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Epidemiologia e Serviços de Saúde
versão impressa ISSN 1679-4974versão On-line ISSN 2237-9622
Epidemiol. Serv. Saúde v.21 n.4 Brasília dez. 2012
http://dx.doi.org/10.5123/S1679-49742012000400008
ARTIGO ORIGINAL
Caracterização das vítimas de acidentes de trânsito atendidas pelo Serviço de Atendimento Móvel de Urgência (SAMU) no Município de João Pessoa, Estado da Paraíba, Brasil, em 2010
Characterization of victims of traffic accidents attended by the Mobile Emergency Service in João Pessoa-PB in 2010
Rackynelly Alves Sarmento SoaresI; Ana Paula de Jesus Tomé PereiraI; Ronei Marcos de MoraesII; Rodrigo Pinheiro de Toledo ViannaIII
IPrograma de Pós-graduação em Modelos de Decisão e Saúde, Universidade Federal da Paraíba, João Pessoa-PB, Brasil
IIDepartamento de Estatística, Universidade Federal da Paraíba, João Pessoa-PB, Brasil
IIIDepartamento de Nutrição, Universidade Federal da Paraíba, João Pessoa-PB, Brasil
RESUMO
OBJETIVO: caracterizar as vítimas de acidentes de trânsito (AT) e investigar a distribuição espacial desses eventos.
MÉTODOS: estudo ecológico, incluiu todas as vítimas de AT atendidas pelo Serviço de Atendimento Móvel de Urgência (SAMU) em João Pessoa-PB, Brasil, em 2010; os dados foram coletados nas Fichas de Regulação Médica do SAMU.
RESULTADOS: foram atendidas 4.514 vítimas, a maioria do sexo masculino (75,45%) com idade entre 20 e 39 anos (60,0%); o mecanismo mais frequente do trauma foi motocicleta (63,0%); a região corpórea mais frequentemente atingida, os membros (62,5%); a análise espacial identificou o centro da cidade com risco relativo dez vezes maior que o do município.
CONCLUSÃO: os dados do SAMU foram considerados fonte de informações para identificar áreas de maior risco e grupos mais expostos aos AT, sendo essas informações fundamentais para o planejamento do atendimento a emergências no município.
Palavras-chave: Acidentes de Trânsito; Epidemiologia; Risco Relativo; Serviços Médicos de Emergência; Conglomerados Espaço-Temporais.
ABSTRACT
OBJECTIVE: to characterize the victims of traffic accidents and investigate the spatial distribution of these events.
METHODS: ecological study of all victims of traffic accidents treated by the Mobile Emergency Services (SAMU), in João Pessoa, 2010. Data were collected on medical records of SAMU.
RESULTS: 4,514 victims were treated, most males (75.45%), aged between 20 and 39 years (60.0%). The most common vehicle was motorcycle (63.0%), members were the most frequently affected body region (62.5%). The spatial analysis identified the city center with a relative risk (RR) ten times greater than the RR of the municipality.
CONCLUSION: SAMU data was considered a source of information to identify high-risk areas of traffic accidents and most the exposed groups, which are fundamental information for planning emergency response in the city.
Key words: Accidents, Traffic; Epidemiology; Relative Risk; Emergency Medical Services; Space-Time Clustering.
