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Epidemiologia e Serviços de Saúde
versão impressa ISSN 1679-4974versão On-line ISSN 2237-9622
Epidemiol. Serv. Saúde v.20 n.4 Brasília dez. 2011
http://dx.doi.org/10.5123/S1679-49742011000400004
ARTIGO ORIGINAL
Estudo de caso do processo de formulação da Política Nacional de Alimentação e Nutrição no Brasil
Case study of the formulation of the National Policy of Diet and Nutrition in Brazil
Denise Bomtempo Birche de CarvalhoI; Deborah Carvalho MaltaII; Elisabeth Carmen DuarteIII; Luciana Monteiro Vasconcelos SardinhaIV; Lenildo de MouraV; Otaliba Libânio de Morais NetoVI; Ana Beatriz VasconcelosVII; Anelise Rizzolo de Oliveira PinheiroVIII
IDepartamento de Serviço Social, Instituto de Ciências Humanas, Universidade de Brasília, Brasília-DF, Brasil
IICoordenação-Geral de Doenças e Agravos Não Transmissíveis, Departamento de Análise de Situação de Saúde, Secretaria de Vigilância em Saúde, Ministério da Saúde, Brasília-DF, Brasil; Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte-MG, Brasil
IIIFaculdade de Medicina, Universidade de Brasília, Brasília-DF, Brasil
IVCoordenação-Geral de Doenças e Agravos Não Transmissíveis, Departamento de Análise de Situação de Saúde, Secretaria de Vigilância em Saúde, Ministério da Saúde, Brasília-DF, Brasil
VDepartamento de Análise de Situação de Saúde, Secretaria de Vigilância em Saúde, Ministério da Saúde, Brasília-DF, Brasil
VIDepartamento de Análise de Situação de Saúde, Secretaria de Vigilância em Saúde, Ministério da Saúde, Brasília-DF, Brasil. Universidade Federal de Goiás, Goiânia-GO, Brasil
VIICoordenação-Geral da Política de Alimentação e Nutrição, Departamento de Atenção Básica, Secretaria de Atenção à Saúde, Ministério da Saúde, Brasília-DF, Brasil
VIII Departamento de Nutrição, Faculdade de Ciências da Saúde, Universidade de Brasília, Brasília-DF, Brasil
RESUMO
OBJETIVO: analisar o processo de formulação da 'Política Nacional de Alimentação e Nutrição (PNAN)' no campo das ações públicas voltadas à proteção e promoção da saúde.
METODOLOGIA: trata-se de estudo de caso qualitativo multicêntrico, tendo por base o período de 1998 a 2005; foram realizadas 16 entrevistas semi-estruturadas com atores-chave do governo e sociedade civil, e analisadas diferentes fontes secundárias de informação para reconstituição do processo, a movimentação dos atores e suas motivações; para a análise da construção da PNAN, utilizou-se uma matriz com cinco categorias - contexto, ideias, instituições, interesses e instrumentos de política.
RESULTADOS: a PNAN foi formulada de maneira participativa, envolvendo diversos setores do governo e sociedade organizada; sua publicação, em 1999, destacou as seguintes diretrizes político-institucionais - estímulo às ações intersetoriais, com vistas ao acesso universal aos alimentos; garantia da segurança e da qualidade dos alimentos e da prestação de serviços; monitoramento da situação alimentar e nutricional do país; promoção de práticas alimentares e estilos de vida saudáveis; prevenção e controle dos distúrbios nutricionais e de doenças associadas à alimentação e nutrição; promoção do desenvolvimento de linhas de investigação; e desenvolvimento e capacitação de recursos humanos.
CONCLUSÃO: o processo de formulação da 'Política Nacional de Alimentação e Nutrição' constituiu um sólido aprendizado, amparado na busca do aprimoramento democrático, da participação cidadã na discussão com a sociedade civil.
Palavras-chave: vigilância nutricional; segurança alimentar e nutricional; obesidade; política de saúde.
SUMMARY
OBJECTIVE: analyze the process of the formulation of the 'National Policy of Diet and Nutrition in Brazil (NPDN)' in the field of public actions turned to health protection andpromotion.
METHODOLOGY: multicentric qualitative case study, based on the periodfrom 1998 to 2005; sixteen semi-structured interviews with key government and civil society actors were performed and different secondary information sources analyzed for reconstruction of process and mobility of the actors, and their motivation; for the analysis and construction of NPDN, a matrix with 5 categories was used - context, ideas, institutions, interest, andpolicy instruments.
