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Epidemiologia e Serviços de Saúde

versão impressa ISSN 1679-4974versão On-line ISSN 2237-9622

Epidemiol. Serv. Saúde v.22 n.3 Brasília set. 2013

http://dx.doi.org/10.5123/S1679-49742013000300005 

ARTIGO ORIGINAL

 

Caracterização dos casos de violência física, psicológica, sexual e negligências notificados em Recife, Pernambuco, 2012

 

Characterization of cases of physical, psychological and sexual violence and negligence reported in Recife, Pernambuco, 2012

 

 

Maria Carmelita Maia e SilvaI; Ana Maria de BritoII; Alessandra de Lima AraújoIII; Marcella de Brito AbathII

ICentro de Pesquisas Aggeu Magalhães, Fundação Instituto Oswaldo Cruz e Coordenação de Prevenção aos Acidentes e Violência, Secretaria de Saúde do Recife, Recife-PE, Brasil
IICentro de Pesquisas Aggeu Magalhães, Fundação Instituto Oswaldo Cruz, Recife-PE, Brasil
IIICoordenação de Prevenção aos Acidentes e Violência, Secretaria de Saúde do Recife, Recife-PE, Brasil

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

OBJETIVO: descrever o perfil dos casos de violência notificados na cidade de Recife, Estado de Pernambuco, Brasil.
MÉTODOS: estudo descritivo que incluiu todos os casos de violência doméstica, sexual e outras violências registrados no Sistema de Informação de Agravos de Notificação (Sinan) de Recife-PE, em 2012.
RESULTADOS: foram notificados 3.119 casos de violência no ano estudado, sendo 67,3% mulheres, 33,6% na faixa etária de 0 a 9 anos e 51,6% de cor da pele parda; a violência física foi a mais notificada (49,5%); na violência sexual, o principal agressor era um desconhecido (30,7%), sendo um familiar nos demais tipos de violência; metade dos casos foi encaminhada para outros serviços de saúde (50,2%).
CONCLUSÃO:
entre os casos de violência notificados, as principais vítimas foram mulheres, crianças e indivíduos de cor da pele parda; as estratégias intersetoriais de apoio às vítimas de violência e seus familiares devem ser focadas nos grupos de maior vulnerabilidade.

Palavras-chave: Vigilância Epidemiológica; Violência; Violência Doméstica; Violência contra a Mulher; Epidemiologia Descritiva.


ABSTRACT

OBJECTIVE: to describe the profile of interpersonal violence cases reported in Recife - Pernambuco - Brazil.
METHODS: this is a cross-sectional study of cases of domestic, sexual and other violence registered on the Recife Notifiable Diseases Information System in 2012.
RESULTS:
3,119 cases of violence were reported. 67.3% were female, 33.6% aged 0 to 9 and 51.6% dark-skinned. Physical violence was the main form of aggression reported (49.5%). Concerning sexual violence, the main aggressor was unknown (30.7%). In other types of violence most frequently the aggressor was a family member. Half of the cases were referred to other health services (50.2%).
CONCLUSION:
in the above reported cases, highest prevalence of violence was detected in females, children and dark-skinned people. Intersectoral strategies to support victims and their families should focus on the most vulnerable groups identified in this study.

Key words: Epidemiological Surveillance; Violence; Domestic Violence; Violence Against Women; Epidemiology, Descriptive.


 

 

Introdução

A violência é um fenômeno social e universal que atinge populações de todas as classes, religiões e culturas, com diferenciais por gênero, idade e etnia.1 Para a Organização Mundial da Saúde (OMS), a 'violência é o uso intencional da força física ou do poder, real ou em ameaça, contra si próprio ou contra outra pessoa, grupo ou comunidade, resultando ou que tenha a possibilidade de resultar em lesão, morte, dano psicológico, deficiência de desenvolvimento ou privação'.2 Estimou-se que, em 2010, 5,2 milhões de pessoas morreram no mundo por causas externas, sendo o homicídio a quarta causa de morte na faixa etária de 15 a 30 anos.3

No Brasil, em 2007, as causas externas representaram a terceira causa de óbito na população geral e a primeira causa de morte nos indivíduos de 15 e 40 anos de idade. Homens jovens, negros e pobres foram as principais vítimas e os principais agressores em relação à violência comunitária, ao passo que mulheres e as crianças negras e pobres foram as principais vítimas da violência doméstica.4

