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Epidemiologia e Serviços de Saúde
versión impresa ISSN 1679-4974versión On-line ISSN 2237-9622
Epidemiol. Serv. Saúde v.22 n.3 Brasília sep. 2013
http://dx.doi.org/10.5123/S1679-49742013000300003
ARTIGO ORIGINAL
Avaliação do impacto da Lei Maria da Penha sobre a mortalidade de mulheres por agressões no Brasil, 2001-2011
Impact of Maria da Penha Law on female mortality due to aggression in Brazil, 2001-2011
Leila Posenato GarciaI; Lúcia Rolim Santana de FreitasII; Doroteia Aparecida HöfelmannIII
IInstituto de Pesquisa Econômica Aplicada, Brasília-DF, Brasil
IIPrograma de Pós-Graduação em Medicina Tropical, Faculdade de Medicina, Universidade de Brasília, Brasília-DF, Brasil
IIISecretaria de Vigilância em Saúde, Ministério da Saúde, Brasília-DF, Brasil
RESUMO
OBJETIVO: avaliar o impacto da Lei Maria da Penha sobre a mortalidade de mulheres por agressões no Brasil.
MÉTODOS: foi realizado estudo de séries temporais, de tipo antes e depois, com dados do período 2001-2011; foi realizada correção do número de óbitos mediante redistribuição proporcional daqueles com intenção indeterminada; foram calculadas taxas de mortalidade corrigidas por 100 mil mulheres e utilizado o processo Autorregressivo Integrado de Médias Móveis(ARIMA).
RESULTADOS: foram estimados 54.107 óbitos de mulheres por agressões, no período estudado; as taxas de mortalidade corrigidas foram de 5,28 e 5,22 por 100 mil mulheres, nos períodos antes (2001-2006) e após (2007-2011) a vigência da Lei, respectivamente; comparando-se esses períodos, não houve redução das taxas anuais de mortalidade de mulheres por agressões (p=0,846).
CONCLUSÃO: a Lei, que criou mecanismos para coibir a violência doméstica e familiar contra a mulher, não apresentou impacto sobre a mortalidade de mulheres por agressões no Brasil.
Palavras-chave: Distribuição Temporal; Mortalidade; Estudos Ecológicos; Violência contra a Mulher; Saúde da Mulher.
ABSTRACT
OBJECTIVE: to evaluate the impact of the 'Maria da Penha' Law on the female mortality due to aggression in Brazil.
METHODS: a time series study with before-and-after design was conducted with data from the period 2001-2011. The number of deaths was corrected through proportional redistribution of the events of undetermined intent. Corrected mortality rates were calculated, and the Autoregressive Integrated Moving Average (ARMA) process was used.
RESULTS: 54,107 deaths of women due to aggression were estimated in the study period. The corrected mortality rates were 5.28 and 5.22 per 100,000 women in the periods 2001-2006 and 2007-2011, respectively. Comparing the periods before and after the enactment of the law (2006), there was no reduction in annual female mortality rates due to aggression (p=0.846).
CONCLUSION: the Law that created mechanisms to prevent domestic and family violence against women had no impact on the female mortality due to aggression.
Key words: Temporal Distribution; Mortality; Ecological Studies; Violence Against Women; Women's Health.