RESULTS: NPDN was formulated in a participatory manner involving several government sectors and organized society; the publication of the NPDN in 1999 revealed its political-institutional guidelines: stimulus to intersectoral actions, in view of universal access to food; assurance of the safety and quality of food and services rendered; monitoring of the diet and nutrition of the country; promotion of healthy diet practices and life styles; prevention and conrol of nutrition disorders and diseases related to diet and nutrition; development promotion of lines of investigation; human resource developing and training.
CONCLUSION: the process of formulation of the 'National Policy of Diet and Nutrition' is a solid learning way, supported by the search democratic perfecting, with an important citizen participation and discussion with civil society.
Key words: nutrition surveillance; food and nutrition assurance; obesity; health policy.
Introdução
A intervenção do poder público na realidade social é complexa. A formulação de políticas e/ou programas de governo é dependente da dinâmica de interação entre os grupos políticos no interior do Estado, e deste com a sociedade organizada, resultando daí a necessidade de considerar o peso político da ação governamental, sobretudo quando o que se pretende analisar é o processo de formulação de políticas públicas governamentais.
Com o objetivo de contribuir com a capacidade técnica para a análise e avaliação de políticas relacionadas às doenças crônicas não transmissíveis (DCNT) na região das Américas e Caribe, a Organização Mundial da Saúde (OMS) e a Organização Pan-Americana da Saúde (OPAS), em parceria com o Centro Colaborador em DCNT da Organização Mundial da Saúde no Canadá, implantaram em 2004 o Observatório de Políticas para Prevenção das DCNT. O Observatório de Politicas foi criado com o objetivo de sistematizar e analisar as informações relacionadas com as políticas que atuam nessa área, assim como difundir os resultados de suas análises.1,2
Visando propiciar maior reflexão sobre as politicas implantadas na região das Américas, foi realizado estudo multicêntrico focalizando os processos de formulação de políticas em DCNT em três países: Brasil, Costa Rica e Canadá.1 O tema eleito por esses países foi Alimentação e Nutrição, sendo definidos em comum o foco das pesquisas, instrumentos e metodologias empregadas. No Brasil, o estudo de caso foi coordenado pelo Ministério da Saúde e resultou na criação de um observatório de DCNT no Brasil que envolveu pesquisadores de diversas instituições governamentais e de ensino e pesquisa. O presente estudo destaca os principais achados do estudo de caso brasileiro, cujo relatório completo se encontra disponível em publicação prévia.1 O atual trabalho cumprirá a função da difusão da pesquisa para um público mais amplo, contribuindo para a compreensão do processo de formulação da PNAN.
O tema Alimentação e Nutrição entrou na agenda pública brasileira em vários momentos históricos, com suas peculiaridades políticas e econômicas. Vasconcelos3 enfatiza três períodos-chave da construção da agenda pública nessa área. O primeiro período (1930-1963) corresponde à emergência das políticas sociais relacionadas ao tema, com maior influencia dos estudos de Josué de Castro. O segundo momento (1964-1984) se refere às tentativas de incorporação das técnicas de planejamento nutricional e econômico, conduzidas pelo Instituto Nacional de Alimentação e Nutrição (INAN). E o terceiro período (1985-2003) é vinculado às lutas pela redemocratização do país.
Este trabalho aborda, mais especificamente, o último período. Descreve-se as ideias, valores e interesses presentes no processo de formulação da 'Política Nacional de Alimentação e Nutrição no Brasil (PNAN)', priorizando-se as análises do período entre 1998 e 2005.1
O objetivo deste trabalho é analisar o processo de formulação da 'Política Nacional de Alimentação e Nutrição (PNAN)' no campo das ações públicas voltadas à proteção e promoção da saúde, no período de 1998 a 2005.
Metodologia
Tratar-se de estudo de caso empregando-se a metodologia qualitativa para analisar o processo de formulação da 'Política Nacional de Alimentação e Nutrição'. Para análise foram usados fontes de dados primários e secundários. Para os dados primários, foram realizadas 16 entrevistas com atores-chave, com roteiro semi-estruturado e questões sobre contextos sociais, institucionais e políticos que viabilizaram a formulação da PNAN, assim como sua inserção na prevenção das DCNT e na agenda pública, problemas de saúde coletiva e alternativas de enfrentamento e solução dos problemas relativos a alimentação e nutrição, pelos atores governamentais e não governamentais.1
A escolha da PNAN como unidade de análise para estudo de caso brasileiro deveu-se aos seguintes motivos: a) diretriz do Governo Federal, de caráter multissetorial, de responsabilidade do Ministério da Saúde; b) coerência com objetivos nacionais relativos à prevenção de DCNT; e também, por se tratar de c) uma política de abrangência nacional, envolvendo um dos principais fatores de proteção das DCNT (alimentação).
