SciELO - Scientific Electronic Library Online

 
vol.20 número4Características clínico-epidemiológicas de pacientes idosos com aids em hospital de referência, Teresina-PI, 1996 a 2009Coinfecção Leishmania-HIV no Brasil: aspectos epidemiológicos, clínicos e laboratoriais índice de autoresíndice de assuntospesquisa de artigos
Home Pagelista alfabética de periódicos  

Serviços Personalizados

Journal

Artigo

Indicadores

  • Não possue artigos citadosCitado por SciELO

Links relacionados

  • Não possue artigos similaresSimilares em SciELO

Compartilhar


Epidemiologia e Serviços de Saúde

versão impressa ISSN 1679-4974versão On-line ISSN 2237-9622

Epidemiol. Serv. Saúde v.20 n.4 Brasília dez. 2011

http://dx.doi.org/10.5123/S1679-49742011000400010 

ARTIGO ORIGINAL

 

Situação da Raiva no Brasil, 2000 a 2009

 

Rabies situation in Brazil, 2000 to 2009

 

 

Marcelo Yoshito Wada; Silene Manrique Rocha; Ana Nilce Silveira Maia-Elkhoury

Departamento de Vigilância Epidemiológica, Secretaria de Vigilância em Saúde, Ministério da Saúde, Brasília-DF, Brasil

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

OBJETIVO: descrever a situação epidemiológica da raiva, bem como, as atividades do Programa Nacional de Profilaxia da Raiva (PNPR) realizadas no Brasil, no período de 2000 a 2009.
METODOLOGIA: foi realizada uma análise descritiva dos casos de raiva humana e atendimento antirrábico humano com dados do Sistema de Informação de Agravos de Notificação (Sinan), da ficha de vigilância epidemiológica n° 7 e de planilhas padronizadas utilizadas pelo PNPR.
RESULTADOS: observou-se redução dos casos humanos e caninos e uma mudança no perfil de ocorrência e transmissão, nos últimos cinco anos, com 78,0% dos casos humanos transmitidos por morcegos, além do aumento na detecção de casos em espécies silvestres.
CONCLUSÃO: a situação atual da raiva no país impõe a necessidade de aprimoramento e manutenção das ações de vigilância voltadas para o ciclo urbano, implementação no ciclo silvestre e reforça a importância da profilaxia humana, visando prevenir ocorrência de casos humanos.

Palavras-chave: raiva; epidemiologia; vigilância em saúde pública.


SUMMARY

OBJECTIVE: to describe the epidemiological situation of rabies and the activities of the National Program for Prevention of Human Rabies in Brazil, 2000 to 2009.
METHODOLOGY: it was realized a descriptive analysis of the human rabies and prophylaxis based on reports of the National System of Reporting (Sinan), Surveillance Epidemiological Report-7 and standard sheets.
RESULTS: it was observed reduction of human cases and rabid dogs and changes in the profile, of occurence and transmission in last five years, 78.0% of the human cases were transmitted by bats, and an increase of reports of rabies in wild animals.
CONCLUSION: the actual rabies situation in this country imposes the necessity to maintain the actions in surveillance directed to urban cycle, implementation in sylvatic cycle reinforce the importance of human rabies prophylaxis aiming to prevent human rabies cases.

Key words: rabies; epidemiology; surveillance in public health.


 

 

Introdução

A raiva é uma doença infecciosa, de etiologia viral e caráter zoonótico, que causa encefalite aguda em mamíferos. De alta transcendência e uma letalidade de aproximadamente 100,0%, ainda é considerada um grave problema de Saúde Pública.1

Estima-se que ocorram cerca de 55.000 óbitos de raiva humana ao ano, a maioria transmitida por cães, principalmente na África e Ásia.2 Segundo Coleman,3 a carga de doença da raiva é de 1.160 milhões de DALY (Disability Adjusted Life Years) por 1.000 habitantes, o que representa os anos de vida perdidos por incapacidade em pessoas acometidas e quantifica seu impacto em relação a outras doenças. Ao contrário de outras zoonoses, a raiva humana é totalmente prevenível pelo controle do reservatório animal, o que indica que tal quantidade de DALY poderia, teoricamente, ser evitada mediante intervenções veterinárias.2-4

