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Epidemiologia e Serviços de Saúde

versão impressa ISSN 1679-4974versão On-line ISSN 2237-9622

Epidemiol. Serv. Saúde v.22 n.1 Brasília mar. 2013

http://dx.doi.org/10.5123/S1679-49742013000100007 

ARTIGO ORIGINAL

 

Diferenças, segundo faixa etária, do perfil clínico-epidemiológico dos casos de dengue grave atendidos no Hospital Federal dos Servidores do Estado, Rio de Janeiro-RJ, Brasil, durante a epidemia de 2008*

 

Age differences in the clinical and epidemiological pattern of severe dengue cases treated during the 2008 epidemic in Rio de Janeiro

 

 

Claudia Caminha EscosteguyI; Alessandra Gonçalves Lisbôa PereiraI; Roberto de Andrade MedronhoII; Cecília Silveira RodriguesIII; Karla Kétrin F. das ChagasIV

IServiço de Epidemiologia do Hospital Federal dos Servidores do Estado e Faculdade de Medicina da Universidade Estácio de Sá, Rio de Janeiro-RJ, Brasil
IIInstituto de Estudos em Saúde Coletiva e Faculdade de Medicina da Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro-RJ, Brasil
IIIFaculdade de Medicina da Universidade Estácio de Sá; Bolsista de Iniciação Científica da Fundação de Amparo e Pesquisa do Estado do Rio de Janeiro/FAPERJ e Serviço de Epidemiologia do Hospital Federal dos Servidores do Estado, Rio de Janeiro-RJ, Brasil
IVFaculdade de Medicina da Universidade Estácio de Sá; Bolsista de Iniciação Científica da Universidade Estácio de Sá e Serviço de Epidemiologia do Hospital Federal dos Servidores do Estado, Rio de Janeiro-RJ, Brasil

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

OBJETIVO: descrever o perfil clínico-epidemiológico dos casos de febre hemorrágica da dengue (FHD) e dengue com complicações (DCC) atendidos em hospital federal no município do Rio de Janeiro-RJ, Brasil, durante a epidemia de 2008.
MÉTODOS: estudo descritivo a partir de dados do Sistema de Informação de Agravos de Notificação - Sinan -, complementados pela vigilância epidemiológica; os casos foram descritos segundo faixas etárias [crianças (<12 anos); adolescentes (13 a 19 anos); e adultos (≥20 anos)].
RESULTADOS: foram estudados 435 casos (DCC=78,9%; FHD=21,1%), sendo 22,5% crianças, 17,9% adolescentes e 59,5% adultos; cefaleia, mialgia e dor retro-orbitrária predominaram em adultos e adolescentes, dor abdominal foi mais frequente em crianças e adolescentes, e vômitos e exantema em crianças; manifestações hemorrágicas ocorreram em 62,8% dos casos, indiferentemente da faixa etária; extravasamento plasmático foi mais frequente entre crianças (62,2%; p<0,01).
CONCLUSÕES: houve maior ocorrência de alterações relacionadas a extravasamento plasmático nas crianças, conhecimento relevante para o planejamento da assistência.

Palavras-chave: Dengue; Febre Hemorrágica da Dengue; Grupos Etários; Epidemiologia Descritiva; Vigilância Epidemiológica.


ABSTRACT

OBJETIVE: to describe the clinical and epidemiological profile of dengue hemorrhagic fever (DHF) and dengue fever with complications (DFC) patients treated at a federal hospital during the 2008 outbreak.
METHODS: descriptive study using national Notifiable Diseases Information System data, supplemented by local epidemiological surveillance data. Cases were described by agegroup (children: 12years; adolescents: 13-19; adults: 20).
RESULTS: 435 reported cases (DFC=78.9%; DHF=21.1%), 22.5% children, 17.9% teenagers and59.5% adults.Most frequent complaints were headache, myalgia and retro-orbital pain in adults and teenagers; abdominal pain in children and teenagers; vomiting and cutaneous rash in children. Hemorrhagic manifestations occurred in 62.8% regardless of age group. Plasma leakage occurred more in children (62.2%; p<0.01).
CONCLUSIONS: knowing that more plasma leakage-related alterations occurred in children is relevant for healthcare planning.

Key words: Dengue; Dengue Hemorrhagic Fever; Age Groups; Epidemiology, Descriptive; Epidemiological Surveillance.