Introdução
As causas externas, especialmente os acidentes de trânsito (AT), passaram a ter grande importância no comprometimento da saúde da população.1 Em 2004, os AT totalizavam 2,2% das principais causas de mortalidade no mundo. A estimativa para 2030 é que o percentual alcance 3,6%, passando a ser a quinta principal causa de mortalidade.2
Os acidentes de trânsito provocam, no mundo, a morte de aproximadamente 1,3 milhão de pessoas e lesionam de 20 a 50 milhões de outras a cada ano. Desse total de mortes, quase a metade (46,0%) são pedestres, ciclistas ou motociclistas, considerados mais vulneráveis no trânsito.2
Países de média e baixa renda apresentam taxas de mortalidade por AT mais altas (21,5/100 mil habitantes) que os países desenvolvidos (10,3/100 mil hab.). Embora de maneiras distintas, ambos sofrem com esse sério problema. Enquanto nos países de média e baixa renda, os AT têm vitimado principalmente os pedestres, os ciclistas e os motociclistas, nos países desenvolvidos, as principais vítimas são os ocupantes de veículos de quatro rodas.2 No Brasil, a taxa de mortalidade estimada pelo relatório da Organização Mundial da Saúde - OMS - é de 15/100 mil habitantes.2
Em relação aos eventos não fatais, observa-se um grande número de internações, atendimentos em serviços de emergência e sequelas permanentes, traduzindo-se em altos custos para a sociedade.3
No Brasil, os AT apresentam taxas de mortalidade superiores às de países desenvolvidos, além de ser a principal causa de morte na população economicamente ativa.4 A violência e os acidentes vitimaram mais de um milhão de pessoas na década de 1990 no Brasil, entre as quais 310 mil mortes foram por AT.5 Entre as causas externas, os AT foram responsáveis por 26,5% das mortes no Brasil, em 2009; na população de 10 a 14 anos e de 40 a 59 anos, os AT foram a principal causa de morte.6
A Política Nacional de Trânsito (PNT) apresenta como um de seus objetivos a 'prioridade e a preservação da vida, da saúde e do meio ambiente' e para isso apresentou um conjunto de metas, entre elas a redução da taxa nacional de mortes por AT para 14 mortes em cada 100 mil habitantes até dezembro de 2010.4
Esta meta não foi alcançada pela cidade de João Pessoa-PB, que apresentou nos últimos dois anos, valores superiores aos pleiteados pela PNT. Segundo os dados da Superintendência de Transportes e Trânsito de João Pessoa (STTrans), o ano de 2010 apresentou taxa de mortalidade de 20,18 mortes para cada 100 mil hab., representando um aumento de 29,5% quando comparado ao ano de 2008 (15,58).7 Com relação à morbidade, em 2008, o hospital de referência em emergência e trauma atendeu 5.466 vítimas de AT; em 2010, foram 6.031 vítimas atendidas pela unidade.7
No Brasil, o serviço de atendimento pré-hospitalar, antes implantado de forma heterogênea nas grandes cidades e voltado principalmente para o atendimento de vítimas de lesões traumáticas, foi reformulado em 2003, constituindo-se o Serviço de Atendimento Móvel de Urgência (SAMU), que inclui o atendimento às urgências clínicas.8 Este serviço consiste em uma das primeiras instâncias da Saúde a sofrer os impactos causados pelos AT, no atendimento às suas vítimas.
A análise espacial é uma ferramenta da geoestatística muito utilizada quando o objeto de interesse está na localização espacial de um determinado evento.9 A utilização de eventos na área da Saúde georreferenciados em nível local tem se tornado, cada vez mais, útil como ferramenta para o planejamento e gestão em saúde e, nesse sentido, a ocorrência de AT tem especial apelo para o georreferenciamento, possibilitando melhor localização de áreas de risco.10 Além disso, a geração de informações sobre AT é fundamental para subsidiar a tomada de decisões nos diversos setores, mais além da Saúde, tais como a Educação e a Fiscalização do Transporte, servindo de alicerce para a redução do risco de acidentes.11
No presente estudo, objetivou-se caracterizar as vítimas e suas lesões, a partir dos dados de atendimentos do SAMU -, bem como identificar um padrão na distribuição espacial dos acidentes e possíveis aglomerados com alto índice desses eventos na cidade de João Pessoa, no estado da Paraíba, Brasil, no ano de 2010.