Os intrumentos utilizados na pesquisa foram comuns aos três países do estudo multicêntrico (Canadá, Brasil, e Costa Rica),2 pré-testado e validado no Brasil.
Para as entrevistas, semi-estruturadas, foram usados os seguintes critérios de seleção dos entrevistados: a) indicação dos participantes do observatório de Políticas sobre DCNT; b) gestores públicos que participaram do processo de formulação da PNAN em vários setores da política pública; c) especialistas e acadêmicos da área de Alimentação e Nutrição; e d) especialistas com experiência comprovada na formulação de programas e ações de alimentação e nutrição.
As seguintes instituições tiveram informantes-chave: Coordenação-Geral da Política de Alimentação e Nutrição (CGPAN) do Ministério da Saúde (MS), Coordenação-Geral de Doenças e Agravos Não Transmissíveis (CGDANT) da Secretaria de Vigilância em Saúde (SVS)/MS, Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea)/Secretaria de Assuntos Estratégicos da Presidência da Republica, Fundação Instituto Oswaldo Cruz (Fiocruz)/MS, Ministério da Ciência e Tecnologia (MCT), Escola Nacional de Saúde Pública Sérgio Arouca (ENSP)/Fiocruz/MS, Universidade Federal de Pernambuco (UFPe), Universidade Federal da Bahia (UFBa) e Universidade de São Paulo (USP). Também foram entrevistados um técnico da Organização Mundial da Saúde (OMS/Genebra) e um informante da organização não governamental Associação Brasileira de Alimentação e Nutrição e Direitos Humanos (ABRANDH). Foi feita a transcrição das entrevistas gravadas, guardando a unidade das narrações e preservando o contexto no qual o discurso foi produzido. A análise das entrevistas foi realizada em etapas, segundo o método da 'Análise de conteúdo' desenvolvido por Bardin.4 Trata-se de um conjunto de técnicas de análise de comunicação visando obter o significado dos conteúdos enunciados pelos entrevistados, em suas entrelinhas, seus ditos e não ditos, ou seja, os significados manifestos e latentes, a partir de material qualitativo.5
O período de 1998 a 2005 foi adotado como marco temporal para a pesquisa, por ser o período de formulação da PNAN e da organização da área técnica competente no Ministério da Saúde.
Foram realizados os seguintes procedimentos de análise das entrevistas: a) transcrição completa das entrevistas gravadas, objetivando a pré-análise do conteúdo; e b) constituição do corpo discursivo, que objetiva resguardar o contexto e a unidade das entrevistas.
Para a análise da construção da PNAN, utilizou-se uma matriz com cinco categorias interligadas - contexto, ideias, instituições, interesses e instrumentos de política -6 com o objetivo de responder às seguintes perguntas: Como as ideias e valores de diversos atores do Estado, da sociedade e do mercado foram incorporados no texto da PNAN? Como as ideias foram construídas? Seriam construções sociais da realidade sobre os problemas e as soluções relativos à alimentação e nutrição no Brasil? Afinal, como se deu esse processo? Como os atores negociaram, concertaram, persuadiram, argumentaram no campo das ideias e valores?
Os dados secundários foram coletados por meio de legislação em vigor no Brasil que regulamenta ações e programas (Decretos Presidenciais, Portarias), entre outros documentos governamentais: planos, boletins, relatórios expedidos; publicações de organismos internacionais; artigos de jornais de circulação nacional; discursos, pareceres; atas de reuniões interministeriais e intraministeriais, grupos de trabalho e memórias de eventos realizados.
Para análise dos dados secundários, foram respondidos os seguintes tópicos: a) instituições governamentais e não governamentais que influenciaram; b) ideias e valores presentes; e c) interesses e conflitos inseridos no processo.
Considerações éticas
O estudo obteve aprovação da Comissão Nacional de Ética em Pesquisa (CONEP)/Ministério da Saúde, segundo o Parecer no 449/2006, por se tratar de pesquisa institucional financiada pelo Ministério da Saúde.