 

 

Introdução

A dengue é uma doença infecciosa causada por um vírus de genoma RNA pertencente ao grupo B dos arbo-vírus, gênero Flavivirus, família FkvMridae. O vírus da dengue apresenta quatro sorotipos imunologicamente distintos (DENV-1 a DENV-4), sendo a circulação dos três primeiros bem documentada no território brasileiro;1-3 a circulação do DENV-4 foi mais recentemente descrita.4 A doença é transmitida por um mosquito vetor, o Aedes aegypti, e representa um grave problema de Saúde Pública, principalmente nos centros urbanos das áreas tropicais das Américas e da Ásia.1 Segundo a Organização Mundial da Saúde (OMS), dois terços da população mundial estão sob risco de adquirir a doença. As Américas são responsáveis por 68,0% dos casos notificados pela OMS entre 2000 e 2006. O Brasil registrou mais de 60,0% do total dos casos nas Américas.2

Os mecanismos por meio dos quais o vírus da dengue provoca doença grave ainda são discutidos. Tanto fatores virais quanto relacionados ao hospedeiro parecem contribuir para o nível de patogenicidade.3-5 Acredita-se que a imunidade naturalmente induzida ofereça proteção-sorotipo específica e duradoura. Por outro lado, infecção prévia por um sorotipo diferente aumenta o risco de febre hemorrágica da dengue (FHD) e síndrome do choque da dengue (SCD).2-6

A distribuição etária dos casos de dengue difere entre as Américas, onde todos os grupos etários têm sido atingidos, e o Sudeste Asiático, onde principalmente as crianças são afetadas.2,7,8 No Brasil, a incidência de FHD e dengue com complicações (DCC) tem sido maior em adultos. Os sorotipos DENV-1 e DENV-2, introduzidos no final da década de 1980 e início da década de 1990, geraram epidemias de dengue com baixa incidência de FHD, predominantemente em adultos. Com a introdução do DENV-3 em 2000-2001, grandes epidemias foram observadas, com uma proporção um pouco maior de FHD. Entretanto, durante a epidemia de 2007, foi descrita uma mudança na distribuição etária da dengue, com aumento da carga em crianças:7,9,10 naquele ano, mais de 53,0% dos casos hospitalizados de FHD foram crianças e adolescentes menores de 15 anos, enquanto de 1998 a 2006, a faixa etária predominante de casos hospitalizados foi de 2040 anos. A proporção de crianças entre os casos de FHD variou entre as Regiões brasileiras, sendo 65,4% no Nordeste e 20,6% no Sudeste.9 Considerando-se

o total de casos notificados no país, a proporção em menores de 15 anos de idade aumentou de 17,0% em 2002 para 27,5% em 2008.7

No estado do Rio de Janeiro (RJ), sucessivos processos epidêmicos de dengue vêm ocorrendo desde a reintrodução do Aedes aegypti no Brasil, em 1976. Diversas epidemias de dengue ocorreram no RJ entre 1986 e 2008: em 1986-87, com a introdução do DENV-1; em 1990-91, com a introdução do DENV-2; em 1995, e em 1998 e 2001-02, com a introdução e circulação do DENV-3; e em 2007-08, com a circulação predominante do DENV-2. O processo epidêmico de 2008 foi o mais grave ocorrido no Estado até então, com 235.353 casos notificados:11,12 naquele ano, foram 15.723 casos de FHD, SCD e dengue com complicações (DCC), e 263 óbitos confirmados.11 Apesar de a população de 15-49 anos de idade ter apresentado maior número de notificações (54,0%), foi em crianças de 0 a 15 anos que se encontrou a maior gravidade da doença: de 8.620 internações por dengue ocorridas no Estado, 48,0% foram de menores de 15 anos; e do total de óbitos confirmados, 42,0% ocorreram entre os menores de 15 anos de idade.13

Embora seja uma doença inserida principalmente no contexto da atenção básica, o aumento da gravidade dos casos observado na epidemia de 2008 levou a um volume maior de internações e ao estabelecimento de uma central de regulação da oferta de leitos para a doença. O Hospital Federal dos Servidores do Estado (HFSE) do Rio de Janeiro é um hospital geral e de ensino, referência para doenças infecto-parasitárias e para o Subsistema de Vigilância Epidemiológica em âmbito Hospitalar no Estado do Rio de Janeiro. Na epidemia de dengue de 2008, o HFSE participou da rede de oferta de leitos para os casos com indicação de internação, tendo atendido 1.026 casos e internado 465. Este artigo tem como objetivo descrever o perfil clínico-epidemiológico dos casos de DCC ou FHD atendidos no Hospital Federal dos Servidores do Estado - HFSE - durante a epidemia de 2008 e analisar as possíveis diferenças desse perfil segundo a faixa etária.

