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Epidemiologia e Serviços de Saúde

versión impresa ISSN 1679-4974versión On-line ISSN 2237-9622

Epidemiol. Serv. Saúde v.22 n.3 Brasília sep. 2013

http://dx.doi.org/10.5123/S1679-49742013000300013 

ARTIGO ORIGINAL

 

Percepção dos trabalhadores da Estratégia Saúde da Família sobre a atuação das equipes de saúde bucal em Goiânia, em 2009: estudo qualitativo*

 

The Family Health Strategy workers' perception of the oral health team performance in Goiânia-GO, Brazil, 2009: a qualitative study

 

 

Érika Fernandes SoaresI; Sandra Cristina Guimaraes Bahia ReisII; Maria do Carmo Matias FreireIII

IDepartamento de Saúde Bucal, Secretaria Municipal de Saúde, Prefeitura Municipal de Goiânia-GO, Brasil
IIEscola Estadual de Saúde Pública Candido Santiago, Secretaria de Estado da Saúde de Goiás, Goiânia-GO, Brasil
IIIDepartamento de Ciências Estomatológicas, Faculdade de Odontologia, Universidade Federal de Goiás, Goiânia-GO, Brasil

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

OBJETIVO: investigar a percepção dos integrantes das equipes da Estratégia Saúde da Família (ESF) sobre a atuação das equipes de saúde bucal (ESB) em Goiânia-GO.
MÉTODOS: o estudo foi do tipo qualitativo, utilizando a técnica de grupo focal para a coleta dos dados e de análise temática para o conteúdo dos dados. Participaram dez agentes comunitários de saúde, cinco auxiliares de enfermagem, quatro enfermeiras e quatro médicos, todos trabalhadores da ESF de Goiânia-GO.
RESULTADOS: na percepção dos participantes, a atuação das ESB caracterizou-se pela ênfase em ações curativas, grande volume de necessidades de tratamento, alta demanda, baixa cobertura e baixa resolutividade, resultantes da alta complexidade da atenção clínica. O relacionamento interpessoal das ESB surgiu como aspecto positivo das equipes. As opiniões foram divergentes sobre o impacto das ações na condição de saúde bucal da população.
CONCLUSÃO: a amostra estudada percebeu o enfoque curativo, o caráter humanizado da assistência à saúde bucal e os fatores limitadores desta atuação.

Palavras-chave: Saúde da Família; Saúde Bucal; Avaliação de Serviços de Saúde; Pesquisa Qualitativa.


ABSTRACT

OBJECTIVE: to investigate the perception of Family Health Strategy (FHS) workers on the work performance of the oral health teams (OHT) in the city of Goiânia, Brazil.
METHODS: a qualitative study using focal group for data collection and thematic content data analysis was conducted. Participants were FHS health workers in Goiânia: 10 community health workers, 5 nursing auxiliaries, 4 nurses and 4 doctors.
RESULTS: for the participants, the work of the OHT was characterized by an emphasis on treatment, high amount of treatment needs, high demand, low coverage and low resolutivity, as a result of the high complexity of dental health care. The interpersonal relationship of the OHT was considered positive. Opinions regarding the impact of the actions on the population's oral health were divergent.
CONCLUSION: the team workers perceived the focus on treatment, the humanized nature of oral health care, and the limiting factors of this work.

Key words: Family Health; Oral Health; Health Services Evaluation; Qualitative Research.


 

 

Introdução

A Estratégia Saúde da Família (ESF), criada em 1994 pelo Ministério da Saúde, tem como foco o núcleo familiar e visa ao cumprimento dos princípios da integralidade, equidade, universalidade e controle social das ações em saúde, previstos no Sistema Único de Saúde (SUS). Inicialmente, apenas médicos, enfermeiros, auxiliares de enfermagem e agentes comunitários de saúde compunham as equipes do então denominado Programa Saúde da Família. A inserção da saúde bucal foi efetivada em 2000 devido à necessidade de melhorar os indicadores epidemiológicos e de aumentar o acesso aos serviços de saúde bucal.1

Para o Ministério da Saúde,2 a equipe multiprofissional da ESF deve buscar a articulação das ações e a integração de seus componentes, objetivando uma atuação interdisciplinar. O conceito de equipe interdisciplinar, como um grupo de indivíduos que cooperam na realização de uma rotina ou de uma tarefa, permite a divisão de responsabilidades, alívio de estresse e permuta de aprendizado.3 Contudo, esta integração dos profissionais só ocorre se cada um conhecer além das suas próprias funções e atribuições, as de seus parceiros de equipe.4