Resultados
A PNAN foi aprovada pela Portaria Ministerial no 710/1999, como parte integrante da Política Nacional de Saúde, inserindo-se no contexto da Segurança Alimentar e Nutricional (SAN).7
No âmbito institucional, a área gestora da Alimentação e Nutrição possuía elementos indispensáveis para a formulação da política: a) relevância epidemiológica, relativa à transição nutricional; b) conjuntura favorável de reorganização da área da Alimentação e Nutrição dentro do Ministério da Saúde (recursos humanos, técnicos, orçamento); e c) pressão política de atores do Estado e da sociedade civil para a redefinição das ações do governo em alimentação e nutrição.
Para o alcance de seus propósitos, a PNAN definiu as seguintes diretrizes político-institucionais:7 estímulo às ações intersetoriais, com vistas ao acesso universal aos alimentos; garantia da segurança e da qualidade dos alimentos e da prestação de serviços nesse contexto; monitoramento da situação alimentar e nutricional do país; promoção de práticas alimentares e estilos de vida saudáveis; prevenção e controle dos distúrbios nutricionais e de doenças associadas à alimentação e nutrição; promoção do desenvolvimento de linhas de investigação; e desenvolvimento e capacitação de recursos humanos.
A seguir, são descritos os três eixos analíticos do processo de formulação da PNAN.
Instituições governamentais e não governamentais que influenciaram o processo de formulação da PNAN
O processo de elaboração da PNAN iniciou-se no âmbito do Ministério da Saúde, locus do Estado, espaço concreto em que suas diretrizes políticas foram construídas, debatidas e negociadas entre gestores de políticas governamentais, atores da sociedade civil e do mercado.
O ponto de partida para a elaboração da política foi um documento com elementos de evidência científica que argumentava a necessidade de formulação da política, elaborado por um grupo de especialistas, ex-integrantes do INAN. Conforme Majone,8 a política pública é feita de palavras. Em forma escrita ou oral, a argumentação é essencial em todas as etapas de seu processo de formulação.8
Havia consenso no grupo de trabalho: era necessário desenhar uma política com contornos intersetoriais, embora coordenada pelo setor Saúde, explicitando a responsabilidade de cada executor da política, seja ou não integrante do Sistema Único de Saúde (SUS).
No processo intersetorial de discussão, participaram os Ministérios da Agricultura, da Educação, da Reforma Agrária, do Planejamento e Orçamento, das Relações Exteriores, da Ciência e Tecnologia, do Trabalho e Emprego. No SUS, especificamente, houve a participação dos gestores nacionais de saúde por meio do Conselho Nacional de Secretários de Saúde (Conass) e do Conselho Nacional de Secretários Municipais de Saúde (Conasems).
Contribuíram com evidências empíricas na formulação da PNAN os Centros Colaboradores do Ministério da Saúde na área de Nutrição, alocados em universidades [Universidade Federal do Paraná (UFPr), Universidade Federal de Goiás (UFG), Universidade Federal do Pará (UFPa), Universidade Federal da Bahia (UFBa), Instituto de Medicina Integral de Pernambuco (IMIP) e Escola Nacional de Saúde Pública Sérgio Arouca (ENSP)/Fiocruz), Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), Universidade Federal de Pelotas (UFPel) e Universidade Federal de Pernambuco (UFPe). O processo também contou com a participação da sociedade civil, com as entidades Solo Brasileiro de Segurança Alimentar (SBSA), Instituto Brasileiro e Análises Sociais e Econômicas (Ibase), Instituto Superior de Ensino e Pesquisa (Inesp), Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor (Idec), Pastoral da Criança, Conselho Federal de Nutricionistas (CFN), Associação Brasileira de Nutrição (Asbran) e Associação para Educação em Administração Empresarial (ABAI). Os parceiros internacionais, Organização Pan-Americana da Saúde - OPAS - e Organização Mundial da Saúde - OMS -, deram seu apoio físico e financeiro à realização das oficinas de trabalho. O processo, segundo um informante da presente pesquisa, contou com a "participação em vários momentos da discussão, seja em reuniões físicas ou por intermédio da internet na circulação de documentos".