 

Métodos

Trata-se de um estudo clínico-epidemiológico descritivo, retrospectivo, de uma coorte de 435 casos confirmados de FHD ou DCC atendidos no HFSE durante a epidemia de 2008 e notificados entre janeiro e 16 de junho de 2008. O critério de inclusão foi 'todo caso confirmado de FHD ou DCC segundo os critérios do Ministério da Saúde vigentes na ocasião',14 notificado no Sistema de Informação de Agravos de Notificação (Sinan) local, este mantido pelo Serviço de Epidemiologia do HFSE.

O banco de dados exportado a partir do Sinan local foi complementado por variáveis adicionais coletadas pela vigilância epidemiológica durante a epidemia ou retrospectivamente, a partir dos prontuários, referentes a sinais e sintomas, à história pregressa de dengue e de vacinação contra febre amarela, e a resultados de exames laboratoriais (hematócrito, menor plaquetemia registrada durante a evolução, enzimas hepáticas). Essas variáveis são registradas nas próprias fichas de investigação, preenchidas durante a rotina de investigação epidemiológica, cujas cópias ficam arquivadas no Serviço de Epidemiologia/HFSE.

O banco de dados complementar foi digitado em planilha Excel e a análise estatística realizada pelo programa Epi Info. No caso de inconsistência de informações, realizou-se a revisão da cópia da ficha de investigação ou do prontuário médico. Foram analisadas variáveis referentes ao perfil demográfico dos casos, forma clínica, sinais e sintomas, resultados de exames laboratoriais e evolução. As faixas etárias consideradas foram: criança - até 12 anos -; adolescente - 13 a 19 anos -; e adulto - 20 anos ou mais. Os idosos foram analisados no conjunto dos adultos, pois a amostra correspondente não foi suficientemente grande para essa estratificação, além de as características clínicas não serem diferentes do grupo de adultos em geral.

A estatística descritiva foi usada para descrever a distribuição das variáveis segundo faixa etária; as associações estatísticas foram verificadas pelo teste qui-quadrado e pelo teste t de Student, assumindo-se como significativo um p-valor <0,05.

Este artigo está inserido no estudo 'Epidemia de Dengue de 2007/2008 e o Hospital dos Servidores do Estado: Vigilância Epidemiológica, Modelo de Assistência e Perfil Clínico-epidemiológico dos Casos', aprovado em 11/08/2008 pelo Comitê de Ética em

Pesquisa do Hospital Federal do Servidor do Estado - HFSE - do Rio de Janeiro: Protocolo no 000.334.

 

Resultados

A Tabela 1 apresenta as características gerais dos casos segundo faixa etária. Nas crianças (0 a 12 anos), a idade mediana foi de 8 anos (houve um recém-nato); nos adolescentes (13 a 19 anos), foi de 15 anos; e nos adultos (20 a 95 anos), de 44 anos. Entre os adultos, 75,0% tinham idade inferior a 55 anos e 13,0% (34) eram idosos (idade 65 anos). A mediana do grupo total foi de 26 anos. A distribuição por sexo foi semelhante entre as faixas etárias. Do total de 435 casos, 301 (69,2%) eram residentes do município do Rio de Janeiro-RJ, 126 (29,0%) de municípios da Baixada Fluminense e 8 (1,8%) de outros municípios do Estado, sem diferença entre as faixas etárias (dados não apresentados nas tabelas).

 

 

Com relação à forma clínica, o percentual de casos com os critérios de FHD foi maior nas crianças e nos adolescentes; o tempo médio de permanência dos casos internados foi igual a 6 dias (1 a 36 dias; mediana de 4 dias), sem diferenças entre as faixas etárias. Todos os 6 óbitos ocorreram em adultos, com idades de 20 a 79 anos e mediana de 58 anos, superior à mediana do conjunto de adultos. A classificação dos óbitos foi de FHD em 2 e de DCC em 4. A letalidade geral foi de 1,4%, sendo de 2,2% nos casos de FHD e de 1,2% nos casos de DCC.

