revoltada mesmo com a doença, porque eu nunca me acostumei com ela, eu sou revoltada, quando eu começo a fazer exames eu já começo me revoltar [...]porque eu ainda não me acostumei, foi uma coisa que não encaixou, quando eu pego o remédio eu só falto é morrer de chorar, revoltada com aquele tanto de remédio que eu tenho que engolir. (FA)

No dia que vim pro médico que cheguei lá mostrando o exame, foi uma confusão, até chorei de ódio [...] fiquei cheia de ódio [...] a senhora fica com raiva da gente porque a gente só quer seu bem (filhas) vai-te a porra, eu vou logo é morrer amanhã. (VM)

Respeito ela, é uma doença que se a gente não respeitar ela, ela não respeita ninguém não, ela tortura a gente demais, ela mutila [...] diabete é perigosa. (MCS)

O médico falou que diabete não é uma doença, é um problema de saúde: se eu me cuidar eu sou normal para trabalhar e conviver. (DL)

Limitações econômicas

"Seguir o pé da letra não tem condição!" - observou-se nas falas de alguns dos entrevistados que o poder aquisitivo é um componente decisivo para aquisição de alimentos, citado como uma justificativa limitante da compra e da frequência de consumo de determinado tipo de alimento. Além disso, "comida mesmo" parece incluir apenas os alimentos que fazem parte do cardápio tradicional:

Gosto de comer comida mesmo. Eu gosto de comer carne de porco, à vontade, bode, ah sim... frango eu já abusei, como mas não gosto mais. Fruta, assim... se eu pudesse, eu me arreiava em cima das frutas, pois é. A gente não tem condição de tá se alimentando assim, né? (AS)

Eu não tenho condições de fazer a dieta. Os motivos são os seguintes: porque essa renda só sai de mim, né? [...] Prá mim é, porque se eu tivesse condições eu seguia a dieta toda direitinho. Comprava meus alimentos, tudo. Hoje não sei o que é uma fruta. (AS)

O valor afetivo da alimentação

Os hábitos alimentares, desde a infância, tradicionalmente são adquiridos e construídos no seio familiar, todos à mesa nas horas de refeições. Esse também é o momento do fortalecimento dos laços afetivos, um genuíno ritual social e familiar. Atualmente, famílias se reúnem apenas aos finais de semana ou nas datas comemorativas.

Alguns entrevistados referem-se a doces como se tivessem um gostinho de infância, e ainda outros lembram com saudade o sabor de iguarias agora interditadas:

No dia do aniversario que a gente quer ver toda a família junta, né? Aí a gente faz tanta comida... Aí eu como mesmo de tudo, de tudo um pouco. Depois eu faço exames de tudo: figo, rim, bofe, coração, eu faço tanto exame. (MCS)

O problema é que eu gosto muito é de doce... Gostava. Bombom, chocolate, doce de leite, doce de coco, rapadura... essas coisa a gente foi criada, naquele tempo que a gente comia mesmo essas coisas. De primeiro eu gostava de fazer doce de leite e de mamão, agora doce nenhum porque eu não posso comer, então não posso nem ver. (MGN)

Aos finais de semana tem as filhas que vêm a todas as refeições comigo. (TM)

Às vezes eu sinto saudade de um picadinho com maxixe e abóbora. (DC)

Medicina popular "Sou da Casca do Pau!" - nas falas dos entrevistados, observou-se que a tradição está fortemente presente na forma como lidam com o diabetes. O uso da medicina popular não foi perguntado diretamente; no entanto, todos fizeram referência a essa prática. Remédios caseiros, chás e outras preparações são bastante discutidos e trocados no seu meio social. Há uma forte credibilidade e o uso parece ser mais ou menos indiscriminado:

Se disser "é prá isso" eu tomo... Outro dia me indicaram não sei o quê do olho do gato. (VM)

Alguns - como o chá da pata de vaca - são referidos na maioria das falas.

Um único entrevistado, embora referindo conhecimento de chás e outros preparos, deles não faz uso, porque tem medo:

Vi um paciente morrer com chá. (MLL)

Sabe-se que o uso de chás e simpatias envolve sentimentos de fé e autocuidado e, nesse caso, mesmo que não tenham um efeito farmacológico sobre o diabetes, não se pode duvidar de uma possível eficácia simbólica:

Berinjela, maracujá, casca do maracujá, bota pra secar, pisa e faz a farinha. Usa como farinha em cima da comida, né? E outras coisas mais que ensinam. Água dentro da sapucaia, chá de folha de limão com alfazema. Eu faço por época. (AM)

Às vezes eu passei pela hidroginástica e as colegas me dão nome de chá. Agora tô tomando um que ela me deu, não sei o que do olho do gato [..] essa minha colega disse que a dela tava lá em cima, tomou e desceu. (VM)