Devido ao elevado número de casos de raiva humana transmitida principalmente por cães nas décadas de 1950 e 1960 no Brasil, municípios e estados desenvolveram atividades e regulamentações direcionadas ao controle de zoonoses; em particular, da raiva. Um exemplo foi a Lei Orgânica dos Municípios publicada em 1969, no estado de São Paulo, que estabelecia a identificação e o controle dos fatores determinantes e condicionantes da saúde individual e coletiva mediante ações de vigilância sanitária e epidemiológica. Para o controle da raiva, eram necessárias atividades de vacinação animal, captura e controle de animais errantes e bloqueios de focos em áreas com circulação de vírus.5

Em 1973, foi instituído no país o Programa Nacional de Profilaxia da Raiva Humana (PNPR) com o objetivo de reduzir o número de casos humanos mediante o controle dessa zoonose em animais domésticos e a realização de profilaxia em pessoas mordidas ou que tiveram possível contato com animais com raiva.5,6 As ações do PNPR foram se expandindo gradativamente até sua implantação ser concluída, em todo território nacional, em 1977.6 Essas ações foram fortalecidas quando, em 1983, a Organização Pan-Americana da Saúde (OPAS) desenvolveu o 'Plano de Ação para Eliminação da Raiva Urbana das Principais Cidades da América Latina', resultando no compromisso internacional da eliminação da raiva humana transmitida por cães nas Américas até 2012.7-10

O Sistema de Informação de Agravos de Notificação (Sinan) foi desenvolvido no início de 1990, como objetivo de coletar e processar dados sobre agravos de notificação. Embora sua implantação tenha se iniciado em 1992 e ampliado gradativamente, para todas as unidades federadas, seu uso foi regulamentado somente em 1998, mediante a publicação de Portaria ministerial obrigando a alimentação regular da base de dados nacional de municípios, estados e Distrito Federal.1,11,12 Segundo os critérios estabelecidos para notificação dos agravos, todo caso suspeito ou confirmado de raiva humana é de notificação compulsória e imediata.1,12 Apesar de não contemplado o atendimento antirrábico humano na lista de notificação compulsória no período estudado, recomenda-se sua notificação, independentemente da indicação do uso da vacina ou soro antirrábico.1

Com a publicação da Portaria SVS n° 5, de 21 de fevereiro de 2006, as epizootias e/ou mortes de animais passaram a ser reconhecidas como eventos-sentinela para a ocorrência de doenças em humanos e entraram para a lista de notificação compulsória e imediata,1 o que representou um importante passo na vigilância e controle das zoonoses.

Alguns avanços foram obtidos no controle dessa doença, a exemplo da redução dos casos humanos e caninos devido, principalmente, às atividades direcionadas ao controle da raiva em cães. No Brasil, entretanto, ainda existem áreas endêmicas para o ciclo urbano, o qual envolve reservatórios domésticos - como cães e gatos. Por sua vez, tem se observado a emergência do ciclo silvestre e seus reservatórios selvagens, como morcegos, cachorros do mato, raposas e primatas não humanos.1,13-15

Considerando-se a relevância do tema para a Saúde Pública, o presente estudo tem por objetivo descrever a situação e a mudança no perfil epidemiológico da raiva, bem como as atividades do Programa Nacional de Profilaxia da Raiva Humana - PNPR - no Brasil, no período de 2000 a 2009.

 

Metodologia

Realizou-se um estudo descritivo dos casos de raiva humana e atendimento antirrábico humano notificados no Sinan. Para os registros dos casos de raiva animal e coberturas vacinais realizadas pelos estados e Distrito Federal, foram utilizadas as Fichas de Vigilância Epidemiológica 7 (VE-7) e planilhas padronizadas encaminhadas à Coordenação do PNPR no período de 2000 a 2009.

Para os casos de raiva humana foram avaliadas as variáveis demográficas (sexo e idade) e epidemiológicas (região e unidade federada de infecção, zona de ocorrência, espécie transmissora e ano) e foi calculada a tendência linear dos mesmos por meio do Excel. O atendimento antirrábico humano foi avaliado no período proposto; porém, para o perfil dos casos atendidos, que contemplou variáveis demográficas (sexo; e idade) e epidemiológicas (região e unidade federada de atendimento; esquema profilático; espécie transmissora; e ano), foi considerado o período de 2007 a 2009, uma vez que houve mudança no sistema de informação e a partir de 2007 as variáveis apresentaram melhor completitude. Para os casos de raiva animal, foram analisadas as variáveis epidemiológicas: região; unidade federada e município de infecção; cobertura vacinal; espécie animal; e ano.