O percentual de confirmação sorológica foi significativamente maior nas crianças e adolescentes, fato associado à maior proporção de realização do exame nessas faixas etárias. Do total da amostra, 300 (69,0%) fizeram sorologia, sendo 78,6% das crianças, 78,2% dos adolescentes e 62,5% dos adultos (p=0,002). Entre os que realizaram sorologia, a confirmação do diagnóstico ocorreu em 88,7% (266), sem diferença entre as faixas etárias (dados não apresentados nas tabelas). Os casos com sorologia negativa (34) ou não realizada (135) incluídos no estudo preencheram os critérios de DCC do Ministério da Saúde para período epidêmico, que admite a confirmação clínico-epidemiológica.11 Com relação à forma clínica, 92 casos (21,1%) preencheram os critérios para FHD; e 343 casos (78,9%) foram classificados como DCC, dos quais 174 tiveram confirmação sorológica. Entre os 169 casos classificados como DCC por critério clínico-epidemiológico, 40 preencheriam os critérios de FHD se houvesse confirmação sorológica, sendo 24 adultos, 14 crianças e 2 adolescentes.

A Tabela 2 apresenta sinais e sintomas gerais segundo faixa etária. Os sinais e sintomas gerais mais frequentes nas crianças foram febre, vômitos, cefaleia, prostração, dor abdominal, exantema e diarreia. Nos adolescentes, os sinais e sintomas foram de febre, cefaleia, mialgia, dor abdominal, prostração, vômitos, dor retro-orbitária e artralgia. Já nos adultos, predominaram febre, mialgia, cefaleia, prostração, dor retro-orbitária, vômitos, artralgia e náuseas. As crianças e adolescentes apresentaram percentuais significativamente maiores de febre e dor abdominal, comparativamente aos adultos. Os percentuais de casos com vômitos e exantema foram maiores nas crianças do que nas demais faixas. Cefaleia, mialgia e dor retro-orbitária foram significativamente mais descritas em adolescentes e adultos. Náuseas foram mais frequentes nos adultos. Para dor abdominal e febre, o perfil dos adolescentes foi semelhante ao das crianças; já para dor retro-orbitária e artralgia, o perfil dos adolescentes foi semelhante ao dos adultos. Cefaleia e mialgia foram significativamente mais descritas nos adolescentes, assim como náuseas nos adultos.

 

 

A Tabela 3 apresenta o perfil de extravasamento plasmático, manifestações hemorrágicas e plaquetemia. De uma forma geral, sinais de extravasamento plasmático foram significativamente maiores nas crianças do que nas demais faixas etárias. O percentual de hemoconcentração nas crianças, embora maior do que nos adultos, foi semelhante ao dos adolescentes. Derrames cavitários foram mais frequentes nas crianças, inclusive quando comparadas aos adolescentes.

 

 

Manifestações hemorrágicas espontâneas foram muito frequentes (62,8% do total de casos), sem diferenças significativas entre as três faixas etárias. As mais comuns foram petéquias, gengivorragia, epistaxe e sangramento digestivo. Metrorragia foi descrita em 16 (7,5%) mulheres (9 adultas, 5 adolescentes e 2 meninas). Em adultos, foram observados 1 caso de hemorragia cerebral, 1 caso de hematoma retroperitonial e 1 caso de sangramento de ferida operatória pós-cesariana A prova do laço foi realizada em apenas 47,1% dos casos, com positividade em 17,7% e sem diferença entre as faixas etárias (dados não apresentados nas tabelas).

A plaquetemia foi obtida em 416 casos. A variação do menor valor registrado de plaquetemia foi de 3.000 a 195.000/mm3, com mediana de 25.500 plaquetas/mm3. A mediana da menor plaquetemia registrada em crianças foi de 29.500/mm3; em adolescentes, foi de 25.000/mm3; e em adultos, de 25.000/mm3 (dados não apresentados nas tabelas). Em torno de 90,0% dos casos apresentaram menor plaquetemia, abaixo de 50.000/mm3; esse percentual foi maior nos adolescentes e adultos, em comparação com o mesmo percentual para as crianças (Tabela 3). O estudo focou a menor plaquetemia registrada durante a evolução, considerando-se o critério do Ministério da Saúde. Na maior parte dos casos, foram anotadas diversas dosagens de plaquetas, e não apenas a menor, uma vez que a vigilância foi prospectiva e só seria possível conhecer a menor evolutivamente. Todavia, em 19 casos não havia qualquer registro de plaquetas.