Após a elaboração do documento básico, este foi submetido à consulta dos estados da Federação, por meio das Coordenações Estaduais de Alimentação e Nutrição e da sociedade civil organizada representada em Fórum de discussão da OPAS. Sobre os atores da sociedade civil, os informantes ressaltaram a importância do trabalho de consulta ao Fórum Brasileiro de Segurança Alimentar e Nutricional (FBSAN), com ampla representação da sociedade, inclusive remanescentes da 'Ação da Cidadania Contra a Fome e a Miséria' (1992-1994). Um dos entrevistados afirma que "o processo de formulação da PNAN foi bastante inclusivo, consultivo, ao mesmo tempo em que tentávamos reconhecer os programas, extinguindo umas ações e melhorando outras". Sem dúvida, essa ampliação da participação contribuiu para a sustentabilidade do processo.
Porém, ao mesmo tempo em que significava um avanço no campo da concepção, das ideias e valores, o grupo redator da PNAN não tinha clareza de como proceder para incorporar essa nova terminologia na agenda governamental, ou seja, a alimentação e nutrição como direito humano. Como ilustra um informante-chave, "como lidar com isso, um campo novo, inclusive ainda o é, o que isso significa conceitualmente em termos de discurso, mas o que significa em termos programáticos, tínhamos pouca ideia". Necessário se fez que os técnicos demandassem a área de Direitos Humanos do Ministério da Justiça, para releitura do texto sob a ótica do direito humano à alimentação.
Na esfera institucional, o Ministério da Saúde criou a Coordenação-Geral de Alimentação e Nutrição (CGPAN), que organizou uma área específica de Alimentação e Nutrição. Esta processou as implicações da compreensão do "direito humano à alimentação" a partir das seguintes indagações: O que significa esse novo discurso? Trata-se de mais uma retórica ou ele tem consistência programática?
A CGPAN decidiu pela escolha do tema da Anemia como primeiro exemplo para a materialização do conceito de direito humano à alimentação. Como fazer para que os programas de combate à anemia ferropriva pudessem contribuir para a realização desse direito? O Direito implicaria deveres dos vários atores. Estes deveriam ser pactuados com prazos definidos, indicadores estabelecidos, divulgação da informação e mobilização da sociedade, alocação de recursos humanos e ma teriais, elaboração de protocolo de resultados, entre outros aspectos. O pacto foi devidamente firmado em documento oficial.
Com a aprovação da PNAN, desencadeou-se um processo permanente de capacitação de recursos humanos envolvidos em atividades de planejamento, monitoramento e avaliação, de forma descentralizada como preconiza a Constituição Federal e o SUS; ou seja, "capacitamos todos os estados (da Federação) em um processo interessante, depois os estados fizeram os seus planos de capacitação dos municípios, treinaram todos os municípios".
O processo de capacitação baseou-se na reconstrução de dois conceitos: segurança alimentar nutricional e direito humano à alimentação. A metodologia de aprendizagem usada foi a construção dos conceitos à luz das experiências pessoais e o resultado foi que "começavam a perceber que eram capazes de fazer alguma coisa para modificar aquela realidade".
Ao longo das últimas décadas, as ações do Ministério da Saúde nesse campo mudaram de escopo, evoluíram da distribuição de leite para crianças e gestantes, realizada à época pelo extinto INAN, para o Programa Bolsa Alimentação em 2001 e, em 2004, o Bolsa Família. Este último, mais inclusivo e agregador de outras ações intersetoriais, foi e permanece sendo conduzido pelo Ministério do Desenvolvimento Social.9
O processo de elaboração da PNAN, na argumentação de um entrevistado, foi inclusivo, participativo e sólido, tanto que essa política permanece até os dias atuais como política oficial do Ministério da Saúde: "porque uma política, ela tem que ter uma vida mais longa".
Ideias e valores presentes no processo de formulação da PNAN
Como a extinção do INAN em 1997, em função de denúncias de corrupção, os técnicos e a maioria das funções do órgão extinto, passam para o Ministério da Saúde. Entretanto o grupo técnico de nutricionistas mantém uma série de apoios externos, por meio do Conselho Nacional de Alimentação e Nutrição, e forte apoio de Universidades, conseguindo se rearticular internamente no aparelho de estado, dentro do Ministério da Saúde, que criou a Coordenação-Geral de Alimentação e Nutrição, responsável pelo tema, mas também em outras estruturas do governo. Uma das maneiras de manter a articulação foi a formulação de uma política na área de Alimentação e Nutrição. Para tanto, foram articulados apoios externos que envolveram instituições médicas, o Conselho Federal de Nutricionistas e algumas organizações internacionais, como o Fundo das Nações Unidas para a Infância (Unicef) e a OMS, "os atores mais relevantes da implantação da Política Nacional de Alimentação e Nutrição" segundo a percepção de um informante-chave.
