SciELO - Scientific Electronic Library Online

 
vol.23 número2Prevalência e fatores associados à insatisfação com a imagem corporal de adolescentes de escolas do Ensino Médio da zona rural da região sul do Rio Grande do Sul, 2012Caracterização das vítimas e dos acidentes de trabalho com material biológico atendidas em um hospital público do Paraná, 2012 índice de autoresíndice de assuntospesquisa de artigos
Home Pagelista alfabética de periódicos  

Serviços Personalizados

Journal

Artigo

Indicadores

  • Não possue artigos citadosCitado por SciELO

Links relacionados

  • Não possue artigos similaresSimilares em SciELO

Compartilhar


Epidemiologia e Serviços de Saúde

versão impressa ISSN 1679-4974versão On-line ISSN 2237-9622

Epidemiol. Serv. Saúde v.23 n.2 Brasília jun. 2014

 

http://dx.doi.org/10.5123/S1679-49742014000200014

ARTIGO ORIGINAL

 

Insegurança alimentar na área de abrangência do Núcleo de Apoio à Saúde da Família em Itumbiara, Goiás*

 

Food insecurity in the family health support unit coverage area in Itumbiara, Goiás, Brazil

 

 

Maria do Rosário Gondim PeixotoI; Kaline RamosII; Karine Anusca MartinsI; Raquel Machado SchincagliaII; Lana Angélica Braudes-SilvaII

IFaculdade de Nutrição, Universidade Federal de Goiás, Goiânia-GO, Brasil
IIPrograma de Pós-Graduação da Faculdade de Nutrição, Universidade Federal de Goiás, Goiânia-GO, Brasil

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

OBJETIVO: estimar a prevalência de insegurança alimentar (IA) e fatores associados na população da área de abrangência do Núcleo de Apoio à Saúde da Família (NASF) em Itumbiara-GO.
MÉTODOS: realizou-se estudo transversal; utilizou-se a Escala Brasileira de Insegurança Alimentar e questionário padronizado; calcularam-se razões de prevalência (RP) e respectivos intervalos de confiança de 95% (IC95%) pela regressão de Poisson.
RESULTADOS: avaliaram-se 356 domicílios, a prevalência de IA foi de 51,4% (36,2% com IA leve; 11,3% moderada; e 3,9% grave); a IA esteve associada a (i) residir em moradia com acabamento incompleto (RP=1,3; IC95% 1,0-1,5), (ii) ter mais de cinco moradores por domicílio (RP=1,3; IC95% 1,1-1,6), (iii) pertencer às classes econômicas C (RP=1,6; IC95% 1,0-2,5) e D/E (RP=2,1; IC95% 1,3-3,2) e (iv) ser beneficiário do Programa Bolsa Família (RP=1,3; IC95% 1,1-1,6).
CONCLUSÃO: a prevalência de insegurança alimentar foi elevada e maior nas famílias maiores e mais pobres.

Palavras-chave: Segurança Alimentar e Nutricional; Atenção Primária à Saúde; Programas e Políticas de Nutrição e Alimentação; Saúde da Família; Estudos Transversais.


ABSTRACT

OBJECTIVE: to estimate the food insecurity (FI) prevalence and associated factors in the population of the area covered by the Family Health Support Unit (FHSU) of itumbiara, Goiás.
METHODS: a cross-sectional study was conducted using the Brazilian Food insecurity Scale and a standardized questionnaire. Prevalence ratios (PR) and their 95% confidence intervals % (95% CI) were calculated using Poisson regression.
RESULTS: 356 households were studied and FI prevalence was 51.4% (36.2% with slight FI, 11.3% moderate and 3.9% severe). FI was associated with: living in unfinished dwellings (PR=1.3; 95% CI 1.0-1.5); more than five residents per household (PR=1.3; 95% CI 1.1-1.6); belonging to economic classes C (PR=1.6; 95% CI 1.0-2.5) and D/E (PR=2.1; 95% CI 1.3-3.2); and participation in the Bolsa Familia Programme (PR = 1.3; 95% CI 1.1-1.6).
CONCLUSION: food insecurity is identified in most of the population served by FHSU, being more prevalent in larger and poorer families.

Key words: Food Security; Primary Health Care; Nutrition Programs and Policies; Family Health; Cross-Sectional Studies.