Introdução
A violência contra a mulher foi definida como qualquer ato de violência de gênero que resulta, ou pode resultar, em dano físico, sexual ou psicológico, ou sofrimento para a mulher, segundo a Declaração para a Eliminação da Violência contra a Mulher, aprovada na Assembleia Geral das Nações Unidas de 1993.1
Esse tipo de violência não é apenas uma manifestação da desigualdade de gênero, ele contribui para a manutenção do desequilíbrio de poder entre homens e mulheres. Em alguns casos, os perpetradores, conscientemente, usam a violência como mecanismo de subordinação. É bastante frequente que as mulheres não reajam a essas situações por medo de represálias do violentador ou humilhação diante da sociedade, pela violência sofrida. A situação desigual das mulheres reforça sua vulnerabilidade à violência, o que, por sua vez, alimenta a violência perpetrada contra elas.2
Trata-se de um problema de Saúde Pública de grande magnitude no mundo. Estudo conduzido pela Organização Mundial da Saúde (OMS) estimou, por meio de revisão sistemática da literatura, que a prevalência global de violência física e/ou sexual cometida por parceiro íntimo foi de 30,0% (IC95%:27,8% a 32,2%).3
A expressão máxima da violência contra a mulher é o óbito. Todavia, o risco de morte por violência é maior entre os homens e decorre, principalmente, de atividades relacionadas ao crime e a conflitos armados. As mulheres têm maior risco de sofrer violências infligidas por pessoas próximas.4 Ademais, a violência física e sexual contra as mulheres gera enormes custos econômicos e sociais,e também pode resultar em graves consequências sobre sua saúde mental e reprodutiva, afetando inclusive os filhos.3
No Brasil, em 7 de agosto de 2006, foi sancionada a Lei no 11.340, conhecida como Lei Maria da Penha, criou mecanismos para coibir a violência doméstica e familiar contra a mulher.5 Entre esses mecanismos, destacam-se medidas integradas de prevenção, como a implementação do atendimento policial especializado, em particular nas Delegacias de Atendimento à Mulher (DEAM), e a promoção e realização de campanhas educativas de prevenção da violência contra a mulher. A Lei Maria da Penha prevê, ainda, medidas de assistência à mulher em situação de violência doméstica e familiar, assim como medidas protetoras de urgência, aplicadas ao agressor.5 Todavia, não foram encontrados estudos que tenham avaliado o impacto dessa Lei sobre a mortalidade de mulheres por agressões, a despeito de sua relevância. Estudo ecológico sobre a mortalidade feminina por agressões, realizado no período de 2003 a 2007, revelou coeficiente padronizado de 4,1 óbitos por 100 mil mulheres no País.6
O presente estudo tem como objetivo avaliar o impacto da Lei Maria da Penha sobre a mortalidade de mulheres por agressões no Brasil.
Métodos
Foi realizado estudo ecológico de séries temporais no período 2001-2011, com desenho de tipo antes e depois. Os dados foram obtidos a partir do Sistema de Informações sobre Mortalidade (SIM), atualizado em maio de 2013. Foram considerados os óbitos de mulheres de todas as idades, ocorridos no Brasil entre 1o de janeiro de 2001 e 31 de dezembro de 2011, por causas externas, referentes aos códigos do Capítulo XX da 10a Revisão da Classificação Estatística Internacional de Doenças e Problemas Relacionados à Saúde (CID-10).
Inicialmente, foi calculada a mortalidade proporcional dos óbitos por causas violentas, incluindo os seguintes grupos de causas: outras causas externas de traumatismos acidentais (W00-X59); lesões autoprovocadas intencionalmente (X60-X84); agressões (X85-Y09); e eventos cuja intenção é indeterminada (Y10-Y34). Os óbitos por intervenções legais e operações de guerra (Y35-Y36) não foram considerados.
Para estimação do número de óbitos de mulheres por agressões, foi realizada a correção para sub-registro, com redistribuição proporcional dos eventos cuja intenção é indeterminada em relação às demais causas externas de traumatismos acidentais, lesões autoprovocadas intencionalmente e agressões. A correção foi realizada visando reduzir a subestimação do número de óbitos por agressões, decorrente da elevada participação dos eventos cuja intenção é indeterminada em relação ao total de óbitos por causas violentas. Essa estratégia de correção foi adotada com base em estudos que detectaram poucas alterações na distribuição proporcional dos óbitos de mulheres após a investigação dos óbitos classificados como eventos de intenção indeterminada.7,8
A taxa corrigida de mortalidade por agressões foi calculada dividindo-se o número corrigido de óbitos de residentes em dado local e período pela população do mesmo local e período, multiplicando-se por 100 mil. O tamanho da população residente empregado como denominador foi proveniente do Censo Demográfico 2010 e das projeções intercensitárias (2001 a 2009 e 2011) produzidas pela Fundação Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) e disponibilizadas pelo Departamento de Informática do Sistema Único de Saúde (Datasus).