Para que as propostas da ESF sobre a atenção em saúde sejam atendidas, é necessário avaliar o modelo de atuação das equipes de saúde bucal (ESB). Os poucos estudos publicados que avaliaram a atuação destas equipes mostraram alguns indícios de mudanças que convivem com o modelo tradicional de serviços de saúde.5-7 Estes estudos foram realizados na perspectiva dos usuários e dos próprios trabalhadores em saúde bucal (cirurgiões-dentistas, auxiliares e técnicos em saúde bucal), sendo desconhecido o olhar dos demais componentes da equipe de saúde da família sobre a ESB.

Conhecer a percepção dos trabalhadores atuantes na ESF sobre as ESB pode possibilitar a compreensão da realidade do serviço em termos organizacionais e administrativos e como ocorre a relação de trabalho entre os componentes da equipe de saúde da família. Assim, o objetivo do presente estudo foi conhecer a atuação das equipes de saúde bucal na percepção dos demais integrantes das equipes da Estratégia Saúde da Família no município de Goiânia-GO.

 

Métodos

Trata-se de estudo qualitativo desenvolvido no município de Goiânia-GO entre os meses de janeiro e abril de 2009. Obedecendo ao princípio de descentralização do Sistema Único de Saúde (SUS), o município estava dividido em sete Distritos Sanitários (Norte, Leste, Oeste, Sul, Sudoeste, Noroeste e Campinas-Centro) e apresentava população de 1.318.149 habitantes. Em Goiânia, a ESF foi implantada em 1998. As primeiras 17 equipes de saúde bucal foram implantadas somente em 2005.8 No momento da realização deste estudo, Goiânia possuía 142 equipes de saúde da família, das quais 57 possuíam equipe de saúde bucal.

Os sujeitos foram profissionais de saúde lotados nas equipes de saúde da família e que, no período da pesquisa, tinham atuado por no mínimo um ano em equipe contemplada com ESB. Foram excluídos da pesquisa os profissionais das ESB (cirurgiões-dentistas, técnicos e auxiliares de saúde bucal).

Atendendo ao que tem sido proposto na literatura,9,10 foi estipulado um número de dez participantes por grupo focal, visando à otimização da técnica escolhida para a coleta de dados e prevendo os não comparecimentos. Um total de 40 profissionais apresentaram os critérios citados e foram convidados a participarem da pesquisa. Os convites foram feitos pelas cirurgiãs-dentistas supervisoras distritais da Secretaria Municipal de Saúde, por meio da entrega de uma carta-convite. A coleta dos dados foi realizada em uma sala de reuniões da Faculdade de Odontologia da Universidade Federal de Goiás, nos horários de trabalho dos participantes e após autorização de suas chefias. Aos Agentes Comunitários de Saúde e Auxiliares de Enfermagem foi ressarcido o valor gasto com o seu deslocamento.

Dos 40 profissionais convidados, 23 aceitaram participar do estudo, e compareceram no dia da realização do grupo focal. O tempo médio de atuação destes profissionais na ESF foi de aproximadamente sete anos, variando de um a 11 anos. O tempo de atuação em equipes com ESB foi em média de quatro anos, variando de um a oito anos.

A técnica utilizada foi a de grupo focal, considerada como uma entrevista de grupo, com interação entre seus participantes, a partir de tópicos fornecidos pelo moderador.9 A coleta de dados foi baseada no manual publicado pela Organização Mundial de Saúde sobre grupo focal 10. Por meio da pergunta norteadora "quais as atividades desenvolvidas pelas ESB na ESF?", o mediador abordou os seguintes temas: a) atividades desenvolvidas pelas ESB, e b) opinião dos profissionais sobre as ações de saúde bucal na ESF e na comunidade.

Foram realizados quatro grupos focais, sendo dois com turmas mistas de agentes comunitários de saúde (ACS) (n=10) e auxiliares de enfermagem (AE) (n=5) e dois também com turmas mistas de médico (a)s (n=4) e enfermeiro (a)s (n=4). Este agrupamento das categorias profissionais foi feito para evitar a intimidação ou o constrangimento entre aqueles com menor grau de instrução e nível hierárquico dentro da equipe ao discutir os tópicos propostos.

Participaram da coleta de dados a pesquisadora principal e quatro auxiliares de pesquisa previamente treinados, que operaram os equipamentos para gravação do áudio das entrevistas e como observadores para registro das mesmas.