A construção da Política baseou-se em evidências científicas sobre o perfil alimentar e nutricional no Brasil à época. Por um lado, existiam alguns estudos multicêntricos, dados sobre a avaliação do programa do leite e questões sobre a necessidade de se criar o Sistema de Vigilância Alimentar e Nutricional (Sisvan). Como enfatizou um informante-chave, "era como uma colcha de retalhos, costurando diversas questões temáticas, conceituais, estratégicas que eram fundamentais para se ter o próprio escopo da política".
No campo das ideias e valores que influenciaram a formulação da PNAN, cita-se a extinção do Conselho de Segurança Alimentar, em 1994, e a criação do Programa 'Comunidade Solidária', propositado a articular programas e ações de governo com a sociedade civil. Ademais, o Governo Brasileiro apresentou um documento na reunião da Cúpula Mundial para a Alimentação, em Roma, 1996, levantando pontos sobre segurança alimentar e nutricional. O documento brasileiro defendia que os alimentos deveriam ter qualidade, respeitar nossa diversidade cultural, social e econômica, além de serem ambientalmente sustentáveis.
Esses elementos influenciaram a formulação da PNAN e a definição das suas diretrizes, a saber: a) estímulo às ações intersetoriais, com vistas ao acesso universal aos alimentos; b) garantia da segurança e da qualidade dos alimentos e da prestação de serviços neste contexto; c) monitoramento da situação alimentar e nutricional; d) promoção de práticas alimentares e estilos de vida saudáveis; e) prevenção e controle dos distúrbios nutricionais e das doenças associadas à alimentação e nutrição; f) promoção de linhas de investigação; e g) desenvolvimento e capacitação de recursos humanos.
Os atores destacaram que muitas das ações propostas pela PNAN dependeriam do engajamento de outras esferas de governo e não apenas instaladas no Ministério da Saúde. Exemplos de ações de natureza tipicamente intersetorial seriam a regulamentação da rotulagem nutricional dos alimentos, a restrição da publicidade de alimentos não saudáveis, a regulamentação da quantidade máxima de sal nos alimentos industrializados, a promoção da alimentação saudável nas escolas e nos ambientes de trabalho, o incentivo à produção de frutas e hortaliças, políticas fiscais diferenciadas para a taxação de alimentos mais e menos saudáveis, medidas de planejamento urbano para o estímulo da atividade física, campanhas de esclarecimento usando os meios de comunicação de massa, entre outras.
Segundo um entrevistado, houve um impasse na formulação da PNAN: pretendia-se uma política de segurança alimentar intersetorial que abarcasse toda a dimensão da segurança alimentar, desde a produção até a utilização biológica do alimento; ou uma política setorial (da Saúde), inserida em uma política mais ampla de segurança alimentar?
A decisão foi pelo recorte setorial da Saúde, não só para que compusesse a Política Nacional de Saúde como também porque a agenda da Saúde, no campo da segurança alimentar, todavia era frágil, inacabada.
O Conselho Nacional de Saúde foi um ator-chave na necessidade de argumentação em torno da ideia da intersetorialidade, de um lado, e da amplitude da ideia da segurança alimentar de outro. Desse debate e da força argumentativa dos especialistas, nasceu a primeira diretriz da PNAN: a necessidade de ações intersetoriais para garantia da alimentação humana como dever do Estado - portanto, política pública - e direito de cidadania.7
Na opinião de outro informante-chave, uma ideia não contemplada na PNAN e que precisa ser equacionada no Brasil é o relacionamento do setor público com o privado, pois o papel da indústria de alimentos é relevante no país. Não só no campo da Alimentação e Nutrição mas em outros setores de políticas públicas, verifica-se a dificuldade dos gestores públicos em lidar com a iniciativa privada, haja vista que "a tendência é recuar e não querer muito diálogo porque se tem medo de conflito de interesses, ainda mais em um momento de crise como a que estamos vivendo. Isso é uma coisa que a política não aborda e temos que dar conta disso em algum momento".