As causas dos óbitos de mulheres por agressões foram classificadas da seguinte maneira, segundo os códigos da CID-10: lesão por arma de fogo (X93-X95), por instrumento perfurante, cortante ou contundente (X99, Y00), por enforcamento (X91), por maus tratos (Y04-Y07), outros (X85-X90, X92, X96, Y01-Y03, X97-X98) e não especificada (Y08-Y09).
As variáveis consideradas no estudo foram: idade (<10, 10 a 19, 20 a 29, 30 a 39, 40 a 49, 50 a 59, 60 a 69, 70 e mais anos); cor da pele (branca, preta, amarela, parda, indígena); causa do óbito; porte do município de residência; macrorregião de residência (Norte, Nordeste, Sudeste, Sul, Centro-Oeste); local (hospital ou outro estabelecimento de saúde, domicílio, via pública, outros); dia da semana; e ano de ocorrência do óbito.
A categorização dos municípios segundo porte seguiu o padrão de escala adotado pelo IBGE: pequeno porte 1 (municípios com até 20.000 habitantes); pequeno porte 2 (municípios com 20.001 a 50.000 habitantes); médio porte (municípios com 50.001 a 100.000 habitantes); grande porte (municípios com 100.001 a 900.000 habitantes); e metrópoles (municípios com mais de 900.000 habitantes).
Para ajustar o modelo da série temporal, foi empregado o método de Box e Jenkins,9 composto pelas etapas de identificação, estimação e diagnóstico de um processo temporal. O processo Autorregressivo Integrado e de Média Móvel (ARIMA) foi, então, utilizado para modelar a taxa corrigida de mortalidade.10
A análise de intervenção11 foi empregada para avaliar o impacto da vigência da Lei Maria da Penha (LMP) no comportamento da série temporal da taxa corrigida de mortalidade. Para isso, foi empregado o método introduzido por Box e Tiao,12 partindo da hipótese de que a intervenção afeta o processo, alterando a função média ou tendência de uma série temporal. Nesse caso, o efeito da intervenção é permanente após 2006, quando passa a vigorar a LMP.
Para testar o impacto da intervenção, foi criada uma variável binária (codificada como 'zero' para os anos 2001-2006 e como 'um' para os anos 2007-2011) . Uma estimativa negativa e estatisticamente significativa para o efeito dessa variável concordaria com a hipótese de impacto protetor da intervenção avaliada - a LMP-, desde que mantidas todas as demais condições fixas. A adequação do modelo foi verificada por meio dos resíduos padronizados, da função de autocorrelação e dos p-valores do teste de Ljung-Box, para verificar a independência dos resíduos.13,14
As análises foram realizadas com auxílio dos pacotes estatísticos Stata versão 10 e R versão 2.13.0.
O presente estudo foi realizado exclusivamente com dados do Sistema de Informações sobre Mortalidade - SIM -, de acesso público, sem identificação dos sujeitos e na observância dos princípios da ética na pesquisa envolvendo seres humanos, de modo que foi dispensada a apreciação por comitê de ética.
Resultados
No período 2001-2011, foram registrados no SIM 44.231 óbitos de mulheres por agressões, o que corresponde a 28,6% do total de óbitos por causas violentas (n=154.918). Desse total, 18,2% foram classificados como eventos cuja intenção é indeterminada. A distribuição proporcional dos óbitos por causas violentas, segundo grupos de causas, está apresentada na Figura 1.
Para correção do número de óbitos de mulheres por agressões, foram somados 9.876 óbitos, correspondentes à redistribuição proporcional dos óbitos classificados por eventos cuja intenção é indeterminada, totalizando 54.107 óbitos. Após a correção, estima-se que ocorreram por dia, em média, 13,5 óbitos de mulheres por agressões no Brasil.