As gravações foram transcritas pelos auxiliares da pesquisa. Seus conteúdos foram submetidos à Análise de Conteúdo Temática, segundo Bardin,11 pela pesquisadora principal e outras duas componentes da equipe de pesquisa, buscando conferir maior confiabilidade à análise dos dados.

O projeto de pesquisa foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa da Universidade Federal de Goiás (Protocolo no 152/2008). Todos os sujeitos que concordaram em participar do estudo assinaram um Termo de Consentimento Livre e Esclarecido.

 

Resultados

Ao serem abordadas as atividades desenvolvidas pela ESB, as atividades de recuperação da saúde bucal, com enfoque no tratamento das doenças, emergiram com bastante frequência. Nesta modalidade, foram citados procedimentos clínicos (restauração e profilaxia) e encaminhamento para a atenção especializada. O levantamento das necessidades de tratamento foi a única ação de planejamento e diagnóstico relatada. As atividades educativas e preventivas citadas foram palestras, apresentações teatrais, escovação supervisionada s e visitas domiciliares. Também foram citadas as ações administrativas, que no presente estudo referem-se às participações nas reuniões gerais da equipe e as atividades referentes ao agendamento do tratamento odontológico.

"[...] porque o trabalho aqui dos odontólogos, é só a restauração, uma pequena limpeza. [...]" (ACS 1)

"[...] eles tem muita dificuldade na referencia né, principalmente quando é canal, quando é alguma cirurgia [...]" (Enfermeira 3)

"[...] a própria dentista dá palestra, dá capacitação [...]" (ACS 4)

"E sempre tá, e sempre que ela pode, ela tá participando das reuniões de equipes, sempre ta participando das reuniões dos grupos tanto de hipertensos, quanto das gestantes e do grupo de mulheres." (Médico 4)

Segundo os participantes, as atividades educativas eram executadas na maioria das vezes pelos Cirurgiões Dentistas (CD). As visitas domiciliares e atividades comunitárias com finalidade educativa foram citadas como opções de atuação da ESB para os momentos em que não havia condições de trabalho para a assistência clínica, apesar dos entrevistados relatarem que se tratava de um desperdício de tempo do profissional.

"[...] o tempo que ele (Cirurgião-Dentista-CD) gasta lá na área fazendo as atividades ele está no consultório atendendo o paciente que a demanda é muito grande [...]" (ACS3)

Quanto às atividades educativas realizadas pelos CD, dois relatos mereceram destaque, pois se referiram às experiências pessoais e familiares dos participantes dos grupos focais quando submetidos a tratamento odontológico.

"Mas você sabe que eu sou a favor da bronca? Tem que saber dar a bronca porque passar a mão na cabeça, porque por exemplo, o meu dentista é particular mas ele, a última vez que eu tive lá, ele me deu uma bronca e foi bom pra mim [...] Claro que o paciente reclamava e o paciente vai reclamar mesmo, né, ele quer que chega lá e passa a mão na cabeça!" (AE1)

"Dá uma bronca, dá, mas assim, tem um jeitinho também. Eu, uma experiência que eu tive, eu perdi um programa do bebê do meu filho, por causa justamente disso [...] levei ele (o filho) a primeira vez. "Ele mama de madrugada"?" (perguntou a CD do programa) "Mama, no peito ". Ele [...] tava com sete, oito meses [...] Chegava no outro mês, realmente eu tentava tirar as mamadas da madrugada, eu não conseguia! Aí, ela perguntava: "Continua mamando nas madrugadas?" Na terceira vez ela: "Então, o que você está fazendo aqui, se você não conseguiu tirar nem o peito do seu menino de madrugada?" Ai, eu num voltei nunca mais... Só consegui tirar a mamada do meu filho quando eu desmamei total!" (ACS 3)

Em relação à participação de ACS em atividades de escovação supervisionada, alguns profissionais de nível médio que participaram do presente estudo manifestaram certa indignação, como nos relatos que se seguem:

"[...] eu nem concordo com isso, que essa parte da escovação ACS tem quefazer?! [...] Eu acho que é cada um no seu quadrado" (AE 4)

"Na minha área o dentista é que faz. É um serviço a menos pra eles (porque) põe os ACS pra fazer!" (AE 3)

Entre os trabalhadores de nível superior, houve relato de participação de pessoal auxiliar das ESB em atividades educativas e tal atuação foi interpretada como questão de perfil profissional.