Em 148 casos (34,0%), foram obtidas as dosagens das enzimas hepáticas alanina aminotransferase (ALT) e aspartato aminotransferase (AST). Os valores de ALT variaram de 9 a 3.425 U/l, com média de 138±307,0 e mediana de 79. Não houve diferença significativa entre as faixas etárias. Para a AST, a variação foi de 11 a 6.195 U/l, com média de 240,8±558,9 e mediana de 134, sem diferença significativa entre as faixas etárias.

Entre os casos que tiveram as enzimas hepáticas dosadas, 86,6% apresentaram AST acima do valor normal; e 51,4%, ALT acima do valor normal. Em 86 casos (58,1%), observou-se um aumento igual ou superior ao dobro do valor normal para o método, para pelo menos uma das enzimas (aproximadamente, AST 120 e ALT 150); este fato foi mais frequente para a AST (85 casos) do que para a ALT (31 casos), sendo que em 30 casos, ambas as enzimas apresentaram esse grau de aumento (dados não apresentados nas tabelas).

 

Discussão

O estado do Rio de Janeiro sofreu grande impacto com a epidemia de dengue de 2008, quando predominou o DENV-24.4,7,11,13 No contexto da epidemia de 2008, o HFSE atendeu e notificou 435 pacientes com FHD ou DCC, com 61,1% de confirmação sorológica e taxa de letalidade geral de 1,4% - ou 2,2% se considerados apenas os casos de FHD. A letalidade observada no Estado para as formas graves foi de 1,7%.11 A Organização Mundial da Saúde considera aceitável uma letalidade por FHD de até 1,0%.15

Estudo sobre dengue em crianças de Manaus-AM,16 a partir de notificações no Sinan, observou um aumento significativo na proporção de casos em crianças e nas formas graves da doença, entre 2006 e 2007. A proporção de casos graves (incluindo DCC) em menores 15 anos de idade aumentou significativamente, de 4,0% em 2006 para 11,6% em 2007; neste ano, a letalidade observada em 87 casos de FHD em menores de 15 anos foi de 4,6%. Esse estudo considerou a classificação da forma clínica segundo os critérios da OMS15 e do Ministério da Saúde, qual seja:14 dengue clássico; FHD; síndrome do choque da dengue; e DCC.

Embora crianças tenham maior probabilidade do que adultos para desenvolver choque hipovolêmico em associação a aumento da permeabilidade micro-vascular,17 alguns estudos descrevem letalidade elevada em adultos.18 No presente estudo, todos os óbitos ocorreram em adultos.

Este estudo encontrou diferenças significativas na apresentação clínica dos casos de DCC e FHD segundo as faixas etárias. Os sinais e sintomas gerais mais frequentes foram febre, cefaleia e mialgia, presentes em mais de 50,0% dos casos avaliados, porém com distribuição heterogênea entre as faixas etárias. A febre foi mais frequente nas crianças e adolescentes, enquanto a cefaleia e a mialgia marcaram maior presença nos adultos e adolescentes. Dor abdominal foi significativamente mais comum nas crianças e adolescentes; e exantema, nas crianças.

Uma importante diferença no perfil segundo faixa etária foi o maior percentual de alterações clínicas relacionadas a extravasamento plasmático nas crianças. Quanto às manifestações hemorrágicas, presentes em 62,8% dos pacientes, não houve diferenças significativas entre as faixas etárias. Publicação

recente do Ministério da Saúde sobre a evolução na epidemiologia da dengue no Brasil também relata maior frequência de derrames cavitários na faixa etária até 15 anos.11

Sintomas como febre, artralgia, cefaleia, dor abdominal, mialgia, náuseas/vômitos, têm sido relatados com diversas frequências, por vários autores. Diferenças na área geográfica, raça e sorotipo podem explicar essa variação, assim como possíveis vieses de aferição, sobretudo porque vários estudos têm sido retrospectivos. A distribuição homogênea segundo o sexo tem sido comumente descrita, o que é consistente com o presente estudo.16,19

De uma forma geral, a literatura relata maior frequência de cefaleia, dor retro-orbitrária, artralgia e mialgia em adultos do que em crianças.18-21 Dois artigos19,21 abordaram especificamente as diferenças do perfil clínico segundo faixa etária. Neles, foram relatados os seguintes percentuais de sintomas: de cefaleia em adultos, da ordem de 83,619 a 32,5%,21 e em crianças, de 50,619 a 18,2%;21 de mialgia em adultos, de 67,319 a 28,1%,21 e em crianças, de 39,419 a 9,1%;21 de artralgia em adultos, de 36,419 a 44,6%,21 e em crianças, de 20,319 a 20,2%;21 e percentual de dor retro-orbitária, de 29,1%19 em adultos e de 8,7%21 em crianças.