Os óbitos se concentraram na faixa etária de 20 a 39 anos (52,5%), entre mulheres de cor da pele parda (47,5%) e branca (44,2%) e com baixa escolaridade (45,4% com até 7 anos de estudo, destacando-se que houve 36,6% de falta de informação para esta variável). Taxas de mortalidade mais elevadas foram observadas em metrópoles e municípios de grande porte (respectivamente, 6,22 e 5,84 óbitos por 100 mil mulheres). Mais de um terço dos óbitos ocorreu durante os finais de semana (35,5%). As principais causas foram lesão por arma de fogo (52,0%) e lesão por instrumento perfurante, cortante ou contundente (30,0%), seguidas por enforcamento (5,7%). Quanto ao local de ocorrência do óbito, a distribuição foi homogênea entre hospital ou outro estabelecimento de saúde (30,7%), via pública (27,7%) e domicílio (27,0%). As regiões que apresentaram taxas mais elevadas de mortalidade feminina por agressões foram o Centro-Oeste e o Sudeste: respectivamente, 5,96 e 5,87 óbitos por 100 mil mulheres(Tabela 1).
A Figura 2 ilustra a distribuição dos óbitos ocorridos no período do estudo, segundo dias da semana. A mediana do número de óbitos foi de 955 aos domingos, 791 aos sábados e 697 às segundas-feiras.
A Figura 3 mostra a taxa corrigida de mortalidade de mulheres por agressões. No período 2001-2006, as taxas apresentaram pouca variação, entre 5,46 e 5,02 óbitos por 100 mil mulheres. No ano de 2007, após a vigência da LMP, houve pequena redução nessa taxa, para 4,74 óbitos por 100 mil mulheres. Nos anos seguintes, as taxas de mortalidade de mulheres por agressões retornaram a valores próximos àqueles do período anterior à vigência da LMP.
A média mensal do número de óbitos de mulheres por agressões não apresentou diferenças, quando se comparam os períodos antes (2001-2006) e após (2007-2011) a vigência da LMP (Figura 4).
Utilizando-se o modelo ARIMA, a estimativa do parâmetro resultou sem significância estatística: p-valor=0,846. Este resultado indica que as taxas de mortalidade de mulheres por agressões não apresentaram mudanças estatisticamente significativas após a intervenção da LMP. A análise de resíduos indicou adequação do modelo ARIMA (função de autocorrelação com ausência de correlação não nula e p-valores para testes de independência dos resíduos >40%).
Discussão
Comparando-se os períodos antes e após a vigência da Lei Maria da Penha, não foi observada redução nas taxas de mortalidade de mulheres por agressões. Apesar de as taxas terem sido pouco menores em 2006 e 2007, anos próximos ao momento no qual a LMP entrou em vigor, nos períodos seguintes, elas retornaram aos patamares anteriores.
Diversas hipóteses podem explicar a ausência de impacto da LMP sobre a mortalidade de mulheres por agressões. No âmbito do presente estudo, não é conhecido se as vítimas ou agressores em potencial tinham informação sobre a Lei. Tampouco sabe-se se as medidas previstas na LMP promoveram inibição dos agressores, de modo a evitar a ocorrência ou recorrência de atos de violência contra a mulher. O efeito da ampla divulgação da LMP, à época quando esta foi sancionada e entrou em vigor, pode explicar a pequena redução nas taxas de mortalidade calculadas para os anos de 2006 e 2007. Experiências têm demonstrado repetidamente: sem esforços contínuos para mudar a cultura e a prática institucional, a maior parte das reformas legais e políticas tem pouco efeito.15
Entre as medidas voltadas à prevenção da violência doméstica e familiar previstas na LMP, destaca-se a proteção de urgência. Em relação ao agressor, estão previstas a suspensão da posse ou restrição do porte de armas, o afastamento do lar, e a proibição de aproximação da ofendida. Em relação à ofendida, estão previstos o encaminhamento a programa de proteção, a recondução ao domicílio após afastamento do agressor, o afastamento do lar e a separação de corpos. Outra medida relevante é a implementação de atendimento policial especializado para as mulheres, em particular nas Delegacias de Atendimento à Mulher - DEAM.5
O número de serviços especializados de atendimento para a mulher vítima de violência no Brasil cresceu substancialmente após a vigência da LMP. Segundo a Secretaria de Políticas para as Mulheres (SPM), da Presidência da República, em 2003, havia 248 DEAM no Brasil. Em 2012, já eram 384 DEAM, 220 Centros de Referência de Atendimento à Mulher, 122 Núcleos de Atendimento à Mulher em delegacias comuns, 72 Casas Abrigo, 45 Juizados de Violência Doméstica e Familiar Contra a Mulher, 48 Varas Adaptadas de Violência Doméstica e Familiar, 29 Promotorias Especializadas ou Núcleos de Gênero do Ministério Público e 56 Núcleos ou Defensorias Especializados, totalizando 974 serviços, presentes em todas as Unidades da Federação (dados fornecidos mediante solicitação ao Serviço de Atendimento ao Cidadão da SPM, sem referência).