Falar a verdade, eu sou da casca do pau. Eu faço garrafada lá em casa. Boto a casca de molho e tomo. Aí tomei muita pata de vaca, que me ensinaram que era bom, né? Aí eu vou no mercado e compro umas cascas de pau que diz que serve prá isso, serve pra aquilo, pra aquilo outro. Eu mesmo pego e misturo tudo. Fico tomando um pouquinho todo dia [...] se disser é prá isso, eu tomo. (MCS)

 

Discussão

A análise compreensiva permitiu identificar, na fala dos entrevistados, diversos sentidos na sua percepção da alimentação, correlacionados ao contexto em que vivem, sua cultura, seu cotidiano e suas condições de vida. A experiência com a própria enfermidade é fonte de conhecimento sobre o diabetes e, da mesma forma, do reconhecimento dos benefícios trazidos pela terapia e demais recomendações profissionais. Ainda assim, fatores de ordem extremamente complexos dificultam o seguimento estrito da terapêutica.

Acresce que parte dos profissionais - não todos - desconhece aquela complexidade, lidando com o diabetes de forma meramente biológica e tecnicista. Esse desconhecimento leva a uma postura autoritária e não dialógica com as pessoas afetadas pelo diabetes, uma incompreensão das dificuldades reais que, por sua vez, não contribui para a adesão ao tratamento na medida em que não estabelece um vínculo de confiança na relação com aquelas pessoas. Convém ressaltar que essa postura autoritária, da qual resulta uma relação de assimetria com a clientela, também é um fato cultural, nesse caso gerado a partir da formação essencialmente tecnicista desses profissionais. Ainda assim, há sinais de mudança, como detectado em algumas falas; particularmente em uma, que relata uma compreensão interessante, ressignificada a partir da explicação de um profissional: que o diabetes não seria uma doença mas um problema de saúde que, bem controlado, não limitava o trabalhar e conviver.

A Política Nacional de Humanização da Saúde (PNH), do Ministério da Saúde, tem como diretriz a construção de relações solidárias e comprometidas entre os profissionais e sua clientela, destacando os aspectos subjetivos além da valorização dos diferentes sujeitos. Dessa forma, mais que uma atitude respeitosa e cidadã, espera-se também maior efetividade das prescrições técnicas.17

Mesmo a ausência de vínculo solidário não impede que as pessoas apreendam ou ressignifiquem o que lhes é dito pelos profissionais: parece não ser por desinformação que as pessoas acompanhadas por especialistas apresentem aquelas dificuldades. Nas falas dos entrevistados, a fome que sentem com a dieta é uma dessas dificuldades, bem como o fato de muitos não gostarem de verduras, por exemplo. Alguns tomam apenas a medicação, sem seguir a dieta. A maioria faz dieta parcial (comer de tudo um pouco) ou intermitente (quando sentem as alterações clínicas ou constatam a glicemia alterada). Assim, pode-se concluir que a orientação meramente técnica parece não ser suficiente para a mudança dos hábitos, sendo necessário um diálogo que compreenda todo o contexto que envolve esses hábitos. Em estudo realizado por Guimarães e Takayanagui com pacientes inseridos no Programa de Assistência ao Diabético de uma unidade básica de Ribeirão Preto-SP, verificou-se que, das prescrições médicas recebidas, apenas 17,2% abrangiam as recomendações da Sociedade Brasileira de Diabetes.18

Raynaut19 discute a busca de novas abordagens nas praticas dos profissionais de saúde, apontando que sua atuação deve ser direcionada a indivíduos e coletividades, no sentido de curar e educar, admitindo que as pessoas vivem em redes sociais e assumem comportamentos próprios dessas redes. A mudança configura-se como um desafio que passa pela abordagem da antropologia da saúde e exige um olhar interdisciplinar.

A construção das práticas alimentares, que se diferencia em cada grupo, está inserida na cultura, ocupando posição central no aprendizado social.20 Nessa direção, as práticas alimentares devem ser compreendidas desde a amamentação, introdução de alimentos complementares e até adoção da alimentação familiar.21

Embora seja inequívoca a influência da mídia nas práticas alimentares, no grupo entrevistado, esse aspecto se mostrou com pouca ou quase nenhuma relevância, pelo baixo poder aquisitivo e de acesso aos bens apregoados. A presença de uma forte cultura alimentar também parece oferecer resistência a esses pregões.

Na categoria 'Não aceitação da doença', a análise das entrevistas revelou, quase sempre, um sentimento de forte medo das conseqüências do diabetes, associado a conflitos de várias ordens e expressos, geralmente, na recusa ou impossibilidade de seguir de forma estrita as recomendações dietéticas, atividades físicas e mesmo a prescrição dos medicamentos. Esse sentimento é reforçado pela divulgação do conhecimento sobre o diabetes, oficial ou midiático, que geralmente apela para as conseqüências dramáticas da doença, no intuito de reforçar a adesão ao tratamento.