Entre as diretrizes prioritárias da PNAN, a prevenção e controle dos distúrbios nutricionais e das doenças associadas à alimentação e nutrição, inicialmente, apresentavam destaque para a desnutrição; posteriormente, esse componente foi ampliado, a partir da publicação dos resultados da Pesquisa de Orçamento Familiar (POF 2003), que demonstraram que o Brasil possuía 40,0% da população adulta com excesso de peso, reforçando-se, a partir daí, a importância da 'Estratégia Global em Alimentação Saudável, Atividade Física e Saúde'.10,11
No plano das ideias, os entrevistados enfatizaram que a PNAN deveria ser aprimorada no que concerne à prevenção das DCNT, "porque a obesidade está ganhando, cada vez mais força".
Interesses e conflitos presentes no processo de formulação da PNAN
Os formuladores de políticas recebem informações individuais, expressão das opiniões pessoais (ativistas), ou a opinião coletiva, comum de grupos de indivíduos.12 Por exemplo, grupos de interesse representam associações profissionais (médicos, enfermeiros, professores), cidadãos ou setores industriais. Juntamente com agências governamentais, essas várias partes interessadas formam comunidades de interesse próximas a campos específicos de políticas públicas (da Saúde, Educação, Agricultura). Dentro dessas comunidades, pequenos agrupamentos de partes interessadas interagem para tratar de questões específicas dessas políticas, como por exemplo, a publicação de informações nutritivas em rótulos de alimentos ou atividades físicas nas escolas.12
Discussão
Quando se fala de política pública, remete-se não só à perspectiva do Estado em ação, seus programas e atividades com objetivos explícitos, traduzidos em dispositivos político-administrativos coordenados,13 bem como às ações ou omissões do mesmo Estado em relação às demandas da sociedade.14-16
Para se entender os processos de formulação de políticas públicas, devemos compreender as características dos atores, suas instituições, os papéis que desempenham, as autoridades que representam, como se relacionam e controlam uns aos outros17 e, sobretudo, que interesses, ideias e instituições defendem. Sabemos que os atores envolvidos e interessados no processo de formulação de uma determinada política pública não coincidem plenamente sobre os problemas, as alternativas de solução e, especialmente, a solução a ser escolhida.
Aqui, interessa analisar os processos cognitivos de formulação de políticas públicas - como paradigmas, ideias e referenciais. Segundo a concepção de Yves Surel e Pierre Muller,13 trata-se de uma abordagem que estabelece a importância das dinâmicas de construção social da realidade na determinação de quadros e de práticas socialmente legítimas, em uma dada conjuntura.13
Nesse contexto, ideias representam informações que os formuladores de políticas utilizam para reconhecer um problema de Saúde Pública e decidir a melhor maneira de agir. Os valores pessoais constituem importante fonte de informações na formulação de políticas públicas. Na área da Promoção da Saúde, pesquisas recentes, no Canadá e nos Estados Unidos da América, sugerem que as convicções pessoais dos legisladores sobre o papel do governo na promoção de comportamentos saudáveis são um fator significativo de influência em seu apoio à legislação de controle do tabaco, em particular, e a políticas de promoção da saúde em geral.18
As ideias e valores perpassam a elaboração de políticas públicas. As políticas públicas definem não só o discurso governamental mas, principalmente, sua própria ação. A formulação da 'Política Nacional de Alimentação e Nutrição' processou-se de forma bastante participativa. Não por acaso, os profissionais que trabalhavam na área tomaram a política como marco regulatório - nos planos político, técnico e ético - e estratégia de atuação na operacionalização de suas diretrizes.19
A realização de entrevistas com atores governamentais e não governamentais envolvidos nas etapas de formação da agenda pública e na formulação das ações/programas permitiu a reconstituição do processo, bem como as motivações e interesses visando à alimentação e nutrição no Brasil.
Foram destacadas algumas ações importantes na articulação com o setor privado/indústrias de alimentos, como a implementação de medidas relativas ao enriquecimento e/ou correção dos alimentos - a obrigatoriedade de adicionar iodo no sal para consumo da população, por exemplo.
Ressalta-se que a PNAN, "avançada e moderna" para um dos atores-chave, foi assumida como política de governo, inclusive na busca da operacionalização de suas diretrizes, caso dos programas 'Bolsa Alimentação' (2001-2003) e 'Bolsa Família' (2004 até os dias atuais).
Um mérito da PNAN foi a implantação do Sisvan - resultado de uma de suas diretrizes - com o propósito de reunir informações que subsidiem políticas públicas para a melhoria das condições nutricionais da população e a manutenção de um eixo de convergência setorial importante na Saúde Pública.