Outra hipótese a ser levantada para explicar o fato de que não houve redução da mortalidade de mulheres por agressões é que o grau de implantação das medidas previstas na LMP pode ter sido insuficiente. Também podem existir falhas no processo, em diferentes instâncias e sob a responsabilidade das diversas instituições mencionadas na LMP, como o Poder Judiciário, o Ministério Público, a Defensoria Pública, as Polícias Civil e Militar, a Guarda Municipal e o Corpo de Bombeiros. A qualidade do serviço oferecido às vítimas é um aspecto importante, posto que frequentemente, os profissionais - incluindo aqueles envolvidos no sistema legal - compartilham os mesmos preconceitos predominantes na sociedade.15
Ao analisar os depoimentos acerca da LMP em uma amostra de mulheres vitimadas e profissionais que atendiam a casos de violência de gênero em Porto Alegre, Rio Grande do Sul, Meneghel e colaboradores16 observaram que o dispositivo legal foi avaliado como um recurso importante no enfrentamento às violências, condizente com as convenções internacionais. Os entrevistados consideraram que a LMP trouxe inovações e maior acesso das mulheres ao Poder Judiciário, embora se destacasse, entre suas observações, a ineficiência na aplicação das medidas de proteção, a falta de recursos materiais e humanos, além da fragmentação da rede de atenção e o movimento de setores conservadores da sociedade para enfraquecer a LMP.16 Ademais, a ausência de punição ou a aplicação de medidas punitivas leves, assim como a demora do Judiciário em julgar os assassinos de mulheres, podem gerar uma sensação de impunidade, de modo que os agressores não se sintam inibidos a realizar ações violentas.
Estudo realizado nos Estados Unidos da América (EUA),17 com dados da Pesquisa Nacional sobre Vitimização e Crime, que incluiu mais de meio milhão de domicílios, sobre o período de 1992 a 1998, sugeriu que a ocorrência de violência doméstica foi menor nos Estados que dispunham de leis de apreensão das armas de fogo, tomadas ao agressor quando houvesse condenação por violência doméstica, além da obrigatoriedade de emissão de mandato de prisão para os perpetradores de violência doméstica. Nos Estados norte americanos onde os juízes tinham mais opções de sanções a aplicar aos agressores, a ocorrência de violência contra a mulher também foi menor.18
Estudo de revisão sistemática sobre intervenções visando à prevenção da violência contra a mulher revelou que, até 2002, não havia evidências com suficiente força e qualidade para avaliar a efetividade da proteção às mulheres em abrigos e a consequente redução da violência.19 Segundo o mesmo estudo, são fracas as evidências de que as mulheres que participaram de um programa específico com serviços de aconselhamento relatassem diminuição da ocorrência de abuso e aumento da qualidade de vida. Os benefícios de outras estratégias de intervenção voltadas para homens e mulheres não se mostraram tão claros, principalmente devido à falta de adequação do desenho de pesquisa para a aferição dos desfechos. Na maioria dos estudos revisados, os danos potenciais das intervenções não foram avaliados.19
Todavia há estudos que sugerem a existência de danos potenciais, uma vez que a adoção de medidas que desagradam aos agressores pode aumentar a ocorrência de violência futura. Por exemplo, a proteção às mulheres em abrigos, assim como a prisão temporária do agressor, não garantem proteção à vítima e ainda podem aumentar o risco de reincidência do abuso, como alguma forma de represália do agressor à reação da vítima.17 Estudo com dados da Pesquisa Nacional sobre Vitimização e Crime nos EUA encontrou evidências de que pais violentos podem promover retaliações, se perderem a guarda dos filhos.18
Estudo sobre as tendências dos homicídios de parceiros íntimos no Canadá, no período 1976-2001, revelou declínio nas taxas desse tipo de morte20 após mudanças nas leis relacionadas à violência doméstica,e aumento dos recursos sociais e legais destinados a dar resposta a esse tipo de violência. O estudo encontrou, ainda, associação negativa entre proporção de homens com escolaridade baixa e mortalidade de mulheres por violência.20