 

 

Introdução

A segurança alimentar e nutricional (SAN) consiste no acesso a uma alimentação de qualidade e em quantidade suficiente, de modo contínuo e permanente, que seja promotora de saúde, respeite a diversidade cultural e seja ambiental, econômica e socialmente sustentável.1 As duas dimensões da SAN, a alimentar e a nutricional, são propostas de forma articulada. A dimensão alimentar refere-se à disponibilidade, incluindo produção, comercialização e acesso ao alimento, e a nutricional está relacionada à escolha do alimento, seu preparo e consumo e sua relação com a saúde e utilização pelo organismo.2

Diversos fatores interferem na segurança alimentar (SA): indisponibilidade de alimentos, poder aquisitivo insuficiente ou uso indevido desse recurso para a alimentação familiar.3 Portanto, identificar as famílias mais vulneráveis à insegurança alimentar e compreender suas causas e seus efeitos são fundamentais para encontrar formas viáveis de solução do problema.4-6

Os resultados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD) realizada em 2009 mostraram que houve uma redução na prevalência de insegurança alimentar na população brasileira, de 34,8 para 30,2% em comparação ao resultado apresentado em 2004, quando da primeira pesquisa. Entretanto, nesse mesmo período, no estado de Goiás, o nível de insegurança alimentar aumentou de 34,5 para 37,8%, ou mais especificamente: o nível de insegurança alimentar leve em Goiás passou de 18,0 para 25,6%; o nível de segurança alimentar moderada, de 11,6 para 7,1%; e o nível de segurança alimentar grave, de 4,9 para 5,1%.7,8

Vários estudos utilizam a Escala Brasileira de Insegurança Alimentar (EBIA) e alertam os gestores para políticas públicas voltadas às populações vulneráveis ou sob risco de insegurança alimentar em diferentes comunidades brasileiras, como os povos indígenas,9,10 quilombolas,11 populações rurais,6 zonas urbanas de grandes cidades,12,13 e diferentes faixas etárias, como idosos14 e crianças.15 Todavia faltam estudos sobre o tema na população atendida pelo Sistema Único de Saúde (SUS) em municípios do estado de Goiás.

A EBIA pode constituir uma importante ferramenta ao alcance da equipe do Núcleo de Apoio à Saúde da Família (NASF) para investigar a situação de insegurança alimentar da população, com a identificação de áreas geográficas, segmentos sociais e grupos populacionais mais vulneráveis às iniquidades sociais e aos agravos nutricionais em âmbito local. Sua utilização pelas equipes da Estratégia Saúde da Família (eESF) em suas intervenções deverá contribuir para aumentar a capacidade de resolver problemas de saúde.

O presente estudo teve como objetivo identificar a prevalência de insegurança alimentar e fatores associados na população da área de abrangência do NASF do município de Itumbiara, estado de Goiás, Brasil.

 

Métodos

Realizou-se estudo transversal em Itumbiara, município de médio porte localizado ao sul do estado de Goiás, no vale do Rio Paranaíba, distanciado aproximadamente 200 quilômetros da capital Goiânia, na divisa com o estado de Minas Gerais. A região é reconhecida por terras férteis e tem na agricultura sua principal fonte de recursos. Nos últimos anos, contudo, a agricultura regional perdeu espaço para a indústria, principalmente no ramo de metalúrgicas, calçados e têxteis, mecânica e alimentação. Em 2010, Itumbiara-GO contava 92.883 habitantes, um produto interno bruto (PIB) per capita de R$ 22.289,09 e seu índice de desenvolvimento humano (IDH) era de 0,782.16

No ano de 2010, a maioria da população da cidade (78%) era coberta por ao menos um modelo de Atenção Básica em Saúde: 70% eram cobertos pela Estratégia Saúde da Família (ESF) e 8% pelo Programa de Agentes Comunitários de Saúde (PACS).16 Naquele ano, o município de Itumbiara-GO era contemplado com apenas um NASF do tipo 1,17 sendo a equipe local composta por cinco profissionais de nível superior (assistente social, profissional de educação física, fisioterapeuta, nutricionista e psicóloga), a que se vinculavam oito equipes de ESF.

Considerando-se uma população de 45.000 pessoas domiciliadas na área de cobertura do NASF, uma prevalência de 37,8% de insegurança alimentar para o estado de Goiás em 2009,8 erro aceitável de 5,0% e nível de significância de 95,0%, obteve-se a amostra necessária de 356 domicílios. A este valor foram acrescidos 10,0%, para compensar possíveis perdas e recusas, obtendo-se uma amostra final de 395 domicílios em que se considerou como unidade de análise a família. O sorteio da amostra foi proporcional ao tamanho da população de cada eESF. Os domicílios foram selecionados por sorteio aleatório, com base nos mapas da área de abrangência de cada equipe.