Considerando-se sua transcendência e magnitude, a violência é reconhecida como um complexo problema de Saúde Pública. Por essa razão, o Brasil adotou a estratégia de notificação universal dos casos de violência interpessoal, tornando-a objeto de políticas públicas com o propósito de garantir e promover os direitos sociais e de proteção às vítimas desse agravo.1

Um conjunto de instrumentos legais foi criado para promover a notificação das violências interpessoais. Entre eles, um importante marco foi a publicação, em 2001, da Política Nacional de Redução da Morbimortalidade por Acidentes e Violências. Em 2011, a Portaria MS/GM no 104/2011 incluiu a violência na relação de doenças e agravos de notificação compulsória em todo o território nacional.5 No tocante às crianças e adolescentes, o Estatuto da Criança e do Adolescente6 menciona o papel do setor Saúde na identificação, notificação e assistência integral às vítimas de violência.7 Em relação à mulher, a obrigatoriedade dos serviços de saúde em notificar a violência contra esse grupo está disposta na Lei Federal no 10.778/03.8 Quanto ao idoso, o Estatuto do Idoso define a obrigatoriedade do profissional da saúde ou responsável por estabelecimento de saúde ou instituição de longa permanência comunicar à autoridade competente os casos de crimes contra os idosos de que tiver conhecimento, sob pena de multa.9

A partir de 2006, foi implantado o componente contínuo do Sistema de Vigilância de Violência e Acidentes (VIVA-Sistema de Informação de Agravos de Notificação), em consonância com a Política Nacional de Redução da Morbimortalidade por Acidentes e Violência.10,11 Esse componente contempla a vigilância das violências interpessoais e autoprovocadas, cujo instrumento nacional de coleta é a Ficha de Notificação/Investigação de Violência Doméstica, Sexual e/ou Outras Violências.11 Tal instrumento, constituído por 12 blocos de informações, vem sendo revisado na perspectiva de integrar a notificação para outros setores além da Saúde, a exemplo da Educação e da Assistência social.

O conhecimento do perfil dos casos notificados por meio do VIVA-Sinan é importante para subsidiar o desenvolvimento de ações de intervenção precoces pela rede de saúde, visando ao enfrentamento das violências e à garantia dos direitos.

O presente artigo teve como objetivo descrever os casos de violência notificados na cidade de Recife, Estado de Pernambuco, no ano de 2012, segundo as características da vítima, do agressor e da violência, e os encaminhamentos realizados.

 

Métodos

Trata-se de um estudo epidemiológico descritivo, realizado na cidade de Recife, capital do Estado de Pernambuco. De acordo com dados da Fundação Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), a capital pernambucana possuía, em 2010, 1.536.934 habitantes a ocupar um território de 210 km2, constituído de 94 bairros e seis Distritos Sanitários. Recife-PE possuia 261 unidades de saúde sob gestão pública, municipal e estadual, e foi um dos municípios pioneiros na implantação da notificação das violências doméstica, sexual e outras interpessoais e autoprovocadas. No momento do estudo, 53 unidades de saúde já vinham encaminhando, regularmente, notificações de violências.

No presente estudo, foram utilizados dados secundários, cuja fonte foi o Sistema de Informação de Agravos de Notificação (Sinan), em seu módulo de violência doméstica, sexual e/ou outras violências. Foram incluídos todos os casos de violência interpessoal (violência perpetrada por familiares ou desconhecidos contra uma ou poucas pessoas) e autoprovocada (perpetrada contra si próprio), notificados pelos profissionais de saúde mediante o preenchimento da Ficha de Notificação/Investigação da Violência Doméstica, Sexual e/ou Outras Violências e registrados no Sinan de Recife-PE, no período de janeiro a dezembro de 2012. Não foi excluído do estudo um caso sequer, além do fato de ser possível notificar mais de um tipo de violência por vítima.

Foram objetos de notificação: casos suspeitos ou confirmados de violência doméstica de natureza física, psicológica, sexual, negligência ou outra; violência sexual (doméstica e não doméstica); violência autoprovocada; e tráfico de pessoas e intervenção legal contra criança, adolescente, mulher adulta, homem adulto e pessoa idosa. A violência financeira/patrimonial e a negligência/abandono também são objetos de notificação, exceto para homens adultos (20 a 59 anos de idade) sem grau severo de deficiência ou transtorno mental.