Métodos
Trata-se de um estudo ecológico de base populacional com uso de dados secundários que objetiva caracterizar a população vítima de pelo menos um acidente de trânsito atendida pelo SAMU na cidade de João Pessoa-PB, no ano de 2010, descrever a distribuição espacial e temporal do acidente de trânsito - AT - e estimar o risco populacional e relativo.
João Pessoa é a capital do estado da Paraíba. Segundo o Censo Demográfico 2010, sua população era de 723.514 mil habitantes. A cidade é considerada de porte médio, possui uma área de aproximadamente 210,45km e está localizada no Nordeste do Brasil, na Zona da Mata paraibana.
O instrumento de coleta adotado foi a Ficha de Regulação Médica (FRM), preenchida pela equipe do SAMU no momento dos atendimentos de urgência. A FRM adotou as seguintes variáveis: tipo de ambulância (Unidade de Suporte Básico ou Unidade de Suporte Avançado); unidade hospitalar de destino; sexo da vítima; uso de substância psicotrópica (álcool; outras drogas; e não utilizou); faixa etária; parte do corpo atingida (abdome/pelve; cabeça/pescoço; face; membros; não especificado; não se aplica; tórax); orientação (algo desorientado; orientado; não informado; não se aplica); nível de consciência (coma; consciente; inconsciente; não se aplica; não informado); uso da Abbreviated Injury Scale (ou escala AIS); veículos envolvidos; natureza do acidente (atropelamento; capotamento; choque com fixo; colisão; queda de moto; queda < 5m; tombamento; não informado); data e bairro da ocorrência.
As lesões foram classificadas por região corpórea segundo a escala AIS, que estabelece um escore indicativo da gravidade de uma lesão traumática específica, de acordo com o tipo e localização anatômica, variando de 1 (lesão leve) até 6 (lesão quase sempre fatal). Esta escala foi atualizada em 2005 pela Association for the Advancement of Automotive Medicine (AAAM) e serve de base para vários escores de trauma, criados com o objetivo de aumentar a acurácia na determinação da mortalidade, considerando-se a soma de três lesões mais graves em um politraumatizado.12 Neste estudo, além dos valores de 1 a 6 admitidos na escala AIS, utilizamos o valor zero para os casos em que o SAMU foi acionado mas, ao chegar ao local da ocorrência, detectou que a vítima não apresentava lesão.
Com relação à variável 'uso de substância psicotrópica', é importante mencionar que sua coleta - pelo SAMU - baseou-se no auto-relato das vítimas e na observação dos notórios sinais de embriaguez, classificados pela Associação Brasileira de Medicina de Tráfego e homologados pelo Conselho Nacional de Trânsito, conforme a Resolução no 206, de 20 de outubro de 2006. Os dados das FRM foram coletados na base de operações do SAMU e transcritos para planilha eletrônica (BrOfficeCalc 3.2), para se realizar, em momento posterior, a análise estatística descritiva.
Para caracterizar as vítimas e os acidentes de trânsito, foram utilizados todos os casos de vítimas de AT. Entretanto, para a análise espacial, dada a não completude das FRM no que se refere à variável espacial 'bairro da ocorrência', nem todos os casos puderam ser considerados.
Inicialmente, o total de atendimentos do SAMU foi agrupado por bairro; em seguida, esses dados foram organizados de maneira a relacioná-los à informação espacial. Esse relacionamento foi feito através do processo denominado de geocodificação (geocoding), que consiste em atribuir coordenadas geográficas partindo de uma referência alfanumérica.13 Concluída essa etapa, os dados foram carregados em um sistema de informações geográficas (TerraView 4.2.0), pelo qual foram elaborados os mapas de risco relativo. O mapa de varredura scan foi feito pelo pacote estatístico R.
Para o cálculo da incidência de acidente de trânsito, foram utilizados os casos geocodificados de vítimas de acidentes de trânsito:14
O denominador para o cálculo da incidência refere-se à população residente em João Pessoa-PB, obtida a partir do censo do IBGE para o ano de 2010.