Realizou-se a coleta de dados mediante questionário-padrão, aplicado em visitas domiciliares realizadas no período de julho de 2011 a março de 2012. Os dados do estudo foram coletados por acadêmicos do Curso de Farmácia da Universidade Estadual de Goiás, Campus Itumbiara, após treinamento, estudo-piloto e contato com os agentes comunitários de saúde (ACS) das eESF. Os ACS, como responsáveis pelo atendimento dos domicílios sorteados, apresentaram o entrevistador ao entrevistado.

Os dados foram fornecidos pelo responsável da alimentação da família, que recebeu os esclarecimentos devidos e, em seguida, o convite para participar da pesquisa mediante a assinatura do Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE).

As entrevistas tiveram duração aproximada de 30 minutos. Caso o responsável pela alimentação da família não estivesse presente, visitava-se o domicílio novamente, por até três vezes, em dias e horários diferentes da primeira visita. Após a terceira visita sem que se conseguisse contato com a família sorteada, considerou-se a perda do domicílio para a pesquisa.

As variáveis pesquisadas foram (i) insegurança alimentar (IA), (ii) socioeconômicas e demográficas, (iii) recebimento de doação de alimentos e (iv) participação no Programa Bolsa Família.

Na avaliação da insegurança alimentar, utilizou-se a EBIA para o registro das percepções e algumas dimensões das condições de insegurança alimentar. O instrumento dispõe de 15 perguntas centrais fechadas, referentes aos últimos três meses, e reflete desde a preocupação pela comida acabar antes de se poder comprar mais até a ausência total de comida, podendo afetar todos ou algum membro da família. Cada resposta afirmativa representou um ponto, e o somatório dos pontos avaliou a insuficiência alimentar em diferentes níveis de intensidade.18

Segundo a EBIA, caracteriza-se um estado de segurança alimentar (SA) quando todas as respostas ao questionário são negativas. Para as famílias com indivíduos menores de 18 anos de idade, a escala classifica como (i) IA leve quando o questionário apresenta de uma a cinco respostas positivas, (ii) IA moderada quando são seis a dez respostas positivas, e (iii) IA grave no caso de obter-se 11 a 15 respostas positivas. Para famílias constituídas somente de adultos, a escala caracteriza como (i) IA leve, uma a três respostas positivas, (ii) IA moderada, quatro a seis respostas positivas, e (iii) IA grave, sete a oito respostas positivas.18

As variáveis socioeconômicas e demográficas avaliadas foram: sexo do entrevistado (masculino e feminino); cor da pele autorreferida (branca, parda ou preta); atendimento pela rede pública de esgoto, pela rede pública de água e pela rede pública de coleta de lixo; tipo de moradia (acabamento completo, acabamento incompleto/outro material); número de moradores no domicílio (1 a 4; 5 ou mais); e classificação econômica (A/B, C, D/E) com base no Critério de Classificação Econômica da Associação Brasileira de Empresas de Pesquisa (ABEP).19 Aplicou-se formulário próprio para coleta desses dados, recebimento de doação de alimentos (sim/não) e participação no Programa Bolsa Família (sim/não).

Para o controle de qualidade da coleta e consistência dos dados, foram reaplicadas três questões previstas na EBIA em 10,0% dos domicílios visitados, selecionados mediante sorteio aleatório proporcional à amostra de cada eESF. Os dados da pesquisa foram duplamente digitados pelo programa Epi Info versão 3.5.3. Para checagem da consistência dos dados, utilizou-se o software Validate. Realizou-se a análise estatística pelo programa Stata versão 12.0.

As prevalências foram expressas em porcentagens, considerando-se um intervalo de confiança de 95,0% (IC95%). Nas análises realizadas, a variável 'insegurança alimentar' foi dicotomizada em (i) presença de insegurança alimentar (em qualquer grau: leve, moderada ou grave) e (ii) ausência de insegurança alimentar.

As análises bivariadas entre as variáveis estudadas e 'insegurança alimentar' (ausência/presença) foram realizadas pelo teste qui-quadrado (χ2). A razão de prevalência (RP), estimada pela regressão de Poisson, foi utilizada como medida de associação.20 Inicialmente, realizou-se a regressão de Poisson bruta e as variáveis que apresentaram p≤0,20 nessa análise foram testadas na análise multivariada, com estimativa robusta da variância. No modelo final, foram mantidas as variáveis que se associaram à insegurança alimentar (variável dependente) com nível de significância de 5,0%.