O estudo da Tailândia,17 sobre 286 casos confirmados e atendidos em um hospital, comparou crianças menores de 15 anos e adultos com dengue no período 2003-2004 e encontrou 94,7% dos casos estudados como FHD. Achados do estudo tailandês, semelhantes aos do estudo aqui relatado, foram as maiores frequências de cefaleia, mialgia, artralgia e dor retro-orbitária nos adultos, frente às crianças. Entretanto, o mesmo estudo da Tailândia relatou percentuais maiores de náuseas/vômitos nos adultos, enquanto no HFSE, náuseas foram mais comuns nos adultos; e vômitos, mais frequentes nas crianças; seus autores também relataram maior frequência de dor abdominal (em torno de 65,0% dos casos, sem diferenças entre faixas etárias) do que a encontrada nos pacientes do HFSE, onde, além de menor, o sintoma predominou nas crianças. Estudo realizado em Taiwan21 também encontrou maior percentual de dor abdominal em adultos do que em crianças: 33,5 versus 14,5%, respectivamente.

Apesar do presente estudo não ter encontrado diferenças significativas nas manifestações hemorrágicas segundo faixa etária, alguns autores têm relatado maior frequência de petéquias18,20-22 e sangramento digestivo em adultos,18-22 além de associação de epistaxe a crianças.19,20,22 O relato de sangramento digestivo varia, em adultos, de 34,519 a 10,2%;21 e em crianças, de 13,019 a 0,0%.21 Outro estudo tailandês relatou 54,5% de petéquias em adultos versus 39,0% em crianças; e 27,7% de epistaxe nas crianças versus 14,5% nos adultos.19

À exceção do percentual de petéquias em crianças, semelhante ao nosso, os demais percentuais de manifestações hemorrágicas foram maiores no estudo tailandês,19 o qual encontrou hemoconcentração mais frequente em adultos; no HFSE, hemoconcentração e outros sinais de extravasamento plasmático foram mais frequentes nas crianças.

Estudo de 104 crianças no Sri Lanka,18 na epidemia de 2004, envolveu 18 casos de dengue clássico e 86 de FHD. Nos casos de FHD, foram observados os seguintes sinais/sintomas: vômito em 77,0%; cefaleia em 72,0%; diarreia em 19,0%; petéquias em 16,0%; derrame pleural em 81,0%; ascite em 45,0%; hipotensão em 35,0%; hematêmese em 15,0%; epistaxe em 4,0%; alterações neurológicas em 5,6%; e plaquetemia abaixo de 50.000/mm3 em 81,0%. A frequência de derrames cavitários e de hipotensão encontrada pelo estudo do Sri Lanka foi bem superior à observada e relatada no presente estudo; já os percentuais de plaquetemia abaixo de 50.000/mm3, bem como os de sangramento digestivo, foram semelhantes. Porém, a frequência de petéquias e epistaxe no Sri Lanka foi menor do que nas crianças incluídas no presente estudo. Na série do Sri Lanka, o sorotipo predominante era o DENV-3; e não houve mortes.

No presente estudo, foram observados percentuais mais elevados de menor plaquetemia - abaixo de 50.000/mm3 - em adolescentes e adultos do que em crianças. Outro estudo brasileiro7 relatou percentuais menores do que os encontrados por estes autores para casos de dengue com complicações, embora com uma tendência a menor percentual nas crianças: para o mesmo ano de 2008, aquele estudo7 relatou um percentual de DCC de 58,7% em pacientes com 15 anos ou mais versus o percentual correspondente de 50,3% em menores de 15 anos de idade.

Alterações de sistema nervoso central foram descritas em 4,0% dos casos de dengue de uma série prospectiva de 201 crianças menores de 18 meses no Vietnam, entre 2004 e 2007,23 e em 5,6% das 104 crianças do estudo no Sri Lanka,18 de forma consistente com os achados apresentados aqui.