As variáveis estudadas foram classificadas em relação à vítima, ao agressor, à violência e ao encaminhamento realizado, conforme registro feito pelo profissional de saúde que atendeu o caso suspeito ou confirmado de violência. Foram analisadas as seguintes variáveis:

a) em relação à vítima,

- sexo (masculino, feminino);

- idade (categorizada nas faixas etárias de 0 a 9, 10 a 19, 20 a 39, 40 a 59, 60 e mais anos);

- cor da pele ou raça (parda, branca, preta, amarela, indígena);

- escolaridade (analfabeto, ensino fundamental incompleto, ensino fundamental completo, ensino médio incompleto, ensino médio completo, ensino superior incompleto, ensino superior completo, não se aplica);

- presença de deficiência/transtorno (sim, não); e

- tipo de deficiência (deficiência mental, transtorno comportamental, transtorno mental, deficiência física, outra deficiência, deficiência visual, deficiência auditiva);

b) em relação ao agressor, vínculo com a vítima (pai, mãe, padrasto, desconhecido, amigo/conhecido, namorado, ex-namorado, conjugue, cuidador(a), filho(a);

c) em relação à violência,

- local da ocorrência (residência e não residência); e

- tipo de violência (violência física, negligência/abandono, sexual, financeira/patrimonial e psicológica/moral); e

d) em relação aos encaminhamentos realizados, setor Saúde, Delegacia da Mulher, Conselho Tutelar, Instituto de Medicina Legal, Delegacia de Proteção da Criança e do Adolescente, outras delegacias, Centro de Referência da Mulher, Centro de Referência Especializado de Assistência Social/Centro de Referência de Assistência Social (CREAS/CRAS), Vara da Infância e da Juventude, Programa Sentinela, Ministério Público, Casa Abrigo e outros destinos.

A definição de todas as categorias dessas variáveis - inclusive os tipos de violência - encontra-se disponível no 'Instrutivo de notificação de violência doméstica, sexual e outras violências' elaborado pelo Ministério da Saúde.12 Ressalta-se que mais de um tipo de violência poderia ser registrado em uma única notificação.

Para a análise dos dados, procedeu-se à distribuição de frequência simples e relativa das variáveis do estudo. Foi utilizado o software Epi Info 2000 (versão 3.3.2 para Windows), no módulo analysis. A hipótese de associação de cada tipo de violência com as variáveis 'sexo', 'idade' e 'local de ocorrência' foi testada pelo qui-quadrado, e o nível de significância adotado foi de 5%.

Para a realização desta pesquisa, foram utilizados somente dados secundários, sem identificação das vítimas. Os dados foram disponibilizados mediante emissão de termo de autorização da Secretaria de Saúde do Recife, após a garantia do anonimato e sigilo dos casos notificados. Desse modo, foi dispensada a aprovação do estudo por um Comitê de Ética em Pesquisa.

 

Resultados

Foram computadas 3.119 notificações de casos de violência no Recife-PE, em 2012. Dessas notificações, 67,3% foram de pessoas do sexo feminino. Quanto à idade, predominou a faixa de 0 a 9 anos, que representou 33,6% do total das notificações. Estratificando-se os grupos etários por sexo, observou-se que, no sexo masculino, as crianças de 0 a 9 anos foram as principais vítimas (51,2%). No sexo feminino, a faixa etária mais frequente foi de 20 a 39 anos (36,5%). Em ambos os sexos, a faixa etária com menor número de notificações foi a de idosos (60 anos e mais) (Tabela 1).

 

 

Quanto à caracterização por cor da pele ou raça, 51,6% das vítimas eram pardas. No que toca à escolaridade, a categoria mais frequente foi 'ignorado/em branco' (34,9%), seguida de 'não se aplica' (28,9%). Observou-se que 168 casos (5,4%) possuíam algum tipo de deficiência/transtorno. Entre esses casos, 29,2% apresentavam deficiência mental, e 24,4%, transtorno mental (Tabela 1).