Com o propósito de caracterizar os diferentes circuitos de transmissão da raiva no país, eles foram didaticamente classificados em quatro ciclos epidemiológicos: a) ciclo aéreo, que envolve os morcegos; b) ciclo rural, representado pelos animais de produção; c) ciclo urbano, relacionado aos cães e gatos; e d) ciclo silvestre terrestre, que engloba os saguis, cachorros-do-mato, raposas e guaxinins, entre outros animais selvagens.1

O índice de ocorrência de raiva canina foi calculado pela razão do número de cães positivos em cada 100.000 cães; e as coberturas vacinais caninas, pela razão do número de cães vacinados sobre a população canina. Essas informações foram obtidas a partir de duas fontes: censos animais realizados pelos municípios e unidades federadas; e estimativa da população canina entre 10,0 e 15,0% da população humana informada pela Fundação Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE).14

As análises foram realizadas utilizando os softwares Epi Info 6,04d, Excel e TabWin32.

 

Resultados

Raiva humana

No período de 2000 a 2009, foi registrada uma média de 16 casos de raiva humana ao ano no Brasil, demonstrando uma tendência de redução linear (y=2,406x+29,53; R2=0,268) (Figura 1). No total de 163 casos, predominaram homens (64,0%; 105/163) na faixa etária de 2 a 29 anos (78,0%; 128/163), com média de idade de 20 anos e mediana de 13,5 anos (Tabela 1).

 

 

 

 

Em relação à região político-administrativa, 52,0% (85/163) dos casos humanos ocorreram no Nordeste, 38,0% (61/163) no Norte, 6,0% (10/163) no Sudeste e 4,0% (7/163) no Centro-oeste do país. A região Sul não apresenta raiva humana desde 1987: o último caso, transmitido por morcego, tem por referência geográfica o Estado do Paraná.6 Em relação à ocorrência em capitais e grandes cidades, somente Salvador, a capital da Bahia, apresentou casos de raiva nesse período.

Não obstante a tendência de redução linear da raiva humana no Brasil, observa-se que as regiões Norte e Nordeste referiram um aumento de casos em 2004 e 2005, enquanto as regiões Sudeste e Centro-oeste apresentaram casos esporádicos ao longo dos anos avaliados (Figura 1).

Observa-se que 69,0% (112/163) dos casos humanos ocorreram em zona rural. Quando esses casos foram estratificados por espécie transmissora, verificou-se que, dos casos transmitidos por cães, 56,0% (43/77) foram em zona urbana; e quanto aos transmitidos por morcegos, 97,0% (72/74) foram em zona rural (Tabela 2).

 

 

As espécies transmissoras dos casos humanos foram, em ordem decrescente de frequência: cães, com 47,0% (77/163); morcego, 45,0% (74/163); primata não humano, 3,0% (5/163); felino 2,0% (3/163); herbívoro, 2,0% (3/163); e de origem ignorada, 1,0% (1/163) (Tabela 2).

A média dos casos de raiva humana transmitidos por morcegos no período avaliado foi de 7/ano, no entanto observaram-se dois picos nos anos de 2004 e 2005, com um total de 62 casos notificados nos estados do Pará (38) e Maranhão (24), decorrentes de surtos ocasionados por morcegos hematófagos. Com isso, o número de casos humanos transmitidos por morcegos ultrapassou os transmitidos por cães.

Ressalta-se, ainda, que no período avaliado, foram confirmados três casos de raiva humana transmitida por herbívoros; nas três situações, a transmissão ocorreu pela manipulação direta da saliva, sem agressão por essas espécies.

Atendimento antirrábico humano

Para o período de 2000 a 2009, foram notificados 4.177.409 atendimentos antirrábicos humanos no país: 234.093 em 2000, aumentando gradualmente o número de notificações até atingir 447.908 atendimentos em 2009.

De 2007 a 2009, houve 1.444.130 notificações de atendimento antirrábico humano, com uma média anual de 481.377, das quais 55,0% (795.363/1.444.130) ocorreram em homens e 57,0% (819.571/1.444.130) na faixa etária de 0 a 29 anos. A região Sudeste apresentou 39,0% (559.554/1.444.130) dos atendimentos, seguida do Nordeste com 27,0% (391.644/1.444.130), Sul com 16,0% (232.422/1.444.130), Norte com 11,0% (157.984/1.444.130) e Centro-oeste com 7,0% (102.526/1.444.130).

Os esquemas de profilaxia no Brasil são recomendados de acordo com as normas técnicas preconizadas pelo Ministério da Saúde, variando da dispensa de profilaxia à indicação de vacina antirrábica com ou sem soro heterólogo ou imunoglobulina.1 Até 2002, a vacina disponibilizada foi a Fuenzalida & Palacios, produzida em cérebro de camundongo lactente, substituída, a partir de 2003, pela vacina de cultivo de células.