O mapa de risco relativo pode ser definido como uma região geográfica formada por áreas contínuas e disjuntas, denotadas por A1, A2,..., Ak; e seja X uma variável aleatória, definida como o número de ocorrências do evento, então as observações das n áreas serão denotadas por x1, x2, xn, esteja associada a área Ai, com população ni (i=1, 2,..., k). O risco relativo de uma área Ai, denotada por Θi, é o quociente entre a incidência do fenômeno em estudo sobre a região Aie e a incidência correspondente a toda região de estudo.15
Para fins deste estudo, considerou-se a razão da taxa de incidência de vítimas de AT atendidas pelo SAMU de cada bairro pela taxa de incidência de vítimas de AT atendidas pelo SAMU em toda a cidade. A interpretação desse resultado considerou que os valores menores que 1 implicam em fator de proteção, ou seja, que o risco de ter uma vítima de AT no bairro é menor do que o risco da cidade; valores iguais a 1 implicam a não existência de associação, ou seja, que o risco de ter uma vítima de AT no bairro é igual ao risco da cidade; e para os valores superiores a 1, que o fator de risco, ou seja, o risco de ter uma vítima de AT no bairro, é maior que o risco da cidade.14
O mapa de varredura scan tem como principal objetivo identificar conglomerados (também chamados de clusters, na língua inglesa) onde a ocorrência de um evento seja significativamente mais provável dentro de determinada área do que fora dela.16 Os conglomerados podem ser definidos como sendo áreas cujo risco - elevado ou baixo - é significativamente distinto e não pode ser explicado pelas covariáveis conhecidas.17
O modelo probabilístico adotado foi o modelo de Poisson. Para este modelo, 'é computado o raio cujos valores de p (z) e q (z) maximizam a função de verossimilhança condicionada ao total de casos observados'; para isso, considera-se a estatística:1
onde: p é a probabilidade de haver casos dentro do círculo; q é a probabilidade de haver casos fora do círculo; e Z é o conjunto de todos os possíveis candidatos a conglomerados. L0 é definido como:
onde: C é o total de casos observados na região considerada; e M é a população total sob toda região de estudo.
onde: exp representa a função exponencial; cz é o número de casos no circulo z; e nz é o número de indivíduos em risco no circulo z.15
A varredura scan considera a hipótese nula (H0) de homogeneidade, ou seja, admite não haver conglomerados espaciais, implicando risco constante em toda área adotada no estudo.15,17
Quanto aos aspectos éticos referenciados na Resolução CNS no 196, de 10 de outubro de1996, do Conselho Nacional de Saúde, o projeto do estudo foi submetido ao Comitê de Ética em Pesquisa do Centro Universitário de João Pessoa - CEP/UNIPÊ -, sendo aprovado em sua 35a Reunião Ordinária, realizada em 16 de fevereiro de 2011.
Resultados
Em 2010, foram atendidas 4.514 vítimas de AT pelo SAMU em João Pessoa-PB o que representa, aproximadamente, 25,0% de todos os atendimentos realizados pelo Serviço, quando se inclui as outras causas de atendimento. As Unidades de Suporte Básico, ou USB, que contavam, em sua equipe de salvamento, com condutores e técnicos em emergência médica, realizaram 4.449 (98,6%) atendimentos. Foram registrados 30 óbitos no período do estudo.
A maioria dessas vítimas (77,9%) foi atendida e encaminhada para algum hospital de referência em trauma da cidade. Verificou-se que 405 (9,0%) delas foram atendidas no local do acidente e liberadas em seguida, não sendo necessário o encaminhamento para um estabelecimento de saúde. Outras 103 (2,0%) recusaram o atendimento após a chegada do SAMU, sendo necessária a assinatura do termo de recusa na FRM.
Do total de atendimentos, 3.406 (75,4%) foram de pessoas do sexo masculino e 1.094 (24,2%) do sexo feminino. O sexo não foi informado em apenas 14 (0,3%) FRM.