A forma de violência mais notificada foi a física (49,5%), seguida pela negligência/abandono (28,0%) e pela violência sexual (23,9%). A violência psicológica/moral representou 20,8% das notificações, e a financeira/patrimonial, 1,7%. Nas violências física, psicológica/moral e financeira/patrimonial, os casos foram mais frequentes na faixa etária de 20 a 39 anos (43,3%, 41,7% e 44,2%, respectivamente). A violência sexual foi mais frequente na faixa etária de 10 a 19 anos (43,0%), e a negligência/abandono, na de 0 a 9 anos (81,4%). A associação foi estatisticamente significativa (p<0,05) entre faixa etária e todos os tipos de violência estudados (Tabela 2), embora apresentasse proporções diferentes. Nas violências física, psicológica/moral e financeira/ patrimonial, os casos foram mais frequentes na faixa etária de 20 a 39 anos (43,3%, 41,7% e 44,2%, respectivamente). A violência sexual foi mais frequente na faixa etária de 10 a 19 anos (43,0%), e a negligência/abandono, na de 0 a 9 anos (81,4%). Analisando-se o tipo de violência mais frequente em cada faixa etária, observou-se que apenas em menores de 10 anos de idade, prevaleceu a negligência/abandono (68% do total de casos de crianças notificados). Para as demais faixas etárias, prevaleceu a violência física.

 

 

Em relação ao sexo, com exceção da negligência/abandono, na qual prevaleceram as vítimas do sexo masculino (55,6%), para todos os demais tipos de violência, predominaram vítimas do sexo feminino. A associação entre sexo e todos os tipos de violência foi estatisticamente significativa (p>0,05). Todas as violências foram mais frequentes na residência, com maior ocorrência da violência financeira/patrimonial (72,0%). A associação com a variável 'local de ocorrência' foi estatisticamente significativa em todos os tipos de violência (p>0,05) (Tabela 2).

Quanto aos perpetradores da violência, o cônjuge foi o principal agressor nas violências física (17,5%) e psicológica (27,5%). Na violência sexual, prevaleceu o agressor desconhecido (30,7%), e na negligência/abandono e na violência financeira/patrimonial, a mãe (56,4% e 17,3%, respectivamente) (Tabela 2).

Quanto ao encaminhamento das vítimas, estas foram levadas, principalmente, para os serviços de saúde (50,2%), Conselhos Tutelares (14,7%) e Delegacia da Mulher (13,2%) (Tabela 3).

 

 

Discussão

Os achados deste estudo apontam a violência física como a mais notificada (49,5%), sendo o principal agressor um familiar - à exceção da violência sexual - e as principais vitimas mulheres, crianças e indivíduos de cor da pele parda. O perfil dos casos de violência notificados em Recife-PE não diferiu de estudos realizados em São Paulo e na Bahia,13,14 onde se observou que a violência física apresentou maior frequência, a raça/cor da vítima parda foi predominante e o agressor, na maioria dos casos, era uma pessoa conhecida pela vítima.

Em relação à cor da pele ou raça e à escolaridade, o elevado percentual de 'ignorado' indicou que tal informação, possivelmente, não foi priorizada pelos profissionais da saúde. A variável merece atenção no treinamento para o preenchimento da ficha de notificação de violência, haja vista seu potencial para auxiliar na mensuração das desigualdades sociais e sua associação com a ocorrência da violência. Ainda em relação à escolaridade, entre as categorias válidas, 'não se aplica' foi a mais frequente, provavelmente em função de se tratar de crianças, o que seria compatível à faixa etária com maior frequência de notificação.

No presente estudo, verificou-se que as principais vítimas foram do sexo feminino. Além da elevada ocorrência de violência contra mulheres, possivelmente contribuem para essa maior notificação a maior sensibilidade dos profissionais de saúde de Recife-PE para a notificação dessa violência, além do fato de as mulheres procurarem mais os serviços de saúde que os homens. É importante considerar que esse instrumento de notificação dispõe de especificidade para revelar esse tipo de violência, uma vez que não inclui a notificação da violência urbana, na qual os homens são as principais vítimas.3,4 Essa maior detecção pode, ainda, ser fruto do trabalho integrado entre a Secretaria de Saúde do Recife e a Secretaria da Mulher, a Promotoria de Justiça do Estado e o trabalho desenvolvido por associações e organizações não governamentais (ONG) relacionadas às mulheres.