Quanto à orientação e conduta de esquema de profilaxia da raiva humana, 3,5% dos casos (50.695/1.444.130) apresentaram dispensa do esquema profilático, 5,4% (78.667/1.444.130) tiveram informação ignorada, 19,7% (285.551/1.444.130) mantiveram o animal (cão ou gato) em observação, 4,0% (58.582/1.444.130) realizaram pré-exposição, 67,0% (966.215/1.444.130) pós-exposição e 0,4% (4.420/1.144.130) re-exposição.

As espécies transmissoras relatadas durante os atendimentos foram: cão, 83,0% (1.201.455/1.444.130); gato doméstico, 11,0% (155.844/1.444.130); morcego, 0,7% (10.665/1.444.130); primata não humano e canídeo silvestre, 1,0% (13.077/1.444.130); herbívoro, 0,4% (5.646/1.444.130); e outras espécies, 3,0% (41.927/1.444.130). Destaca-se que em 0,9% dos casos notificados (12.997/1.444.130), a informação da espécie foi ignorada.

Raiva animal

Ciclo urbano

Em 2000, foram registrados 921 casos de raiva canina (taxa de 4,57/100.000 cães) em 21 unidades federadas, sendo 45% (415/921) no Centro-oeste, 32,0% (299/921) no Nordeste, 19,0% (174/921) no Norte e 4,0% (33/921) no Sudeste. Em 2009, foram 26 casos (0,11/100.000 cães), distribuídos em 23 municípios pertencentes a oito unidades federadas, sendo 81,0% (21/26) no Nordeste, 12,0% (03/26) no Norte, 4,0% (01/26) no Centro-oeste e 4,0% (01/26) no Sul (Figuras 2 e 3). A redução do número de casos de raiva canina, observada nessa década, acompanha o decréscimo de raiva em humanos, pois o cão é o principal reservatório e responsável por manter a circulação do vírus no ciclo urbano.

 

 

 

 

Em 2006, foi registrada a introdução da variante viral 1 (canina) no Brasil, no município de Corumbá, Mato Grosso do Sul. Essa variante nunca antes fora detectada em território brasileiro. Posteriormente, em 2009, entre os 26 casos caninos notificados naquele ano, a mesma variante foi identificada em um cão no município de Ladário-MS; foram também detectados três casos com variante 3 (em Umuarama-PR, Lauro de Freitas-BA e Dias d'Ávila-BA); e um caso em Ribeira do Pombal-BA, de variante não compatível com os perfis pré-estabelecidos no painel de anticorpos monoclonais, comumente encontrada em animais silvestres.

Para as ações de vigilância e controle da raiva no ciclo urbano, intensificaram-se as campanhas de vacinação antirrábica animal, realizadas anualmente, no segundo semestre, exceto nos estados do Rio Grande do Sul e Santa Catarina. O Paraná realizou a campanha nacional apenas em municípios fronteiriços com o Paraguai. No estado de Santa Catarina, especialmente em 2006, a campanha foi realizada em dois municípios devido à ocorrência de casos positivos em cães e gatos com a variante 3.

No período de 2003 a 2009, foi adotada a estratégia de realizar uma segunda campanha no primeiro semestre do ano, denominada 'campanha de intensificação', recomendada apenas para os municípios considerados de risco, ou seja, aqueles que apresentaram cobertura inferior a 80,0% na campanha nacional, que tiveram casos de raiva canina ou humana e, ainda, para os municípios fronteiriços com outros países.

A vacina antirrábica canina adquirida pelo Ministério da Saúde e distribuída às unidades federadas até 2009 foi aquela produzida em cérebros de camundongos lactentes (Fuenzalida & Palacios). Em 2008, no estado do Ceará e no município de Corumbá-MS, iniciou-se sua substituição pela vacina de cultivo celular, um imunobiológico mais potente e seguro que o utilizado anteriormente.1 No ano seguinte, houve uma expansão gradativa da distribuição dessa nova vacina para as áreas com circulação viral da variante 2, que abrangem os estados da região Nordeste, logo ampliada para todo o território brasileiro em 2010.

As coberturas de vacinação antirrábica canina nas campanhas nacionais apresentaram uma média de 86,0% (81,0% - 94,0%), com vacinação anual média de 21.373.620 animais (18.021.321 - 23.088.229), dos quais 82,0% eram cães. As campanhas de intensificação tiveram cobertura média de 75,0%, variando de 70,0 a 81,0% (Figura 2).