O perfil dos óbitos de mulheres no presente estudo é compatível com aquele dos casos de violência contra mulher notificados no Sistema de Vigilância de Violências e Acidentes (VIVA). Em 2008, 47,0% das mulheres vítimas eram brancas, seguidas pelas pardas (36,1%) e pretas (8,2%). A maior parte das mulheres vítimas de violência era jovem (51,2% na idade 20-39 anos).21 A ocorrência de mais de um terço dos óbitos aos finais de semana também coincide com o perfil dos casos de violência notificados no VIVA.21 Entre os aspectos que podem estar relacionados à maior ocorrência de óbitos de mulheres por agressões aos finais de semana - a exemplo do que ocorre com outros tipos de violência -, pode estar o maior uso de bebidas alcoólicas nesses dias.15
As agressões por armas de fogo representaram a principal causa de morte entre os óbitos investigados no presente estudo, seguidas por instrumento perfurante, cortante ou contundente e enforcamento. Similarmente, nos EUA, as armas de fogo se constituíram nos instrumentos mais comumente empregados em homicídios de parceiro íntimo. Na Inglaterra e no País de Gales, os instrumentos cortantes foram os mais comumente usados, embora a estrangulação também fosse frequente.22
A distribuição dos óbitos investigados segundo local de ocorrência foi similar àquela observada por Meneghel e Hirakata, paritariamente distribuída entre estabelecimentos de saúde, domicílio e via pública. O estudo sobre feminicídios no Brasil, baseado no período 2003-2007, também destacou o domicílio como importante local de ocorrência de morte de mulheres por agressões.6 O fato de a via pública se destacar como local de ocorrência dos homicídios femininos pode refletir uma maior exposição feminina à agressão ao sair acompanhada do parceiro. Estudo nos EUA demonstrou associação positiva entre a mulher sair à noite e a agressão pelo parceiro.18
Existem importantes diferenciais de gênero na mortalidade por agressões. Apesar de a mortalidade masculina ser bastante superior à feminina, em decorrência dos modelos culturais de masculinidade,23 os óbitos entre mulheres ocorrem principalmente no ambiente familiar, à causa de agressão perpetrada por conhecidos. Dados do VIVA indicaram 75,9% dos agressores de mulheres vítimas de violência como familiares e conhecidos. Aproximadamente, 39,7% das mulheres indicaram ter sofrido violência de repetição, enquanto entre os homens, esse percentual foi de 26,3%.24
No presente estudo, os óbitos por agressões foram utilizados como proxy dos óbitos decorrentes de violência doméstica e familiar contra a mulher, alvo das medidas previstas na LMP. Essa abordagem foi utilizada em estudo prévio.6 Os óbitos por agressões foram selecionados a partir dos códigos das causas básicas existentes na CID-10, não sendo possível definir se foram causados por violência contra a mulher. Todavia, o prejuízo à validade deste estudo é minimizado pelo fato de que provavelmente, óbitos por outros tipos de violência seriam incluídos de maneira não diferencial, tanto no período anterior como após a vigência da LMP.
A tendência temporal dos óbitos por violências pode ser afetada pela qualidade do SIM e, especialmente, pelo volume dos registros cuja causa básica está classificada como evento cuja intenção é indeterminada.24 Visando corrigir a provável subnotificação da mortalidade, no presente estudo, foi realizada correção do número de óbitos de mulheres por agressões mediante redistribuição proporcional dos eventos cuja intenção é indeterminada. Outra limitação está relacionada à existência de diferenças na qualidade da informação sobre mortalidade entre as grandes regiões do país.24 A técnica de correção empregada aqui pode ter resultado em superestimação dos óbitos por agressões nos locais onde o registro dos óbitos por essas causas é de melhor qualidade e, por sua vez, em subestimação nos locais onde o registro é de pior qualidade. Além disso, a melhoria na cobertura e na qualidade do SIM durante o período do estudo, resultando em maior captação dos óbitos por violência no final do mesmo período, pode ter subestimado o impacto analisado.24 Para reduzir o efeito dessas possíveis limitações, na análise de impacto,foram utilizadas as taxas corrigidas para o país como um todo, consideradas mais consistentes.