Quanto ao uso de substâncias psicotrópicas, 753 (16,7%) apresentaram sinais de uso de álcool e 8 (0,2%) relataram estar sob a influência de outras drogas. O uso de álcool apresentou-se mais frequente nas vítimas do sexo masculino com 657 (87,3%) casos, entre a colisão e a queda de moto (66,0% dos casos) e os dias que correspondem ao fim de semana (sexta, sábado e domingo) com 69,5% dos casos. Entre esses três dias, o domingo foi o mais frequente com 248 (33,0%) casos. Essas vítimas apresentaram lesões de menor gravidade (AIS<3) 93,1%.
A média de idade das vítimas foi de 30,6 anos (desvio-padrão: 13,5), as maiores frequências de AT encontram-se nas faixas etárias de 20 a 29 anos (38,0%) e de 30 a 39 anos (22,0%). As menores frequências foram observadas nas faixas etárias das extremidades: de 0 a 9 anos (3,0%) e aos 60 anos ou mais. Esta variável não foi informada em 91 (2,0%) atendimentos.
Quanto às lesões, a parte do corpo mais atingida foram os membros, com 2.820 (62,5%) casos (Tabela 1). Dos 30 óbitos registrados no período do estudo, em 15 o SAMU não informou o tipo da lesão. No momento do acidente, a maioria das vítimas estava orientada (73,6%), consciente (80,9%) e com AIS 1 (64,3%). Nos 57 casos em que nenhuma parte do corpo foi atingida, o AIS atribuído foi zero. Para os casos em que o SAMU não informou a parte do corpo atingida mas informou o tipo de lesão, foi possível atribuir AIS a 77 casos, uma vez que somente a lesão já seria suficiente para isso. Como exemplo, cita-se os casos de pequenas escoriações, às quais são atribuídas AIS 1 (gravidade leve). Os membros - tanto superiores quanto inferiores - foram as regiões corpóreas mais atingidas (62,5%), seguidas pela região da cabeça/pescoço (15,9%). A maioria das vítimas de AT apresentou lesões de gravidade leve, AIS 1 (64,3%), e lesões de gravidade moderada, AIS 2 (22,2%), representando um total de 86,5% das lesões. Entre os casos de maior gravidade (AIS≥3), registrou-se 178 colisões (46,6%), 102 quedas de moto (26,7%) e 45 atropelamentos (11,8%).
Quanto à natureza do acidente, a mais frequente foi a colisão, com 1.972 (44,0%) casos, seguida pelas quedas de moto, com 1.299 (29,0%); entretanto, salienta-se que, se forem considerados todos os envolvimentos com motocicletas (carro x moto, moto x moto, ônibus x moto, entre outros), este tipo de veículo encontra-se envolvido em 63,0% dos atendimentos. Os atropelamentos apresentaram 501 (11,0%) vítimas; e as quedas de bicicleta, 327 (7,0%).
Com relação à distribuição de atendimentos por dia da semana, os dias que correspondem ao fim de semana (sexta, sábado e domingo) perfizeram 2.387 atendimentos, número que representa 52,0% do total. Os dias de sábado e domingo apresentaram maior risco relativo (1,8), quase o dobro quando comparados com a quarta-feira, o dia de referência; em seguida, tem-se a sexta-feira (1,3) (Tabela 2).
Na distribuição mensal, esse aumento foi mais suave. Fevereiro foi o mês que apresentou menor número de vítimas (6,0%); em segundo lugar ficaram os meses de abril, junho e setembro (7,0%); em terceiro, os meses de janeiro, maio e agosto (9,0%); e em último lugar, ficaram os meses de outubro, novembro e dezembro (10,0%). Quando comparado com o mês de julho, adotado como referência, o mês que apresentou maior risco relativo de atendimento foi novembro (1,2), e o de menor risco, o mês de fevereiro (0,73) (Tabela 2).