Alterações hepáticas, incluindo hepatomegalia, aumento das enzimas hepáticas, hepatite fulminante e encefalopatia, já foram descritas tanto em casos de dengue clássica como em casos de dengue hemorrágica. Vários estudos realizados em crianças documentaram alterações hepáticas na dengue.24-26 Dengue foi uma importante causa de insuficiência hepática aguda em crianças tailandesas.26 Alterações nas enzimas hepáticas aspartato aminotransferase - AST - e alanina aminotransferase - ALT - têm sido descritas em adultos e crianças, e para a maioria dos autores, predominaram alterações de AST em relação a ALT; apenas um autor referiu maiores alterações de ALT.27 A literatura tem mostrado maior frequência de alterações em FHD, com variação de 63,4 a 97,7% para AST e de 37,3 a 70,8% para ALT.18,27-30 Em dengue clássico, o estudo do Sri Lanka relatou 28,0% de alteração de AST e 22,0% de alteração de ALT.18

Entre as limitações do presente estudo, encontram-se a seleção da amostra baseada em um único hospital e a utilização de confirmação clínico-epidemiológica em 38,9% dos casos. Ressalta-se, entretanto, que se trata de critério admitido para período epidêmico, no qual a prevalência elevada aumenta o valor preditivo positivo. Sinais e sintomas foram registrados a partir do sistema de vigilância epidemiológica do hospital, que é baseado em busca ativa, embora, eventualmente, alguns casos fossem resgatados a partir de revisão de prontuários. Algumas inconsistências encontradas na literatura podem estar relacionadas a problemas de qualidade de informação entre os diversos estudos, sobretudo quando se considera a natural sobrecarga de demanda do período epidêmico, diferenças nas faixas etárias consideradas e diferenças na distribuição das formas clínicas.

As manifestações hemorrágicas não diferiram segundo faixa etária. Todavia, em comparação com os adultos, o quadro clínico da dengue grave nas crianças evoluiu para um maior percentual de dor abdominal, vômitos, exantema e, principalmente, alterações clínicas relacionadas a extravasamento plasmático. Estes achados devem ser considerados na discussão das rotinas de atendimento à doença.

Por fim, destaca-se a contribuição da vigilância epidemiológica no nível hospitalar para o maior conhecimento sobre a doença e orientação das ações de controle e planejamento, inclusive da assistência, além da relevância do uso dos dados do Sistema de Informação de Agravos de Notificação - Sinan - no nível hospitalar. Novos estudos sobre a história natural da doença em diferentes faixas etárias podem contribuir para o aprimoramento das diretrizes de ação e adequado manejo dos casos.

 

Agradecimentos

Os autores agradecem à equipe do Serviço de Epidemiologia do Hospital Federal dos Servidores do Estado do Rio de Janeiro, sem a qual seria impossível a realização do estudo.

 

Contribuição dos autores

Escosteguy CC contribuiu na concepção do desenho e coordenação do estudo; revisão da coleta de dados; análise e interpretação dos dados; redação e revisão crítica, incluindo aprovação da versão final.

Pereira AGL contribuiu na revisão do banco de dados, coleta de dados, análise dos dados e revisão crítica, incluindo aprovação da versão final

Medronho RA contribuiu no desenho do projeto, análise dos dados e revisão crítica, incluindo aprovação da versão final

Rodrigues CS contribuiu na coleta de dados, análise dos dados, redação dos resultados e aprovação da versão final.

Chagas KKF contribuiu na coleta de dados, análise dos dados, redação dos resultados e aprovação da versão final.

 

Referências

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Endereço para correspondência:
Claudia Caminha Escosteguy -
Hospital Federal dos Servidores do Estado,
Serviço de Epidemiologia, Rua Sacadura Cabral, 178,
2° andar, Anexo ao Gabinete da Direção Geral Saúde,
Rio de Janeiro-RJ, Brasil.
CEP. 20221-903
E-mail: cescosteguy@hse.rj.saude.gov.br

Recebido em 03/08/2012
Aprovado em 03/12/2012

 

 

*Apoio financeiro: Bolsa de Iniciação Científica da Fundação Carlos Chagas Filho de Amparo à Pesquisa do Estado do Rio de Janeiro - FAPERJ - e da Universidade Estácio de Sá.