"[...] assim fazia o trabalho educativo também, mas acabava que ficava mais no consultório. [...] uma vez a gente chamou a odontologia e a odontologia foi e fez um trabalho maravilhoso, mas assim [...] depende, como você falou, tem hora que o THD (Técnico em Saúde Bucal- TSB) avança mais um pouquinho, tem hora que o cirurgião-dentista, tem hora que é o auxiliar de consultório dentário (Auxiliar em Saúde Bucal - ASB). É essa a diferença que eu tô falando, do profissional mesmo! Tem uns que já estão mais querendo trabalhar em atividade educativa, em grupo, e outros não [...] Acho que depende do profissional." (Enfermeira 2)

A participação das ESB em reuniões de equipe foi associada pelos participantes à troca de saberes e ao planejamento de ações.

Sobre a atuação das ESB na ESF e junto à comunidade, emergiram das falas dos participantes aspectos relacionados à organização do trabalho em odontologia e às relações interpessoais. Na percepção dos entrevistados, o trabalho odontológico era diferenciado, pois além da complexidade da assistência clínica, requeria um aparato de equipamentos e estrutura física que as ESB estudadas não possuíam de forma adequada. Tal situação comprometia o serviço das ESB e também o trabalho de outros profissionais, principalmente o do ACS, pois estavam em contato frequente com a comunidade e intermediavam o agendamento para o tratamento odontológico.

"A consulta odontológica é uma consulta diferenciada. A consulta odontológica ela demora, demanda mais tempo que uma consulta médica, que uma consulta de enfermagem". (Médico 1)

A demanda reprimida por tratamento odontológico e o agendamento foram fatores frequentemente citado pelos participantes como complicador da atuação das ESB. Além disso, foi abordado o número insuficiente de profissionais de saúde bucal para a devida cobertura da população que era assistida pela estratégia...

"Era desse mesmo jeito, né, um sufoco porque uma pessoa para atender esse mundo de gente [... ] população insatisfeita, cobrando também da mesma forma que cobra agora" (Auxiliar de enfermagem 2)

"Resumindo o centro do problema é demanda demais e funcionário de menos." (ACS 7)

"Na minha equipe assim a gente vê [...] dificuldade de agendamento mesmo [...] eles liberam uma vez por mês as senhas. Parece que são trinta senhas né? [...] mas o dentista lá atende muito mais [...] Fora a demanda (espontânea). [...] mas o pessoal assim reclama [...] da forma que está sendo o agendamento." (Médico 2)

"Uma coisa também que eu acho bem difícil [...] lá pra nos é o agendamento porque o agendamento [...] ninguém conseguiu acertar [...]. Desde que começou, [...] eles (dentistas) nunca conseguiram. Acho que tinha que ter assim, eles (dentistas) se reunirem e achar um método para agendamento." (AE1)

Os participantes perceberam ainda que, em geral, quando existia a necessidade da atenção especializada, ocorria uma incompletude do tratamento odontológico.

"[...] e eles tem muita dificuldade na referência né, principalmente quando é canal, quando é alguma cirurgia, que tem quefazer e é uma fila gigante, daquele tanto de canal porque a referência não dá conta [...]" (Enfermeira 1)

Não obstante os aspectos negativos levantados pelos profissionais quanto ao processo de trabalho das ESB, as relações interpessoais entre estas e os demais membros da equipe da ESF foram citadas como aspectos positivos, tanto por profissionais de nível médio, quanto de nível superior, como se observa nos relatos abaixo:

"O entrosamento das equipe é muito bom"! (ACS3, 7)

"[... ] tem havido uma boa integração com o pessoal da odontologia" (Médico 3)

Além disso, observa-se a percepção da intencionalidade das ESB em ofertar um atendimento humanizado, que tem como barreiras a grande demanda e as condições precárias de trabalho.

""[... ] nossas duas dentistas são ótimas [... ] são dentistas muito humanas [... ] abrem a porta e recebem o paciente, com toda educação [...] as dentistas, elas ficam nervosas porque fala assim "a gente fica aqui o período todo, a gente dá palestra tudo, mas não tem nem como [...] trabalhar,porque falta material" (ACS 9)

"(...) embora as condições de trabalho são difícil porque a procura é muito maior do que o SUS oferece, mas é um trabalho muito bom" (ACS 10)

A integralidade das ações de saúde foi abordada na fala que se segue, em que a equipe de saúde bucal foi percebida como um complemento necessário à equipe de saúde da família:

"Eu acho que chegou pra complementar muita coisa, que às vezes a gente ficava faltando e não sabia nem pra quem, como que ia resolver isso, né?! A cobrança pra nós era muito grande, porque tratava da saúde mais ficava sem a parte odontológica [...] acho que facilitou muito o acesso da comunidade e veio pra complementar uma parte grande e importante que tava faltando na saúde da família. Ela só veio a somar e eu acho que facilitou e muito o nosso trabalho." (Médico 1).