Dos 4.514 atendimentos realizados pelo SAMU, em 266 (5,9%) o bairro não foi informado, motivo porque esses eventos não foram incluídos nas análises espaciais. A variável 'local da ocorrência', informando o logradouro correspondente, apresentou taxa de preenchimento inferior a 80,0% e, por isso, não foi adotada no estudo.
Com respeito à distribuição das vítimas segundo a escala AIS, para as situações em que as lesões resultantes dos AT são menos graves (AIS<3), o bairro de Mangabeira (58) apresentou 399 vítimas, seguido do bairro do Cristo Redentor (51), com 255 vítimas, e do Centro (48), com 245.
Para a situação em que as lesões resultantes dos AT foram mais graves (AIS≥3), o resultado é semelhante ao anterior, porém com menores frequências: o bairro de Mangabeira (58) apresentou 44 vítimas com AIS≥3, seguido pelo bairro do Centro (48) com 27 e pelo Cristo Redentor (51) com 25 vítimas com lesões mais graves. O bairro que apresentou maior percentual de óbitos foi Mangabeira (58), com 16,7%.
O mapa de risco (Figura 1) demonstra que os bairros que apresentaram maior risco relativo de contar com vítimas de AT foram, em primeiro lugar, o Centro (48), cujo risco relativo é dez vezes maior quando comparado com o risco do município, seguindo-se os bairros de Água Fria (57) e Penha (8), com risco relativo 3,2. Mangabeira (58), um bairro com alto número de vítimas, não aparece nestes Resultados como um bairro de risco relativo mais destacado: seu risco apresentado foi igual a 1, ou seja, igual ao risco global para AT. Este comportamento era esperado, pois sua população residente é muito alta, contribuindo para a redução dessa medida.
Com relação ao mapa de varredura scan, o que melhor se adequou ao mapa de risco relativo (Figura 2) foi o de 5,0% da população (Figura 2c). Com 5,0% da população, todos os bairros com risco relativo >1 - exceto Mandacaru e Brisamar, ambos com risco relativo 1,1 -, foram detectados pela varredura scan, representando conglomerados espaciais significativos com alto risco. Além disso, a técnica detectou alguns conglomerados significativos não identificados no mapa de risco relativo e, por isso, de baixo risco: Portal do Sol (23); Jardim São Paulo (47); Anatólia (46); Cidade dos Colibris (45); e Róger (35). Todos os bairros com risco relativo entre 2 e 10,1 - Centro (48); Tambiá (34); Bairro dos Estados (29); Altiplano (24); Bancários (56); Água Fria (57); e Distrito Industrial (20) - foram detectados pela varredura scan a 1,0%, 3,0%, 5,0%, 7,0% e 10,0% da população (Figura 2).
Discussão
Os resultados observados foram consistentes com aqueles de outros estudos, quanto ao sexo e à faixa etária.18,19 Nesse sentido, um estudo realizado na cidade de Olinda-PE relatou que as vítimas do sexo masculino totalizaram 78,09%, e que os adultos entre 20 e 39 anos perfizeram 65,0% do total de atendimentos pelo SAMU.19
Quanto ao uso do álcool, nosso estudo apresentou um percentual preocupante (17,0%), semelhante ao já reportado pela 'Vigilância de fatores de risco e proteção para doenças crônicas por inquérito telefônico' - Vigitel - em 2008, que apresentou uma taxa de prevalência de adultos (18 anos ou mais de idade) que referiram dirigir veículos motorizados após consumo abusivo de álcool, de 17,3. A preocupação com este resultado para João Pessoa-PB se justifica. Estudos20,21 afirmam haver relação entre acidente de trânsito e uso do álcool, de maneira que dirigir sob o efeito dessa substância é considerado um fator de risco para a ocorrência de AT, principalmente se, somado a isso, houver sonolência, excesso de velocidade e falta de experiência na direção veicular.21,22