Seguindo essa linha investigativa, na análise comparativa dos dados, detectou-se outra ordem de conflito, de nível conceitual, não explicitada nas falas mas passível de detecção metodológica: o diabetes, tecnicamente considerado como uma doença grave, também poderia ser visto - conforme a fala de um dos entrevistados, aqui destacada - como um problema de saúde a ser controlado, não se apresentando necessariamente como uma doença.

Abolindo-se o apelo aos sentimentos negativos, acredita-se que a educação e a comunicação em saúde teriam maior efetividade. Em um estudo realizado em colônia de fim de semana para diabéticos,22 a abordagem psicológica e multidisciplinar nessa população pode melhorar o controle metabólico e prevenir complicações, especialmente as agudas, como transtornos depressivos e ansiedade, e melhorar a qualidade de vida dessas pessoas. O mesmo estudo aponta que a educação em diabetes, incluindo dinâmicas de grupo associadas a lazer e cultura, é fundamental para uma maior efetividade do tratamento.

No Brasil, a crítica à educação em saúde tradicional tem sido intensa nos últimos anos.17 As práticas educativas dos profissionais deveriam estar abertas à possibilidade de trabalhar com as representações que as pessoas constroem sobre seus problemas de saúde, incorporando elementos que façam sentido no contexto geral.

Na categoria 'Limitações econômicas', o poder aquisitivo surge como um fator limitante da compra e frequência de consumo de determinados alimentos. Em algumas falas, isso aparece como justificativa forte para a não adesão à dieta prescrita. Aqui, destacamos dois aspectos importantes: primeiro, o poder aquisitivo deve ser levado em consideração ao se prescrever um plano alimentar; segundo, a importância do diálogo na educação nutricional, principalmente pelo profissional de nutrição. Esse modo interativo de conduzir a orientação dietética e a educação nutricional, seja referenciado ao poder aquisitivo das pessoas ou a outros fatores intervenientes, como hábitos e cultura, está em consonância com o pensamento de alguns autores.12,21

Com a categoria 'O valor afetivo da alimentação', pretendia-se denotar a comensalidade como um fator de fortalecimento dos laços afetivos, pois o convívio é a imagem da vida em comum (com vivere).23 A relação de laços afetivos aparece na fala dos entrevistados, já na divisão das tarefas domésticas e até na escolha, compra e preparo dos alimentos, configurando papéis sociais no seio familiar. Esses papéis podem ser mais ou menos bem definidos (tradição); ou - o que é mais comum - indefinidos, misturados, alternados, de acordo com as estratégias de sobrevivência das famílias. Neste caso, configuram-se novos papéis sociais, refletidos na comensalidade.24 Também foi possível detectar outro aspecto, de ordem menos coletiva e mais subjetiva: o alimento associado a recordações, talvez vivências passadas. A saudade foi referida como um sentimento associado a alguns alimentos atualmente proibidos. Novamente, um significado da alimentação surge com forte simbolismo e pode-se afirmar que ele deva ser constituinte da própria identidade dos indivíduos.

Outra categoria destacada na fala dos entrevistados foi a prática arraigada da 'Medicina popular'. Todos fizeram referência ao uso de algum tipo de chá ou preparo caseiro com o objetivo de curar ou melhorar o diabetes. O respeito à tradição e os rituais de auto-cuidado se entrelaçam nessas práticas. Outro aspecto que se destaca nas entrevistas é a forma dinâmica como esses usos, advindos de um tempo longo, se atualizam e se tornam presentes no cotidiano das pessoas.

O estudo possibilitou entender as dificuldades que as pessoas com diabetes têm para aderir à dieta prescrita e às recomendações nutricionais, conhecer a dimensão valorativa das praticas alimentares e descrever as percepções e ressignificações do grupo pesquisado.

A vigilância das doenças crônicas não transmissíveis deve privilegiar as realidades locais, sua dimensão e heterogeneidade social, econômica e cultural no país. Essa diversidade condiciona tanto o perfil epidemiológico de doenças e agravos como a forma de tratamento individual ou controle coletivo. A abordagem qualitativa de dados relativos à saúde complementa as análises quantitativas. Ela também é importante na maior aproximação com as realidades locais e, dessa forma, pode trazer subsídios que contribuam para maior efetividade das ações de promoção e educação em saúde, privilegiando características peculiares de cada região.

 

Agradecimentos

À Secretaria de Vigilância em Saúde do Ministério da Saúde, pelo financiamento do Mestrado Profissional em Saúde Publica na área de concentração em vigilância em saúde, oferecido pela Escola Nacional de Saúde Pública - ENSP/Fiocruz.

Ao professor orientador José Wellington Gomes de Araújo e à professora do curso de Pós-Graduação - Mestrado - da ENSP/Fiocruz, Inês Mattos, pelas valiosas sugestões que contribuíram para a construção deste trabalho.

 

Referências

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Endereço para correspondência:
Hospital Getulio Vargas,
Avenida Frei Serafim, 2352, Centro,
Teresina-PI, Brasil.
CEP:64001-120
E-mail:anfernanda@yahoo.com

Recebido em 24/11/2009
Aprovado em 27/08/2010