O baixo número de casos de violência contra idosos notificados apontou para a necessidade de aumentar a consciência na sociedade sobre dos direitos individuais e sociopolíticos dos idosos.15 A baixa notificação nessa faixa etária diverge de literatura que relata ser comum a violência doméstica contra a pessoa idosa por diversos motivos, entre os quais o fato de os indivíduos idosos demandarem mais cuidados por parte dos familiares, muitas vezes sobrecarregados com essa função.15,16 Deve-se considerar que, nessa faixa etária, as violências mais frequentemente perpetradas são a financeira/patrimonial e a psicológica, ambas de difícil identificação, o que pode justificar, ainda que parcialmente, o baixo número de casos notificados.16,17 Associado ao exposto, o idoso pode não se reconhecer vítima de violência, uma vez que seus principais agressores são, geralmente, seus filhos e netos.15-18

Outro grupo populacional considerado vulnerável e, portanto, objeto de notificação - embora possa ter sido subnotificado neste estudo -, foi o das pessoas com deficiência. A violência praticada contra essas pessoas ainda é pouco reconhecida e notificada e acontece, basicamente, por dois fatores: pela invisibilidade na malha social e pela condição de deficiência e vulnerabilidade das vítimas oferecer segurança ao perpetra-dor. As pessoas com deficiência, especialmente mental (a deficiência mais notificada neste estudo), tornam-se alvo fácil para os agressores dada sua incapacidade de se expressar e se defender.19

A violência física foi a mais notificada, fato ratificado por diversos estudos sobre o tema.11,14,20 A negligência e a violência psicológica, consideradas como de difícil identificação, são apontadas neste estudo como o segundo e o quarto tipos de violência mais notificados e seus números não diferem tanto dos casos de violência sexual, que ocupou a segunda colocação no ranking de notificações de violências. Tais achados sugerem que em Recife-PE, esses tipos de violência estão frequentemente presentes nos relacionamentos interpessoais e os profissionais de saúde estão atentos a eles, como consequência das ações de educação continuada oferecidas durante o processo de implantação do VIVA-Sinan no município.

O fato de a notificação de casos de violência financeira/patrimonial estar distribuída por todas as faixas etárias indicaria a necessidade de treinar melhor o profissional notificante em relação ao conceito dessa violência, característica da faixa etária de 60 anos ou mais.17

Quanto aos agressores, como houve predominância de vítimas do sexo feminino e o principal agressor da maioria dos tipos de violências foi o cônjuge, possivelmente trata-se de violência baseada nas relações de gênero. Estudos nacionais e internacionais21,22 afirmam ser esse tipo de violência a tradução real do poder e da força física masculina e da história de desigualdades culturais entre homens e mulheres, na reprodução de papéis estereotipados que legitimam ou exacerbam esses comportamentos violentos de gênero.

O agressor desconhecido prevaleceu nos casos de violência sexual contra a mulher mas, ainda assim, esse tipo de violência ocorreu predominantemente no ambiente doméstico.

A mãe foi a principal agressora nos casos de negligência. É possível que esses casos tenham sido mais frequentes em crianças e adolescentes, os quais, nessa faixa etária, estão mais sujeitos aos cuidados das mulheres, principais responsáveis pela condução da educação e de outras responsabilidades sobre os filhos menores de idade.14 A mãe também é apontada como a principal agressora nos casos de violência física e negligência praticada contra crianças e adolescentes, segundo estudos realizados em Curitiba-PR e na Bahia.14,23

Em relação aos encaminhamentos dos casos a partir do atendimento pelos serviços de saúde, é notória a necessidade de avançar nesse aspecto. Como mínimo, os casos de violência contra crianças e adolescentes deveriam ser encaminhados ao Conselho Tutelar, conforme previsto em Lei.6 Observou-se que o número de encaminhamentos para o Conselho foi bastante inferior em relação aos casos notificados.

A maioria dos encaminhamentos realizados foi para o próprio setor Saúde, o que denota falta de monitoramento por parte das autoridades sanitárias na busca da garantia de proteção às vítimas. As vítimas atendidas e identificadas nos serviços de saúde, frequentemente, requerem acesso à rede de proteção para a garantia de seus direitos. Caso o profissional de saúde que prestou atendimento à pessoa em situação de violência não realize tal encaminhamento, cabe à autoridade sanitária fazê-lo.