A não exposição ao álcool, por consequência, implica fator de proteção. Isso pôde ser vivenciado, no Brasil, com a implantação da chamada Lei Seca em 2008, reduzindo-se o limite permitido da concentração alcoólica sanguínea de 0,06 para 0,02, o que resultou em uma redução da mortalidade (-22,6%) e da internação hospitalar (-23,2%) motivadas por AT no segundo semestre de 2008, quando comparadas às mesmas taxas do segundo semestre de 2007.23 Contudo, o que se percebe é que o Brasil, ainda que apresente leis que proíbem a direção de veículos automotores sob a influência do uso de bebidas alcoólicas, carece de fiscalização do cumprimento dessa proibição. Há cidades brasileiras que não possuem, entre outros itens, etilômetro, equipamento fundamental para aplicação da Lei.21
Ainda com respeito ao uso do álcool, nosso estudo apontou que os acidentes mais graves, com AIS≥3, apresentaram maior percentual entre as vítimas que não apresentaram uso de álcool (9,2%), embora essa diferença não tenha sido estatisticamente significativa. Contrariando esse achado, uma pesquisa realizada na Coréia do Sul demonstrou que acidentes mais graves, que resultam em lesões AIS≥3, localizadas na cabeça, estão mais presentes entre vítimas que fizeram uso de álcool.22
Nosso estudo mostra que os membros são a região corpórea mais atingida (62,5%). De maneira semelhante, um estudo24 envolvendo motociclistas mostrou que a área corpórea mais atingida por lesões foram os membros inferiores (59,70%), seguidos dos superiores (41,79%). Os autores explicam que, para os motociclistas, os membros são justamente as regiões mais desprotegidas, uma vez que o equipamento de segurança utilizado oferece proteção somente para a região da cabeça. Em outro estudo,25 os resultados mostraram que os ocupantes de motocicleta apresentaram maior percentual de lesões em membros/cintura pélvica (50,56%), enquanto os pedestres sofreram mais lesões, proporcionalmente, na região da cabeça/pescoço (29,43%).
As lesões de gravidade leve e moderada foram maioria em nosso estudo (86,5%) e explicam o envio mais frequente (98,6%) das Unidades de Suporte Básico - USB - para atendimento dessas vítimas. Uma pesquisa sobre gravidade do trauma em acidentes de trânsito ocorridos em Natal-RN observou que, das 1.645 lesões, 41,52% eram do tipo AIS 2 (moderada) e 38,8% do tipo AIS 1 (leve). Dados semelhantes foram encontrados em outro estudo, evidenciando lesões de gravidade leve e moderada como as mais frequentes.25
Com relação à caracterização dos acidentes, outros estudos também apresentaram resultados semelhantes aos nossos. Um deles constatou que de 2.057 vítimas acidentadas e registradas em boletins de ocorrência, a maioria ocupava motocicleta (30,3%) ou automóvel (29,9%).26 Em outro estudo, percebeu-se o elevado percentual de envolvimento de motocicletas (30,9%), quando comparadas aos carros de passeio (18,9%), vans ou caminhões (2,3%), nos AT.27 Uma possível explicação para esse fenômeno refere-se às facilidades, como baixo custo e financiamentos diversos, para a aquisição de motocicletas sem que haja mais investimento na segurança dos indivíduos que as pilotam.28 Além disso, as motocicletas estão sendo bastante utilizadas nos serviços de entrega a domicílio, cuja necessidade de rapidez, exigida pela natureza do trabalho, acaba se tornando um importante fator de risco para ocorrência de acidente.29
O mapa de varredura scan que melhor se adequou ao mapa de risco relativo foi o de 5,0% da população. Quanto ao percentual da população, sabe-se que não existe uma padronização perfeita para esse valor.15 Em virtude disso, vários testes são realizados a fim de encontrar o percentual mais adequado ao estudo.