É importante salientar que o presente estudo investigou apenas os óbitos. A violência contra a mulher compreende uma ampla gama de atos, desde a agressão verbal e outras formas de abuso emocional até a violência física ou sexual. No extremo do espectro está o feminicídio, a morte intencional de uma mulher. O feminicídio é geralmente perpetrado por homens e difere do homicídio de homens em diversos aspectos. Por exemplo, a maioria dos casos de feminicídio são cometidos por parceiros ou ex-parceiros, e envolvem situações de abuso doméstico, ameaças ou intimidação, violência sexual ou situações nas quais a mulher tem menos poder ou menos recursos do que seu parceiro.
A obtenção de informações acuradas sobre feminicídio é um desafio. Na maioria dos países, os sistemas de informação sobre mortalidade não documentam a relação entre vítima e perpetrador, ou os motivos do homicídio.3 Não obstante, revisão sistemática da literatura mostrou que aproximadamente 40% de todos os homicídios de mulheres no mundo são cometidos por um parceiro íntimo. Em contraste, essa proporção é próxima a 6% entre os homens assassinados. As estimativas são conservadoras, devido a importante falta de informação. Consistentemente, entre os 66 países dos quais foram obtidos dados, o principal risco de homicídio entre mulheres é de ser cometido por um parceiro íntimo.25 Ademais, as mulheres que matam seus parceiros íntimos geralmente agem em autodefesa, ou seja, também são vítimas que reagem a situações de ameaça e intimidação.26
Os óbitos de mulheres por agressões podem ser comparados à "ponta do iceberg". O "lado submerso do iceberg" esconde um mundo de violências não declaradas, especialmente a violência rotineira contra mulheres no espaço do lar. Essa violência tende a ser tratada como natural, ou mesmo considerada aceitável em algumas circunstâncias, devido a relações assimétricas de gênero em que a mulher ocupa posição inferior.27 No presente estudo, a ocorrência de manifestações não fatais da violência contra a mulher não foi investigada mas é reconhecível que a magnitude das diversas formas de violência contra a mulher seja elevada.3
O estudo do Canadá demonstrou:20 à medida que a desigualdade nos níveis de emprego entre homens e mulheres diminuiu, a taxa de mortalidade de mulheres por violência doméstica declinou. O achado fornece suporte ao argumento da equidade de gênero, pois, à medida que as mulheres se tornam mais independentes financeiramente, somam condições para deixar uma relação mais violenta ou tornarem-se mais seletivas em seus relacionamentos, reduzindo o risco potencial de serem vítimas da violência de um parceiro homem. Ademais, à medida que aumentava a proporção de homens com diploma universitário, a taxa de mortalidade de mulheres por violência doméstica diminuía. Os autores supõem que o aumento dos níveis de escolaridade para homens e mulheres estejam associados ao acesso a melhores empregos e rendas mais altas e, portanto, mais oportunidades para saírem de relações violentas. Em relação à escolaridade masculina, é possível que homens com maior escolaridade tenham um melhor entendimento dos papéis da mulher na sociedade, entendimento que se traduz em atitudes menos tradicionais e conservadoras, mais liberais em relação aos papéis de gênero, resultando em menos conflitos domésticos. Entretanto, essas questões precisam ser mais profundamente estudadas.