Os resultados observados indicam uma necessidade de maior sensibilização e conscientização dos profissionais para a importância da notificação e do encaminhamento à rede de proteção das vítimas de violência. Alguns autores afirmam que a obrigatoriedade legal de notificar, por si só, não é suficiente para fazer com que os profissionais adotem a notificação como conduta-padrão, sendo necessário o enfrenta-mento de diversos obstáculos como, por exemplo, o medo de envolvimento na situação de violência e suas consequências.7,21,23,24

O presente estudo remete à necessidade de implementar a notificação dos casos de violência em Recife-PE, sendo importante a atuação conjunta com os profissionais da rede de saúde para a superação dessas barreiras. Em países que possuem legislação semelhante à brasileira, inúmeros são os fatores que interferem na notificação das violências:

a) insuficiente conhecimento sobre o processo de notificação;

b) despreparo dos profissionais em lidar com o assunto, considerado de foro íntimo ou problema de segurança pública ou justiça;

c) medo de envolvimento emocional e com processos;

d) influências culturais;

e) sigilo profissional;

f) experiências prévias com situações de violência e repercussões negativas;

g) desconfiança na efetividade dos serviços de proteção e apoio às vítimas;

h) precárias estruturas de atendimento, muitas vezes desarticuladas;

i) proximidade entre a moradia das vítimas e o local de trabalho dos profissionais, no caso da atenção primária à saúde;

j) dificuldade na própria identificação dos casos; e

k) falta de retroalimentação das informações aos serviços notificadores.2,19,21-24

Para que os profissionais - e a sociedade - enfrentem o problema da subnotificação e, consequentemente, da própria violência, serão necessárias mudanças de valores e de comportamento. São mudanças que demandam processos de média e longa duração e investimentos contínuos,24 tanto na mudanças das leis quanto na capacitação dos técnicos envolvidos e na elaboração de normas e condutas para ampla divulgação, no sentido de desmistificar a notificação enquanto entendida - erroneamente - como denúncia.25

Acredita-se que a criação de serviços especializados e programas sentinelas, além da elaboração de fluxos e protocolos para o atendimento às vítimas de violência, sejam bons estímulos para a efetivação das notificações na rede de saúde.

Este estudo deparou-se com algumas limitações. Apesar de a equipe de vigilância epidemiológica de Recife-PE realizar sistematicamente a crítica do banco de violência do Sinan, estas autoras não realizaram tal crítica. O banco foi analisado de forma integral, de modo que é possível haver alguns casos de violência urbana contra homens na faixa etária de 20-49 anos e, também, casos duplicados. Ademais, houve subnotificação dos casos de violência, visto que nem todas as unidades de saúde do município eram fontes notificadoras para o referido agravo. Apesar da limitação do perfil traçado nesta pesquisa, considerando-se os aspectos citados e que não foram exploradas em profundidade as especificidades da violência contra cada grupo populacional e a determinação social da violência, tal perfil, sem a pretensão de esgotar a discussão sobre um fenômeno tão complexo, revelou informações relevantes sobre as características da violência notificada pela Saúde do Recife-PE. No período de 2009 a 2012, houve um incremento de 355,3% das notificações na rede de saúde municipal, passando 685 notificações em 2009 para 3.119 notificação em 2012.26

Espera-se que essas informações sejam utilizadas na elaboração de ações articuladas, interdisciplinares e intersetoriais de enfrentamento do problema da subnotificação dos casos e de seu não encaminhamento à rede de proteção contra a violência, bem como na adoção de medidas de prevenção e estímulo à cultura de paz, de modo a impactar positivamente na redução dos casos de violência no município de Recife-PE.

 

Agradecimentos

À Secretaria de Vigilância em Saúde do Ministério da Saúde - SVS/MS -, pelo empenho na consolidação do Sistema VIVA.

Aos técnicos da Coordenação de Prevenção aos Acidentes e Violências - COPAV/Recife - pelo apoio à pesquisa.

 

Contribuição das autoras

Todas as autoras contribuíram com o desenho do projeto, análise e interpretação dos dados, redação, revisão e aprovação da versão final do manuscrito.

 

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Endereço para correspondência:
Maria Carmelita Maia e Silva
- Avenida Rosa e Silva, no 955, Apto. 501,
Bairro Aflitos, Recife-PE, Brasil.
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E-mail: mariacarmelita@recife.pe.gov.br

Recebido em 04/01/2013
Aprovado em 30/07/2013