À época da formulação da PNAN, os marcos regulatórios sobre produção, comercialização, estoque, rotulagem de alimentos, subsídios à produção de alimentos e controle da propaganda nos meios de comunicação eram incipientes. Com o advento da globalização, os brasileiros, cada vez mais, aderiam à dieta ocidentalizada, produtora de distúrbios nutricionais - por exemplo, o excesso de peso. Um avanço significativo foi a colocação do tema na agenda, no sentido da formulação de uma política pública, no campo da alimentação e nutrição, com um marco regulatório (Portaria Ministerial).7
No processo de implementação da PNAN - que não constituiu o objeto central da atual investigação -, foram tomadas importantes medidas por outros órgãos do Ministério da Saúde, como a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), destacando-se a rotulagem de alimentos.20
Em 1998, quando da aprovação da PNAN, a preocupação com a segurança alimentar e as ações de combate à desnutrição eram muito presentes no Estado Brasileiro. Estudos, como a Pesquisa Nacional de Demografia e Saúde de 1996, em 2003, a Pesquisa de Orçamento Familiar (POF) de 200210 e a Pesquisa de Fatores de Risco em Doenças Crônicas em 2002-2003 (da Secretaria de Vigilância em Saúde e do Instituto Nacional do Câncer)21 mostraram o crescimento do sobrepeso e da obesidade no país e a necessidade de se investir em prevenção de DCNT,22 alterando o marco técnico-científico inicial do processo de constituição e aprovação da Política Nacional de Alimentação e Nutrição - PNAN - no Brasil.
A experiência acumulada pelo Ministério da Saúde na construção da PNAN foi importante, durante o processo de discussão internacional com a OMS, Organização das Nações Unidas para Alimentação e Agricultura (FAO) e Unicef sobre a proposição e aprovação da 'Estratégia Global em Alimentação Saudável, Atividade Física e Saúde'.11
A alimentação e nutrição e a vigilância de DCNT devem trabalhar de forma integrada na implantação da Estratégia Global e, por fim, da Promoção da Saúde enquanto prioridade do Ministério da Saúde. Ao contrário de alguns pensamentos recorrentes, a alimentação e nutrição sempre fez parte da agenda pública do país, embora variasse o nível de prioridade ou a capacidade dos governos darem conta de toda a complexidade inerente à questão.
O processo de formulação da PNAN constituiu-se em um sólido aprendizado, amparado pela busca do aprimoramento democrático, importante participação cidadã e ampla discussão com a sociedade civil. Foi também o desencadeador da formulação de outras políticas públicas no âmbito do Ministério da Saúde.
Referências
1. Ministério da Saúde. Secretaria de Vigilância em Saúde. Observatório de doenças crônicas não transmissíveis: o caso do Brasil: Política de Alimentação e Nutrição (PNAN), 1999- 2005. Brasília: Ministério da Saúde; 2006 [acessado em 20 fev. 2009]. Disponível em http://portal.saude.gov.br/portal/arquivos/pdf/brazil_case_study_por_v5.pdf
2. Vogel E, Burt S, Church J. Stakeholder Convergence on Nutrition Policy: A Cross-Case Comparison of Case Studies in Costa Rica, Brazil and Canada. Faculty of Health Sciences, University of Ontario Institute of Technology. Department of Political Science, University of Waterloo. Centre for Health Promotion Studies, University of Alberta. Canadá; 2007 [acessado em 8 Jan. 2008]. Disponível em: http://www.cpsa-acsp.ca/papers-2007/Burt.pdf.
3. Vasconcelos FAG. Combate a fome: uma analise histórica de Vargas e Lula. Revista de Nutrição. 2005; 18(4):439-457.
4. Bardin L. Análise de conteúdo. Lisboa: Edições 70; 1979.
5. Minayo MCS. O desafio do conhecimento: pesquisa qualitativa em saúde. São Paulo: Hucitec; Rio de Janeiro: Abrasco; 1996.
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Endereço para correspondência:
Ministério da Saúde, Secretaria de Vigilância em Saúde,
Coordenação-Geral de Doenças e Agravos Não Transmissíveis,
SAF SUL, Trecho 2, Lotes 5/6, Bloco F, Torre 1,
Edifício Premium, Térreo, Sala 14,
Brasília-DF, Brasil.
CEP:70070-600
E-mail:cgdant@saude.gov.br
Recebido em 19/01/2011
Aprovado em 16/12/2011