A pesquisa foi aprovada pelo Comitê de Ética em Pesquisa da Universidade Federal de Goiás, com a emissão do Parecer no 066/11, em cumprimento à Resolução do Conselho Nacional de Saúde - CNS no 466, de 13 de junho de 2013.

 

Resultados

Foram visitados 395 domicílios, dos quais 10% recusaram participar da pesquisa, resultando em uma amostra de 356 famílias. A maioria dos indivíduos responsáveis pela alimentação da família era do sexo feminino (85,4%). Em relação à cor de pele autorreferida, os maiores percentuais foram de brancos (44,9%) e pardos (43,0%); nenhum indivíduo referiu cor da pele indígena ou amarela. Quanto ao saneamento básico, observou-se que a maioria das famílias tinha seu esgoto tratado (89,6%) e contava com abastecimento público de água (87,9%); quase todas tinham seu lixo coletado pela rede pública (99,2%). As condições de moradia encontradas indicaram que um terço dos domicílios (31,1%) residia em construções de alvenaria com acabamento incompleto; a maioria dos domicílios era ocupada por até quatro moradores (77,2%). Quanto à classe econômica, 53,1% encontravam-se na classe C. Já o recebimento de doações de alimentos e dos benefícios do Programa Bolsa Família foi relatado pela minoria dos entrevistados: 5,6% e 21,4%, respectivamente. Entre as famílias entrevistadas, a maioria (51,4%; IC95% 46,1-56,7) apresentou insegurança alimentar, estando a maior parte em situação de insegurança alimentar leve (36,2%; IC95% 31,2-41,5) (Tabela 1).

 

 

Na análise bivariada (Tabela 2), as variáveis 'cor da pele autorreferida', 'tipo de moradia', 'quantidade de moradores no domicílio' e 'classificação econômica' apresentaram associação significativa com a insegurança alimentar (p<0,05). Observou-se uma maior porcentagem de insegurança alimentar entre pardos (60,8%), quando comparados aos brancos (41,9%). Para a variável 'tipo de moradia', encontrou-se elevado percentual de insegurança alimentar nos domicílios com acabamento incompleto (66,7%). Os domicílios que apresentavam cinco ou mais moradores encontraram-se em situação de maior insegurança alimentar (62,7%). As famílias das classes econômicas C (49,2%) e D/E (67,9%) apresentaram maior prevalência de insegurança alimentar em relação às das classes A/B. O recebimento de doação de alimentos não esteve estatisticamente associado à insegurança alimentar (p>0,05). O mesmo não ocorreu com as famílias beneficiárias do Programa Bolsa Família: 70,7% dessas famílias apresentaram situação de insegurança alimentar (p<0,05).

 

 

Após o controle das variáveis pela análise multivariada (Tabela 3), mantiveram associação estatisticamente significativa com insegurança alimentar as seguintes variáveis: tipo de moradia com acabamento incompleto (RP=1,3; IC95% 1,0-1,5; p=0,022); número de moradores por domicílio igual ou superior a 5 (RP=1,3; IC95% 1,1-1,6; p=0,010); classificação socioeconômica C (RP=1,6; IC95% 1,0-2,5; p=0,036) e D/E (RP=2,1; IC95% 1,3-3,2; p<0,001); e participação no Programa Bolsa Família (RP=1,3; IC95% 1,1-1,6; p=0,014).

 

 

Discussão

As análises deste estudo identificaram mais da metade das famílias em situação de insegurança alimentar - IA. A condição de IA esteve associada aos seguintes fatores: residir em moradia com acabamento incompleto; ter 5 ou mais moradores por domicílio, pertencer às classes econômicas C e D/E; e ser beneficiária do Programa Bolsa Família.

Esses resultados mostram uma prevalência mais elevada de insegurança alimentar na área de abrangência do NASF de Itumbiara-GO, comparativamente ao conjunto do estado de Goiás, conforme informações da PNAD 2009: enquanto o estado apresentou nível de insegurança alimentar de 37,8%,8 o percentual correspondente à área de abrangência do NASF do município foi de 51,4%.