De uma maneira geral, a análise espacial mostrou-se viável na identificação de áreas de risco para a ocorrência de acidente de trânsito, ao utilizar os dados contidos nas Fichas de Regulação Médica - FRM - do SAMU. Salienta-se, entretanto, a importância de completude desses instrumentos, especialmente no que se refere ao maior detalhamento do local da ocorrência, possibilitando análises pontuais. Eis uma das limitações do presente estudo.
Nesse sentido, o estudo realizado em Olinda-PE20 conseguiu mais precisão no georreferenciamento dos atendimentos às vítimas de AT atendidas pelo SAMU quando agregou tais eventos aos setores censitários definidos pelo IBGE. Isso foi possível porque naquela cidade, Unidades de Suporte Básico - USB - e Unidades de Suporte Avançado - USA - são viaturas equipadas com aparelhos de Global Positioning System (GPS) e seus condutores foram treinados a manuseá-lo.20
A medida de incidência por bairro pode ter sido afetada pelas vítimas de AT que residem em outros municípios mas sofreram o agravo em João Pessoa-PB. Tal limitação poderia ser superada com a inclusão da variável 'município de residência' nas FRM.
A cobertura do SAMU é de 100,0% na cidade de João Pessoa-PB. Entretanto, as vítimas de AT podem ser atendidas por terceiros, razão porque não foram contempladas pelo presente estudo. A STTrans registrou 6.031 vítimas de AT em 2010;7 ou seja, o SAMU não foi acionado em 25,2% dos casos.
Os desfechos consequentes do AT (alta, internação ou óbito) pós-atendimento pré-hospitalar não puderam ser aqui caracterizados, por falta de comunicação entre o atendimento hospitalar e o pré-hospitalar. Outra limitação a se considerar refere-se ao número reduzido de variáveis coletadas acerca da vítima, especialmente quanto aos aspectos socioeconômicos. Isso se justifica, pois as FRM objetivam caracterizar a situação de emergência do paciente via registro de dados vitais, tipo de lesão, parte do corpo atingida, procedimentos realizados, entre outros. Uma variável importante para a caracterização dos AT - mas inexistente nas FRM - é a hora da ocorrência. A impossibilidade de incluí-la no estudo aponta para a necessidade de reformulação das FRM do SAMU de João Pessoa-PB.
A identificação do padrão na distribuição espacial dos acidentes possibilita aos órgãos públicos vinculados ao trânsito, tais como STTrans, Polícia Rodoviária Federal e a Companhia Polícia de Trânsito, a intervenção em locais da cidade de João Pessoa-PB onde, de fato, se necessite. Eventualmente, poderão ser implementadas ações educativas voltadas para o perfil mais atingido (homens com idade entre 20 e 39 anos, usuários de ciclomotores), nos locais indicados pela análise, aumentando, assim, a eficiência dessas ações. Além disso, o SAMU pode utilizar esses resultados para redistribuir suas unidades descentralizadas, bem como as USA e as USB.
O estudo do AT a partir das fichas do SAMU apresentou resultados satisfatórios, confirmando-as como uma importante fonte de informação para a vigilância de saúde. Os resultados identificaram áreas de maior risco e grupos mais expostos aos acidente de transporte, informações fundamentais para o planejamento do atendimento a emergência no município.
Contribuição dos autores
Soares RAS realizou a concepção do projeto, coleta, análise e interpretação dos dados, bem como, a redação e revisão crítica do artigo.
Pereira APJT realizou análise e interpretação dos dados, bem como, a redação e revisão crítica do artigo.
Moraes RM e Vianna RPT participaram da concepção do projeto e realizaram revisão crítica.
Todos os autores participaram da aprovação da versão final.
Referências
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Endereço para correspondência:
Alameda Gravata, Quadra 301, Conjunto 9,
Ed. Império das Águas, Águas Claras-DF, Brasil.
CEP 71901-350
E-mail: rackynelly@unb.br
Recebido em 12/06/2012
Aprovado em 27/11/2012