Em relação à opinião dos profissionais sobre as ações de saúde bucal na ESF e na comunidade, de maneira geral, os participantes destacaram a baixa resolutividade destas ações. A dificuldade de acesso, a incompletude do tratamento odontológico e os problemas com os equipamentos odontológicos, provavelmente influenciaram a percepção das equipes em relação ao impacto das ações de saúde bucal, resultando em conclusões como a seguinte:

"Na minha experiência ainda não houve nada assim que fosse impactante!" (Médico 3)

 

Discussão

As ações das ESB relatadas pelos entrevistados são condizentes com as preconizadas pelas Políticas Nacionais de Atenção Básica12 e de Saúde Bucal - DPNSB,13 do Ministério da Saúde. A priorização das ações clínicas pelo CD, relatada com ênfase no presente estudo, foi constatada também em estudos anteriores realizados em outros municípios.14-18 Em geral, houve um entendimento de que tanto o perfil dos profissionais atuantes na ESF, quanto sua formação acadêmica, tem influência sobre a ênfase no atendimento individual curativo. Contudo, devem ser consideradas também as diretrizes governamentais pertinentes à ESF. Ao abordar o processo de trabalho em saúde bucal, as DPNSB13 recomendam que 75 a 85% da carga horária contratada pelas ESB sejam destinadas à assistência e de 15 a 25% às atividades como planejamento, capacitação e atividades educativas coletivas.

As DPNSB estabelecem ainda que as atividades educativas sejam desempenhadas preferencialmente pelo pessoal auxiliar.13 Contudo, no presente estudo os entrevistados apontaram o CD como principal agente na realização de ações educativas. Distorções como esta na divisão do trabalho odontológico entre os profissionais de saúde bucal na atenção básica têm sido apontadas por outros autores como consequência do excedente de cirurgiões-dentistas no país.19 Além disso, a orientação de higiene bucal, embora seja uma das atividades pertinentes às ESB, poderia ser abordada pelos demais trabalhadores da ESF como parte dos cuidados com a higiene do corpo. Os ACS possuem um papel importante nas equipes da ESF, pela sua relação diferenciada com a comunidade. Porém, sua atuação na saúde bucal pareceu não estar bem definida20 e na prática tem acontecido de formas variadas de acordo com os contextos locais. Isto remete ao fato de que as equipes de saúde da família, apesar de multidisciplinares, ainda não desenvolvem um trabalho de forma interdisciplinar, havendo justaposição de saberes.

Os relatos dos participantes do presente estudo sobre as atividades educativas realizadas pelos CD chamaram a atenção e podem ser analisados sob dois aspectos. O primeiro é o fato de considerar o indivíduo como o único responsável por sua condição de saúde e por isso enfatizar a mudança de hábitos ou comportamentos como regra para prevenir o adoecimento. O segundo aspecto é o fato de a profissional citada no segundo relato preconizou a interrupção do aleitamento materno no período noturno como uma norma inquestionável por parte da mãe do paciente, desprezando seus sentimentos, sua representação social da maternidade e sua autoestima.21

Ainda sobre as ações realizadas pelas ESB, uma categoria diferente das elencadas pelas DPNSB emergiu: a das ações administrativas (participações das ESB nas reuniões gerais das equipes da ESF e atividades relacionadas ao agendamento do tratamento odontológico). Cardoso22 considera que reuniões de equipe podem ser momentos oportunos para a integração daqueles que compõem a ESF, nos quais os profissionais possam trocar experiências, expectativas e somar esforços no sentido de melhorar a convivência e a oferta dos serviços prestados à comunidade.

Estudos sobre a saúde bucal na ESF em outros municípios brasileiros também identificaram a forte relação entre demanda e processo de trabalho odontológico, comprometendo o sucesso deste último18,23. Com a baixa cobertura populacional e a alta necessidade de assistência odontológica, principalmente entre os adultos, as ESB enfrentam dificuldades em restringir a atenção em saúde à população adscrita e de planejar em conjunto com os demais profissionais da equipe de saúde da família as ações segundo as necessidades desta população.24-28

O sistema de referência e contra referência dos pacientes para tratamento especializado também foi considerado como ponto crítico dos serviços de saúde bucal da ESF em outros estudos.15,18,24-26 Este resultado sugere que o sistema de referência e contra referência tem deficiências que não proporcionam a conclusão do tratamento odontológico de pacientes atendidos nas ESF.