Ciclo silvestre terrestre

No ciclo silvestre terrestre, a raiva está relacionada a dois principais reservatórios: o cachorro-do-mato (Cerdocyonthous) e os saguis (Callythrixjacchus). A partir de 2002, as atividades de monitoramento de animais encontrados mortos, envio de material para diagnóstico laboratorial e educação em saúde foram intensificadas e, em 2003, o Ministério da Saúde realizou, em parceria com a Secretaria da Saúde do Estado do Ceará, o 'I Curso de Captura de Mamíferos Silvestres Terrestres e Coleta de Material para a Vigilância da Raiva', que significou a implantação a vigilância passiva conforme a experiência dos Centers for Disease Control and Prevention, dos Estados Unidos da América (CDC/EUA). No período de 2002 a 2009, foram notificados 329 casos de raiva: 88,0% em canídeos silvestres (289/329), 9,0% em primatas e saguis (29/329), 3,0% em 'mão-pelada' (9/329); um caso em gato-do-mato; e um em cotia (Figura 3). Todos esses casos ocorreram na região Nordeste.

Ciclo aéreo

De 2002 a 2009, foram registrados casos de raiva em 1.163 morcegos: 80,0% deles não hematófagos (933/1.163); e 20,0% hematófagos (230/1.163) (Figura 3).

No mesmo período, o maior número de notificações de raiva ocorreu para os animais de produção, com 9.277 positivos para raiva: 88,0% bovinos (8.173/9.277); 10,0% equinos (918/9.277); e 2,0% (186/9.277), outros animais de produção (Figura 3).

 

Discussão

O número reduzido de raiva humana no Brasil acompanha a situação epidemiológica das Américas e reforça a tendência de diminuição de casos neste continente.7,16

Não foram observadas alterações no perfil dos casos de raiva humana no Brasil durante a década estudada, ou seja, o gênero masculino foi o mais prevalente e as crianças as mais acometidas, como descrito em estudos anteriores.6

Os casos se concentraram nas regiões Nordeste e Norte do país, possivelmente pelas dificuldades em realizar as atividades estabelecidas pelo PNPR, o que se reflete em coberturas vacinais muito baixas e manutenção de grande contingente de suscetíveis; além disso, a ocorrência de surtos na região da bacia Amazônica em 2004 e 2005, ocasionados por morcegos hematófagos, aumentou a ocorrência da doença acima dos níveis habituais naquela região. A predominância da transmissão da raiva por morcegos hematófagos na região da bacia Amazônica resultou na equivalência do número de casos humanos transmitidos por cães e morcegos, o que difere do perfil de outras décadas, quando a maior proporção de casos de raiva humana era transmitida por cães.6,17,18 Quando analisados os casos dos últimos cinco anos, é evidente a mudança nesse perfil, pois 78,0% (46/59) foram transmitidos por morcegos.

Os três casos de raiva humana transmitidos por herbívoros, relatados neste estudo, demonstram a importância ocupacional da doença e a necessidade do esquema de pré-exposição em grupos considerados de maior risco, permanentemente expostos aos animais ou ao vírus. Assim recomenda do Ministério da Saúde.1

Os dois casos de cura registrados no mundo - um deles no Brasil - e a elaboração do protocolo para tratamento de raiva humana representam um avanço na ciência. Porém, a profilaxia da raiva humana é a melhor maneira de evitar uma doença cuja letalidade está próxima dos 100,0%.19,20

No que se refere ao atendimento antirrábico humano, observa-se um incremento de 48,0% quando comparado se compara 2009 ao ano 2000. No período de análise do perfil dos casos atendidos, o Brasil apresentou uma média de 481.377 atendimentos ao ano, número que demonstra um aumento no número de pessoas que foram agredidas e buscaram assistência médica: as médias de atendimento encontradas são superiores às verificadas em estudos realizados no Brasil da década de 1980 e nos EUA.6,21 Como ocorre em outros países, cães e gatos são as principais espécies transmissoras, responsáveis por 94,0% dos atendimentos.22

A mudança da vacina humana representou um grande avanço para a profilaxia da raiva humana: a vacina de cultivo de células confere resposta imunológica mais precoce e mais duradoura, além de causar menos eventos adversos que a Fuenzalida & Palácios.23 Essa mudança pode ter contribuído para o incremento de 49,0% no percentual de atendimento em que houve indicação de vacina, quando comparado com outros estudos.6 A redução dos casos humanos no Brasil está diretamente relacionada com a diminuição dos casos de raiva canina, acompanhando o que vem acontecendo em outros países das Américas.7 Em 1980, a taxa de raiva canina era de 38,38 por 100.000 cães, passando para 5,45/100.000 cães em 1990.6 Em 2000, essa taxa foi reduzida para 4,57/100.000 cães, e em 2009, para 0,11/100.000 cães, representando uma redução de 97,0% no período de estudo.