Condições mais precárias de insegurança alimentar são observadas em regiões com baixo IDH. Nessa perspectiva, cidades com IDH maiores possuem menores prevalências de IA. Um município do estado da Paraíba, caracterizado por baixo IDH (0,527), apresentou IA em quase 90,0% das famílias, com predominância de elevados níveis de insegurança alimentar moderada e grave.14 Em Pelotas-RS, cujo IDH é de 0,816, os resultados mostraram uma prevalência de insegurança alimentar inferior à do presente estudo, de apenas 11,0%.13 Itumbiara-GO, que possui um IDH de 0,782, apresentou um valor de IA intermediário, situação parecida à de Duque de Caxias-RJ, com IDH de 0,753 e IA de 53,8%.21

As desigualdades na prevalência de insegurança alimentar são expressas em âmbito nacional, estadual e municipal.22 Estudo apontou que o Centro-Oeste, apesar de ocupar os primeiros lugares na produção agropecuária brasileira (soja e carne bovina), apresentou a maior desigualdade de distribuição de renda entre todas as macrorregiões do país, menor disponibilidade de calorias e baixa aquisição de frutas e hortaliças, situações que podem levar a um quadro de insegurança alimentar.23

Além da prevalência de insegurança alimentar variar de acordo com as discrepâncias sociais e econômicas intraestaduais, refletidas nos municípios,22,24 cabe ressaltar que essa prevalência pode variar de acordo com a região ou a população-alvo de cada município. Em uma região de alta vulnerabilidade social, localizada na cidade de São Paulo-SP, identificou-se a presença de elevados índices de insegurança alimentar (88,0%) em famílias acompanhadas por uma instituição.25

Nessa perspectiva, a mensuração da segurança alimentar pela EBIA pode ser um importante indicador de monitoramento da iniquidade, de maneira a complementar um conjunto de indicadores sociais ou, mesmo de forma isolada, identificar grupos sociais sob vulnerabilidade.12

A vulnerabilidade social é um dos indicadores mais sensíveis relacionados à insegurança alimentar, na medida em que é capaz de influenciar o poder de compra suficiente para assegurar condições básicas da alimentação. No presente estudo, verificou-se uma prevalência de insegurança alimentar, para a classe C, 1,6 vezes maior, e para as classes D/E, 2,1 vezes maior, na comparação com as classes A/B. Outras pesquisas associaram maior prevalência de insegurança alimentar entre as famílias de classes econômicas mais baixas.8,9,14,21,25-27

O tipo de moradia-construção com acabamento incompleto foi uma variável que também se mostrou associada à insegurança alimentar entre as famílias estudadas. As que residiam em domicílios com acabamento incompleto tiveram uma prevalência de insegurança alimentar 1,3 vezes maior que aquelas residentes em domicílios com acabamento completo: 66,7% versus 43,1%. Outros pesquisadores identificaram, nas famílias residentes em moradia inacabada ou precária, uma chance de insegurança alimentar moderada e grave 3,5 vezes maior e uma chance de insegurança alimentar leve 2,9 vezes maior, em relação aos domicílios que possuíam alvenaria acabada.12

No presente estudo, os domicílios com cinco ou mais moradores apresentaram prevalência 1,3 vezes maior de insegurança alimentar. Alguns autores também relacionaram a insegurança alimentar ao maior número de pessoas por domicílio13,21,25 ou ao número de pessoas por cômodo.15

O fornecimento de serviços públicos básicos, como água encanada, rede de esgoto tratada e coleta de lixo pela rede pública é determinante para o nível de insegurança alimentar.26 A elevada insegurança alimentar (85,1%) esteve associada à falta ou precariedade de saneamento básico nas comunidades remanescentes de quilombos do estado de Tocantins, evidenciando que uma minoria tem acesso aos seguintes serviços públicos: coleta de lixo (25,4%); abastecimento de água (31,3%); o esgotamento sanitário (8,5%).11 Entretanto, para a região metropolitana do Rio de Janeiro-RJ, pesquisadores não encontraram associação de insegurança alimentar com essas variáveis.21 Neste estudo, a ausência de associação dos serviços de saneamento básico com a insegurança alimentar, possivelmente, está relacionada à adequada prestação desses serviços pelo município.

As famílias que referiram receber doação de alimentos não apresentaram maior prevalência de insegurança alimentar. Pesquisa realizada com famílias acompanhadas pela Pastoral da Criança em uma região de alta vulnerabilidade social na cidade de São Paulo-SP encontrou mais da metade das famílias a receber algum tipo de auxílio ou doação, como alimento ou dinheiro.25 Em populações submetidas a estas condições, a população desenvolve estratégias para o enfrentamento de dificuldades com alimentação, a exemplo das redes de solidariedade familiar, comunitária ou institucional.