O impacto das ações de saúde bucal na comunidade foi percebido de forma não expressiva pelos participantes do presente estudo. Resultados de estudos realizados em municípios da Região Nordeste, com base em métodos quantitativos de pesquisa, mostraram um fraco desempenho da saúde bucal na ESF em relação ao acesso e a utilização dos serviços pela população, bem como a outros indicadores de saúde bucal.27-29 Em conjunto, estes resultados devem ser vistos com preocupação por gestores e profissionais de saúde.

Assim, as equipes entrevistadas perceberam o enfoque curativo, o caráter humanizado da assistência à saúde bucal e os fatores limitadores desta atuação. Considerando que os participantes da pesquisa são profissionais da ESF que não são membros das ESB, vale destacar que o "olhar" desses encerra uma dupla faceta. Por um lado, são profissionais da saúde e analisam o trabalho da ESB com o éthos geral da saúde, ou seja, escapam da especificidade da subárea. Mais distanciados, contudo sem se tornarem externos, conseguem destacar aquilo que os trabalhos das ESB mais discrepam do trabalho da enfermagem e da medicina. Dessa perspectiva, conseguem indicar que o trabalho é mal distribuído ou dividido entre profissionais e entre unidades; portanto, que há prejuízos à ideia de equipe (divisão do trabalho entre profissionais) e de rede (divisão do trabalho entre unidades - horizontal e vertical). Como consequência, as ESB são ilhas de oferta cercadas de demandas por todos os lados. Nessa perspectiva, a generalidade do olhar desses profissionais contribui bem para o diagnóstico do trabalho atual das ESB. Por outro lado, é exatamente por serem profissionais da saúde sem formação em saúde bucal, por lhes escapar a especificidade, que eles não conseguem fazer uma análise mais ampla do trabalho das ESB. De certa forma, analisam os problemas na perspectiva do senso comum. Falta-lhes expertise nas críticas, tanto quanto lhes falta a capacidade de elaborar sugestões qualitativamente superiores. Portanto, não conseguem perceber que o problema da má divisão do trabalho das ESB se encontra fortemente relacionado à maneira como as políticas públicas de Saúde Bucal na atenção básica têm sido conduzidas no Brasil. Espera-se, portanto, que a formação dos recursos humanos em saúde bucal para atuar no SUS seja orientada de forma a contribuir para profissionais mais capacitados ou orientados, visando um trabalho mais bem pensado, apropriado, transformador, consequente e impactante.

Como provável limitação do presente estudo, destacamos o fato de ter sido conduzido por CD, podendo ter implicações nos resultados. Sabe-se que os ambientes histórico, filosófico e cultural exercem influência sobre o pesquisador social, assim como sua história pessoal e bagagem cultural. Por fim, deve ser considerada a contribuição da metodologia qualitativa na pesquisa em saúde, pois os serviços geralmente têm suas avaliações pautadas no monitoramento de indicadores e dados numéricos. Outros estudos sobre a atuação das equipes de saúde bucal em outras localidades brasileiras fazem-se necessários para elucidar as características, bem como as possibilidades de reestruturação e fortalecimento desta atuação.

 

Contribuição dos autores

Soares EF participou do delineamento e execução do projeto, análise e interpretação dos dados, redação e aprovação da versão final do artigo. Reis SCGB colaborou na análise dos dados, redação e aprovação da versão final do artigo. Freire MCM contribuiu na orientação do trabalho, concepção e delineamento do estudo, análise dos dados, redação e aprovação da versão final do artigo.

 

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Endereço para correspondência:
Maria do Carmo Matias Freire
- Departamento de Ciências Estomatológicas,
Faculdade de Odontologia,
Universidade Federal de Goiás,
Praça Universitária,
Setor Universitário,
Goiânia-GO, Brasil.
CEP: 74605-220
E-mail: mcmfreire@yahoo.com.br

Recebido em 05/11/2012
Aprovado em 26/07/2013

 

 

*Artigo baseado em dissertação de Mestrado em Odontologia na Universidade Federal de Goiás, defendida pela autora principal.