A distribuição dos casos de raiva canina no Brasil demonstra diferentes situações epidemiológicas. Verificaram-se alterações no perfil de distribuição da raiva canina: no início dessa década, a região Centro-oeste contribuía com 45,0% e atualmente, a região Nordeste concentra 81,0% dos casos.

Destaca-se, ademais, a importância e necessidade da realização de trabalhos integrados com outros países para a vigilância em áreas de fronteiras: por exemplo, entre a região de Corumbá-MS e a Província de German Busch, sua fronteira com a Bolívia, dada a persistência do foco de raiva canina e a comprovação da introdução no município sul-matogrossense da variante 1, não detectada no Brasil até então.

As campanhas de vacinação antirrábica canina foram as principais medidas adotadas para o controle da raiva no ciclo urbano, sendo preconizada pelo Ministério da Saúde a cobertura vacinal canina de no mínimo 80,0%.1 Apesar de essa cobertura apresentar uma média de 86,0%, ela não foi homogênea entre os municípios. A estratégia da campanha de intensificação nos municípios considerados de risco, iniciada em 2003, contribuiu para a célere redução dos casos de raiva canina. Essa campanha de intensificação permitiu a manutenção de níveis protetores na população canina exposta, evitando novas infecções: passou-se de 635 casos de raiva canina em 2003 para 274 em 2009.13

Considerando-se a atual situação do perfil da raiva canina e visando sua eliminação no ciclo urbano, além da vacinação animal e monitoramento de circulação viral, outras atividades devem ser implementadas: bloqueio de foco em até 72 horas; vacinação dos animais na rotina; revisão periódica da estimativa populacional animal; captura e eutanásia de animais não passíveis de vacinação.1,6,24

A estimativa da populacional animal é de fundamental importância no estabelecimento de metas para as ações implantadas com vistas ao controle da raiva canina, tais como cobertura vacinal e monitoramento de circulação viral. Observou-se, no período avaliado, um acréscimo de 21,0% da população animal, fato indicador da importância da avaliação sistemática das estimativas populacionais e da implementação de políticas públicas frente a uma situação que extrapola as ações de controle de zoonoses e, consequentemente, o âmbito da Saúde.

Os ciclos silvestres estão em expansão no país, com maior detecção de casos. Não obstante o maior registro de casos de raiva em canídeos do que em primatas não humanos, há mais casos de raiva humana envolvendo saguis (5 casos) do que cachorros-do-mato (sem casos registrados), possivelmente decorrentes da maior busca de atendimento em razão da gravidade do ferimento causado pela agressão do Cerdocyonthous.25,26

A partir da primeira capacitação em animais silvestres, realizada em 2003, a vigilância dessas espécies vem sendo implementada na forma de 'vigilância passiva em estradas', com o envio de animais encontrados mortos ou atropelados para diagnóstico laboratorial cujo objetivo é determinar as áreas de risco e orientar a população em como se prevenir da infecção.27 O número crescente de animais positivos para raiva nessas espécies reforça a mudança do perfil da doença no país.

Em relação aos morcegos não hematófagos, a vigilância passiva, que preconiza o envio dos morcegos encontrados em situação não usual para realização de diagnóstico laboratorial da raiva, tem sido útil na detecção de casos da doença, principalmente em áreas urbanas.13 Municípios que enviam amostras regularmente têm encontrado altos índices de positividade, demonstrando a importância dessa vigilância como sentinela para adoção de medidas de controle e prevenção de casos humanos.28

Apesar do número reduzido de morcegos hematófagos encontrados positivos para raiva, e considerando-se o grande número de bovinos positivos, recomenda-se utilizar animais de produção para fins de monitoramento da circulação viral e adoção de medidas de prevenção e controle, visto que a transmissão do vírus para essas espécies acontece, principalmente, pela mordedura dos morcegos hematófagos.