O Bolsa Família é o programa de cobertura populacional mais expressiva no Brasil e no Centro-Oeste, com garantia de renda mínima mensal para 686 mil famílias no estado de Goiás.28 O Programa Bolsa Família, analisado pela perspectiva dos dados disponibilizados pela PNAD 2004, assim como outros programas de transferência de renda, tem desempenhado um papel importante na redução da pobreza no Brasil.26 No município de Toledo-RS, a prevalência de insegurança alimentar de famílias beneficiárias de programas de transferência de renda esteve presente em 74,6% das famílias, das quais 5,9% apresentaram insegurança grave e 23,8% moderada.27 Segundo o mesmo estudo, encontrou-se associação de insegurança alimentar com as famílias titulares de direitos do Bolsa Família: 70,7% dessas famílias apresentaram algum nível de insegurança alimentar, uma prevalência 1,3 vezes maior do que entre aquelas que não recebiam o benefício.27

O Instituto Brasileiro de Análises Sociais e Econômicas (Ibase)28 apresentou as repercussões do Bolsa Família na segurança alimentar de cinco mil titulares do programa, em 229 municípios brasileiros do Nordeste, Centro-Oeste, Norte, Sudeste e Sul. A pesquisa identificou alta prevalência de insegurança alimentar: 21,0% de IA grave; 34,0% de IA moderada; e 28,0% de IA leve. Ainda segundo o Ibase, não obstante serem titulares de direito do programa, a situação de insegurança alimentar dessas famílias ainda é elevada.28 Contudo, publicações dos anos de 2012 e 2013 verificaram que as famílias beneficiadas aumentaram o consumo de alimentos, principalmente daqueles que integram a cesta básica brasileira, assim como de bens prioritários que aliviam a situação de extrema pobreza.29,30 Nas regiões com elevadas concentrações de pobreza e insegurança alimentar, sem a presença do Bolsa Família e sua contribuição para ampliar o consumo de alimentos, acredita-se que os beneficiários do programa poderiam levar mais tempo para saírem da situação de insegurança alimentar.29

Embora Itumbiara-GO seja polo de agroindústrias e apresente um IDH considerado médio, a maioria das famílias da área de abrangência do NASF apresentou insegurança alimentar. O tipo de moradia com acabamento incompleto, cinco ou mais moradores por domicílio, classes econômicas mais baixas e participantes do Programa Bolsa Família apresentaram maior prevalência de insegurança alimentar. Conforme o esperado, a insegurança alimentar foi mais prevalente nas famílias com condições de vida mais precárias, reafirmando a importância da abordagem e entendimento da questão em toda sua complexidade para o devido planejamento e execução de políticas públicas mais efetivas de promoção da segurança alimentar.

O uso da Escala Brasileira de Insegurança Alimentar - EBIA - apresentou uma limitação para este estudo: o chamado 'viés de prestígio', quando as pessoas informam respostas errôneas com a intenção de receberem benefícios, como a doação de alimentos. Por outro lado, a EBIA é de fácil aplicação e, por ser utilizada em vários estudos, possibilita comparações com os dados da literatura.

O estudo apresentou outras limitações. Seu delineamento transversal restringe a possibilidade de definição da relação causa-consequência entre as variáveis investigadas e a insegurança alimentar. Além disso, não foram avaliadas a qualidade microbiológica e a ausência de poluentes nos alimentos. E por último, utilizou-se a variável 'classe econômica', a partir da classificação da Associação Brasileira de Empresas de Pesquisa - ABEP -, talvez insuficiente para evidenciar o efeito positivo esperado dos benefícios do Bolsa Família na melhoria da segurança alimentar das famílias atendidas pelo programa.

Em contrapartida, o estudo pôde agregar pontos positivos ao utilizar um questionário adicional que suprisse a falta de algumas informações importantes para a compreensão da insegurança alimentar, tais como saneamento básico, tipo de moradia e quantidade de moradores por domicílio.

Outrossim, a EBIA pode ser uma importante ferramenta para a equipe do NASF. Enquanto um bom indicador das famílias vulneráveis à segurança alimentar, a escala pode contribuir com as eESF no planejamento e organização das ações de cuidado nutricional local e no aprimoramento da qualidade dos serviços e melhoria da resolubilidade dessas equipes, atuando de forma efetiva sobre os determinantes dos agravos e problemas alimentares que acometem a população de sua área de abrangência. Ressalta-se que o planejamento dessas ações deve acontecer de forma conjunta, entre o Núcleo de Apoio à Saúde da Família e as equipes da Estratégia Saúde da Família, de modo que todos possam priorizar a construção de objetivos comuns e trabalhar por eles, garantindo a segurança alimentar, a qual, mais além do setor Saúde, necessita do apoio de uma rede intersetorial com participação do setor público e de toda a sociedade.