No Brasil, as desigualdades de gênero são marcantes. A população feminina brasileira é jovem, com baixa escolaridade e baixa renda. Em 2010, 63,8% das mulheres se encontravam em idade fértil (10-49 anos), e mais de 7 milhões de mulheres com 10 anos ou mais de idade (8,5%) não eram capazes de ler ou escrever um simples bilhete. O rendimento médio total das mulheres com 10 anos ou mais de idade no Brasil, então, era pouco superior ao salário mínimo vigente e bastante inferior ao rendimento médio total dos homens.28
Esforços para prevenir a violência devem ser integrados a políticas sociais e educacionais para, desse modo, reduzir as desigualdades sociais e de gênero, que representam o mais importante fator de risco entre os diversos tipos de violência. Somente com uma série de intervenções, incluindo reformas legais, fortalecimento dos serviços de proteção social, educação e direito, as desigualdades poderão ser reduzidas.15
É necessário ter consciência de que a violência contra a mulher é um problema de Saúde Pública.25 Além das consequências físicas das agressões, as mulheres vítimas de violência têm maior risco de desenvolver depressão e aborto, o que faz com que os profissionais de saúde sejam o primeiro contato das sobreviventes de violências.25 Estudo realizado em dois hospitais públicos do Rio de Janeiro-RJ evidenciou que o setor de emergência é a porta de entrada mais comum da mulher vítima de violência no sistema de saúde e, na maioria das vezes, também seu único contato com esse sistema. O mesmo estudo revelou que, geralmente, não há acompanhamento posterior e não é feito o registro da ocorrência.29 Os óbitos de mulheres por agressões são geralmente o desfecho final de uma sequência de atos violentos perpetrados contra elas. Os serviços de saúde, de segurança pública e de justiça, muitas vezes falham em fornecer respostas adequadas às situações de violência doméstica e familiar.
Os serviços de saúde deveriam ter um papel maior na resposta à violência contra a mulher. É fundamental melhorar a detecção dos casos de violência e a resposta a essas situações, incluindo a avaliação da severidade da violência e o risco de morte potencial entre mulheres vítimas de violência doméstica. A Organização Mundial da Saúde - OMS - publicou, em 2013, um guia para orientar os serviços de saúde na resposta às situações de violência contra a mulher.30 O guia traz orientações baseadas em evidências e reforça a necessidade de notificação dos casos de violência doméstica,como um procedimento obrigatório. Nesse sentido, os serviços de saúde devem-se integrar a um serviço social mais amplo, apoiando a ação dos agentes da Segurança Pública e da Justiça.
Considerando-se que não houve redução da mortalidade de mulheres por agressões após a vigência da LMP, é recomendável a realização de estudos visando a elucidar os fatores que contribuíram para esse resultado, incluindo a avaliação dos aspectos de estrutura e processo relacionados às medidas previstas na Lei. Também é necessário monitorar as mortes de mulheres por agressões e criar mecanismos para identificação daquelas mortes relacionadas à violência contra a mulher.
A violência contra a mulher e, especialmente, os óbitos de mulheres por agressões podem ser prevenidos. Evidencia-se a necessidade da adoção de medidas intersetoriais visando à divulgação da Lei Maria da Penha e seu pleno cumprimento, com o envolvimento dos profissionais pertencentes aos órgãos e áreas enunciados na LMP, inclusive os profissionais dos serviços de saúde.
Por fim, acredita-se que a diminuição da violência contra a mulher de maneira mais definitiva deva passar pela superação da condição desigual da mulher na sociedade brasileira. Políticas afirmativas, como as cotas para mulheres em cargos eletivos, cargos públicos e empresas, assim como aquelas com o objetivo de elevar a renda das mulheres e demais políticas voltadas à redução das desigualdades de gênero, podem contribuir de maneira importante para a prevenção da violência contra a mulher, e também para a redução da mortalidade de mulheres por agressões no Brasil.
Contribuição dos autores
Garcia LP, de Freitas LRS e Höfelmann DA participaram do estudo, interpretação dos resultados e redação do manuscrito.
de Freitas LRS realizou a análise estatística.
Todas as autoras aprovaram a versão final do manuscrito.
Referências
1. United Nations. Declaration on the elimination of violence against women. General Assembly. New York; 1993.
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Endereço para correspondência:
Leila Posenato Garcia
- Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada,
SBS, Quadra 1, Bloco J, Brasília-DF, Brasil.
CEP: 70076-900
E-mail: leila.garcia@ipea.gov.br
Recebido em 12/07/2013
Aprovado em 14/08/2013