O manejo e o controle de morcegos hematófagos são de responsabilidade do Departamento da Agricultura e suas ações de vigilância devem ser realizadas em parceria com a área da Saúde. Ressalta-se que a única espécie de morcego em que é permitido o controle é a Desmodus rotundus.29

Apesar dos avanços no controle da raiva no Brasil nessa década, decorrentes de um trabalho integrado das três esferas de gestão que compõem o Sistema Único de Saúde, o SUS, muitos desafios ainda persistem. O momento requer uma vigilância permanente para os diferentes componentes da cadeia de transmissão da doença. Como forma de reforçar essas atividades, bem como para manter o compromisso internacional de eliminação da raiva humana transmitida por cães nas Américas, foram pactuadas ações entre os três níveis de gestão, quais sejam:1 a) cobertura vacinal canina de no mínimo 80,0%, pela campanha de vacinação antirrábica nacional; b) envio de 0,2% da população canina estimada para monitoramento de circulação viral; c) envio de 100,0% dos morcegos encontrados mortos para diagnóstico laboratorial; e d) esquema profilático de pós-exposição completo em 100,0% das pessoas agredidas por morcegos, notificadas pelo sistema de informação.

Por fim, é importante destacar a alteração no perfil epidemiológico da raiva nessa década, os avanços no controle no ciclo urbano e a expansão do ciclo silvestre. As atividades de vigilância e controle em cães devem ser mantidas e as dos ciclos silvestres, intensificadas. Reforça-se a necessidade de a população buscar atendimento em qualquer situação de agressão; e de os profissionais de saúde permanecerem atentos à avaliação e indicação adequada e oportuna da profilaxia, quando esta se fizer necessária.

 

Agradecimentos

Aos coordenadores dos programas estaduais da raiva, centros de controle de zoonoses, Secretarias de Estado e Municipais de Saúde e laboratórios de diagnóstico da raiva. Aos agentes de saúde. Aos médicos, enfermeiros e auxiliares de enfermagem que atenderam os pacientes. A todos que contribuíram para o controle da raiva no país.

Finalmente, a Daniele Maria Pelissari, pela revisão desse artigo.

 

Referências

1. Ministério da Saúde. Secretaria de Vigilância em Saúde. Guia de vigilância epidemiológica. 7a ed. Brasília: Ministério da Saúde; 2009. Caderno 13: Raiva. (Série A. Normas e Manuais Técnicos).

2. Knobel DL, Cleaveland S, Coleman PG, Fèvre EM, Meltzer MI, Miranda MEG, et al. Re-evaluating the burden of rabies in Africa and Asia. Bulletin of the World Health Organization. 2005; 83(5):321-400.

3. Coleman PG, Fèvre EM, Cleaveland S. Estimating the public health impact of rabies. Emerging Infectious Diseases. 2004; 10(1):140-142.

4. Ly S, Buchy P, Heng NY, Ong S, Chhor N, Bourhy H, et al. Rabies situation in Cambodia. PLoS Neglected Tropical Disease. 2009; 3(9):e511.

5. 3° Seminário sobre técnicas de controle da raiva; 1979 nov 26-30; São Paulo: Secretaria de Estado da Saúde; Instituto Pasteur, SP; 1979. 103 p.

6. Schneider MC, Souza LM, Moraes NB, Diaz RC. Controle da raiva no Brasil de 1980 a 1990. Revista de Saúde Pública. 1996; 30(2):196-203.

7. Belotto A, Leanes LF, Schneider MC, Tamayo H, Correa E. Overview of rabies in the Americas. Virus Research. 2005; 111(1):5-12.

8. Schneider MC, Belotto A, Adé MP, Hendrickx S, Leanes LF, Rodrigues MJF, et al. Current status of human rabies transmitted by dogs in Latin America. Cadernos de Saúde Pública. 2007; 3(9):2049-2063.

9. Melo-Filho DJ. Reorganização das práticas e inovação tecnológica na vigilância em Saúde e os 20 anos do SUS. Texto elaborado como subsídio à sistematização do Relatório da SVS (Gestão 2007-2008). Brasília: Ministério da Saúde; 2008.

10. Laguardia J, Domingues CMA, Carvalho C, Lauerman CR, Macário E, Glatt R. Sistema de Informação de Agravos de Notificação (Sinan): desafios no desenvolvimento de um sistema de informação em saúde. Epidemiologia e Serviços de Saúde. 2004; 13(3):135-147.

11. Teixeira MG, Penna GO, Risi JB, Penna M, Alvim MF, Moraes JC, et al. Seleção das doenças de notificação compulsória: critérios e recomendações para as três esferas de governo. Informe Epidemiológico do SUS. 1998; 7(1):7-28.