 

Contribuição das autoras

Peixoto MRG e Ramos K participaram da concepção, delineamento do estudo, análise e interpretação dos dados.

Peixoto MRG, Ramos K, Martins KA, Schincaglia RM e Braudes-Silva LA contribuíram com a redação e revisão crítica do conteúdo intelectual do manuscrito.

Todas as autoras aprovaram a versão final do manuscrito e são responsáveis por todos os aspectos do trabalho, incluindo a garantia de sua precisão e integridade.

 

Referências

1. Brasil. Lei no 11.346, de 15 de setembro de 2006. Cria o Sistema Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional com vistas em assegurar o direito humano à alimentação adequada e dá outras providências. Diário Oficial da União, Brasília, p. 1, 18 set 2006. Seção 1.

2. Brasil. Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional. Lei de Segurança Alimentar e Nutricional. Lei no 11.346, de 15 de setembro de 2006. Diário Oficial da União, Brasília, p. 1, 18 set 2006. Seção 1.

3. Organização das Nações Unidas para Alimentação e Agricultura. Fundo Internacional de Desenvolvimento Agrícola. Programa Mundial de Alimentos. O estado da insegurança alimentar no mundo [Internet]. [citado 2012 abr 20]. Disponível em: http://www.fao.org/publications/sofi-2010/es

4. Câmara Interministerial de Segurança Alimentar e Nutricional. Plano Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional-2012/2015. Brasília: Câmara Interministerial de Segurança Alimentar e Nutricional; 2011.

5. Kepple AW, Segall-Corrêa AM. Conceituando e medindo segurança alimentar e nutricional. Cien Saude Colet. 2011 jan;16(1):187-99.

6. Segall-Corrêa AM, Sampaio MFA, Marin-Leon L, Panigassi G, Maranha LK. (In)segurança alimentar no Brasil: validação de metodologia para acompanhamento e avaliação. Organização Panamericana de Saúde, Universidade Estadual de Campinas Departamento de Medicina Preventiva e Social; 2004. (Relatório Técnico).

7. Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística. Pesquisa nacional por amostra de domicílios 2004: segurança alimentar. Rio de Janeiro: Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística; 2006.

8. Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística. Pesquisa nacional por amostra de domicílios 2004/2009: segurança alimentar. Rio de Janeiro: Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística; 2010.

9. Favaro T, Ribas DLB, Zorzatto JR, Segall-Corrêa AM, Panigassi G. Segurança alimentar em famílias indígenas Teréna, Mato Grosso do Sul, Brasil. Cad Saude Publica. 2007 abr;23(4):785-93.

10. Yuyama LKO, Py-Daniel V, Ishikawa NK, Medeiros JF, Kepple AW, Segall-Corrêa AM. Percepção e compreensão dos conceitos contidos na escala brasileira de insegurança alimentar, em comunidades indígenas no estado do Amazonas, Brasil. Rev Nutr. 2008 jul-ago;21(suppl):s53-63.

11. Monego ET, Peixoto MRG, Cordeiro MM, Costa RM. (In)segurança alimentar de comunidades quilombolas de Tocantins. Seg Alimen Nutr. 2010;17(1):37-47.

12. Panigassi G, Segal-Corrêa AM, Marín-León L, Pérez-Escamilla R, Sampaio MFA, Maranha LK. Insegurança alimentar como indicador de iniqüidade: análise de inquérito populacional. Cad Saude Publica. 2008 out;24(10):2376-84.

13. Santos JV, Gigante DP, Domingues MR. Prevalência de insegurança alimentar em Pelotas, Rio Grande do Sul, Brasil, e estado nutricional de indivíduos que vivem nessa condição. Cad Saude Publica. 2010 jan;26(1):41-9.

14. Marín-León L, Segal-Corrêa AM, Panigassi G, Maranha LK, Sampaio MFA, Pérez-Escamilla R. A percepção de insegurança alimentar em famílias com idosos em Campinas, São Paulo, Brasil. Cad Saude Publica. 2005;21(5):1433-40.

15. Oliveira JS, Lira PIC, Andrade SLLS, Sales AC, Maia SR, Batista-Filho M. Insegurança alimentar e estado nutricional de crianças de São João do Tigre, no semi-árido do Nordeste. Rev Bras Epidemiol. 2009 set;12(3):453-65.

16. Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística. Cidades@ [Internet]. [citado 2012 jan 2]. Disponível em: http://www.ibge.gov.br/cidadesat/painel/painel.php?codmun=521150

17. Ministério da Saúde (BR). Secretaria de Atenção à Saúde. Departamento de Atenção Básica. Diretrizes do Núcleo de Apoio da Saúde da Família; 2009. (Série A. Normas e Manuais Técnicos. Cadernos de Atenção Básica; 27).

18. Segall-Corrêa AM, Marin-León L, Melgar-Quinonez H, Perez-Escamilla R. Nota Técnica no 128/2010/ DA/SAGI/MDS. Relatório da Oficina Técnica para Análise da Escala Brasileira de Medida Domiciliar de Insegurança Alimentar: aprimoramento da escala brasileira de medida domiciliar da insegurança alimentar. Brasília; 2010.

19. Associação Brasileira de Empresas de Pesquisa. Critério de Classificação Econômica Brasil. São Paulo: Associação Brasileira de Empresas de Pesquisa; 2012. 4 p.

20. Barros AJD, Hirakata VN. Alternatives for logistic regression in cross-sectional studies: an empirical comparison of models that directly estimate the prevalence ratio. BMC Med Res Methodol. 2003 Oct;20:3-21.

21. Salles-Costa R, Pereira RA, Vasconcellos MTL, Veiga GV, Marins VMR, Jardim BC, et al. Associação entre fatores socioeconômicos e insegurança alimentar: estudo de base populacional na Região Metropolitana do Rio de Janeiro, Brasil. Rev Nutr. 2011 jul-ago;21(suppl):99-109.

22. Gubert MB, Benício MHD'A, Santos LMP. Estimativas de insegurança alimentar grave nos municípios brasileiros. Cad Saude Publica. 2010 ago;26(8):1595-605.

23. Tinoco SGG, Mendes JFR, Figueiredo AC, Costa APR, Leão MM, Santos LMP. Segurança alimentar e nutricional na Região Centro-Oeste: particularidades e contrastes. Segur Aliment Nutr, Campinas. 2011;18(1):58-72.

24. Vianna RPT, Segall-Corrêa AM. Insegurança alimentar das famílias residentes em municípios do interior do estado da Parada, Brasil. Rev Nutr. 2008 jul-ago;21(suppl):111-22.

25. Pereira DA, Vieira VL, Fiore EG, Cervato-Mancuso AM. Insegurança alimentar em região de alta vulnerabilidade social da cidade de São Paulo. Segur Aliment Nutr, Campinas. 2006;13(2):34-42.

26. Hoffmann R. Determinantes da insegurança alimentar no Brasil: análise dos dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios de 2004. Segur Aliment Nutr, Campinas. 2008;15(1):49-61.

27. Anschau FR, Matsuo T, Segall-Corrêa AM. Insegurança alimentar entre beneficiários de programas de transferência de renda. Rev Nutr. 2012 mar-abr;25(2):177-89.

28. Instituto Brasileiro de Análises Sociais e Econômicas. Repercussões do Programa Bolsa Família na Segurança Alimentar e Nutricional das Famílias Beneficiadas: documento síntese. Rio de Janeiro: Instituto Brasileiro de Análises Sociais e Econômicas; 2008.

29. Baptistela J. Avaliação de programas sociais: uma análise do impacto do Bolsa Família sobre o consumo de alimentos [dissertação]. Sorocaba (SP): Universidade Federal de São Carlos; 2012.

30. Ferrario MN. Análise do impacto dos programas de transferência de renda sobre as despesas familiares com o consumo [tese]. Piracicaba (SP): Universidade de São Paulo; 2013.

 

 

Endereço para correspondência:
Maria do Rosário Gondim Peixoto
-
Universidade Federal de Goiás,
Faculdade de Nutrição, Setor Leste Universitário,
Rua 227, Quadra 68, S/N,
Goiânia-GO, Brasil. CEP: 74605-080
E-mail: mrg.peixoto@uol.com.br

Recebido em 01/08/2013
Aprovado em 17/02/2014

 

 

*Artigo originário da dissertação 'Insegurança Alimentar na Área de Abrangência do Núcleo de Apoio à Saúde da Família em Município de Médio Porte de Goiás', defendida por Kaline Ramos e apresentada junto ao Programa de Pós-Graduação da Faculdade de Nutrição da Universidade Federal de Goiás, em fevereiro de 2013.