12. Ministério da Saúde. Secretaria de Vigilância em Saúde. Situação Epidemiológica das Zoonoses de Interesse à Saúde Pública. Boletim Eletrônico Epidemiológico. 2009; 9(1):1-17 [acessado em 29 mar. 2010]. Disponível em http://portal.saude.gov.br/portal/arquivos/pdf/boletim_epidemiologico_zoonoses_062009.pdf

13. Ministério da Saúde. Fundação Nacional de Saúde. Relatório Final de Avaliação do Programa Nacional de Controle da Raiva no Brasil: 22 de abril a 3 de maio 2002. Brasília: Organização Pan-Americana da Saúde; Organização Mundial da Saúde; Ministério da Saúde; 2002.

14. Wunner WH. Rabies in the Americas. Virus Research. 2005; 111(1):1-4.

15. 15a Reunião interamericana, a nível ministerial, sobre saúde e agricultura: "Agricultura e Saúde: Aliança pela igualdade e desenvolvimento rural nas Américas"; 48° Conselho Diretor, 60° Sessão do Comitê Regional; 2008 jun 11-12; Rio de Janeiro: Organização Pan-Americana da Saúde; 2008.

16. Willoughby RE Jr, Tieves KS, Hoffman GM, Ghanayem NS, Amlie-Lefond CM, Schwabe MJ, et al. Brief report: Survival after Treatment of Rabies with Induction of Coma. The New England Journal of Medicine. 2005; 352(24):2508-2514.

17. Ministério da Saúde. Secretaria de Vigilância em Saúde. Departamento de Vigilância Epidemiológica. Protocolo para Tratamento de Raiva Humana no Brasil. Epidemiologia e Serviços de Saúde. 2009; 18(4):385-394.

18. Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento. Controle da raiva dos herbívoros: manual técnico. Brasilia: MAPA; DAS; DAS; 2005. 104 p.

19. Ikotait I. Raiva em morcegos em áreas urbanas no estado de São Paulo. Boletim Epidemiológico Paulista. 2005; 2(20):7-9 [acessado em 29 mar. 2009]. Disponível em: Disponível em: http://www.cve.saude.sp.gov.br/agencia/bepa20_raiva.htm

20. World Health Organization. WHO Expert Consultation on Rabies. Geneva: World Health Organization; 2004. (WHO Technical Report Series no. 931).

21. Travassos da Rosa ES, Kotait I, Barbosa TFS, Carrieri ML, Brandão P, Pinheiro AS, et al. Bat-transmitted human rabies outbreaks, Brazilian Amazon. Emerging Infectious Diseases. 2006; 12(8):1197-1202.

22. Schneider MC, Romijn PC, Uieda W, Tamayo H, Silva DF, Belotto A, et al. Rabies transmitted by vampire bats to humans: An emerging zoonotic disease in Latin America? Revista Panamericana de Salud Pública. 2009; 25(3):260-269.

23. Centers for Disease Control and Prevention. Human Rabies Prevention - United States, 2008. Morbidity and Mortality Weekly Report. 2008; 57(RR3):1-36.

24. Kilic B, Unal B, Semin S, Konakci SK. An important public health problem: rabies suspected bites and post-exposure prophylaxis in a health district in Turkey. International Society for Infectious Diseases. 2006; 10(3):248-254.

25. Toovey S. Preventing rabies with the Verorabs vaccine: 1985-2005. Twenty years of clinical experience. Travel Medicine and Infectious Disease. 2007; 5, 327-348.

26. World Health Organization. Expert Committee on Rabies. Geneva: World Health Organization; 1992. (WHO Technical Report Series no. 824).

27. Favoretto SR, Mattos CC, Morais NB, Araújo FAA, Mattos CA. Rabies in Marmosets (Callithrixjacchus), Ceará, Brazil. Emerging Infectious Diseases. 2001; 7(6).

28. Carnieli P Jr, Brandão PE, Carrieri ML, Castilho JG, Macedo CI, Machado LM, Rangel N, Carvalho RC, Carvalho VA, Montebello L, Wada M, IKotait I. Molecular epidemiology of rabies virus strains isolatedfrom wild canids in Northeastern Brazil. Virus Research. 2006; 120, 113-120.

29. Burkel MD, Andrews MF, Meslow EC. Rabies Detection in Road-killed Skunks (Mephitis mephitis). Journal of Wildlife Diseases. 1970; 6(X).

 

 

 Endereço para correspondência:
Setor Comercial Sul, Quadra 04, Bloco A,
Edifício Principal lote 67/97, 2° andar,
Brasília-DF, Brasil.
CEP:70304-000
E-mail:marcelo.wada@saude.gov.br

Recebido em 19/04/2010
Aprovado em 02/12/2011