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Epidemiologia e Serviços de Saúde

versão impressa ISSN 1679-4974versão On-line ISSN 2237-9622

Epidemiol. Serv. Saúde v.24 n.3 Brasília set. 2015

 

http://dx.doi.org/10.5123/S1679-49742015000300001

EDITORIAL

 

Discriminação nos serviços de saúde

 

 

João Luiz BastosI,*; Leila Posenato GarciaII

IUniversidade Federal de Santa Catarina, Departamento de Saúde Pública, Florianópolis-SC, Brasil
IIInstituto de Pesquisa Econômica Aplicada, Diretoria de Estudos Setoriais, Brasília-DF, Brasil

 

 

O problema da discriminação nos serviços de saúde tem mobilizado distintos atores sociais em variados países e regiões do mundo. Embora inicialmente motivado por alguns tipos particulares de discriminação, como o de raça, este movimento tem se pautado mais recentemente por múltiplas questões e características identitárias.

Por exemplo, nos Estados Unidos da América, país em que a ênfase nas desigualdades raciais tem, por vezes, ocultado a importância da classe social para as injustiças sociais em saúde, a abordagem da discriminação tem adquirido outros contornos. Com a recente expansão do Medicaid - programa de saúde destinado a segmentos pobres da população -, ocorrida em 2014, o estigma de classe contra seus usuários tem emergido como aspecto preocupante. A inclusão de mais 12 milhões de adultos de baixa renda no Medicaid tem sido associada a experiências estigmatizantes vinculadas à noção de classe e a uma sorte de eventos negativos, entre eles a falta de resolutividade e a insatisfação com o cuidado.1

Por sua vez, na Austrália, a ampliação do acesso de povos aborígenes a centros de saúde, por meio da provisão de cuidado sensível às suas especificidades culturais, acionou diversos setores daquele país contra diversas discriminações de natureza étnica.2

No Brasil, os serviços de saúde, tanto públicos quanto privados, acabam por reproduzir comportamentos discriminatórios perante os usuários, não obstante seu papel dever ser também defender direitos humanos fundamentais e reduzir iniquidades em saúde, com vistas ao alcance da equidade. Uma série de denúncias e estudos revelam o tratamento potencialmente discriminatório a determinados usuários nos serviços de saúde.3-5 Um exemplo é a pesquisa de Quadros et al.,4 que demonstrou ser menor o acesso ao exame para detecção de câncer de colo uterino entre mulheres não brancas, apesar de estas apresentarem frequência de consultas ginecológicas semelhante à das mulheres brancas.

A preocupação com a discriminação de forma geral e aquela relacionada aos serviços de saúde no Brasil pode ser observada em diferentes âmbitos, incluindo o da formulação de leis e políticas públicas, bem como o da produção de conhecimento científico. A própria Constituição Federal afirma, em seu preâmbulo e no art. 3°, os valores da igualdade entre os seres humanos e a necessidade de combater o preconceito de todos os tipos, além de caracterizar o racismo como prática criminosa. No âmbito das políticas públicas, há que se destacar o importante papel da Política Nacional de Saúde Integral da População Negra6 e da Política Nacional de Humanização da Atenção e Gestão do Sistema Único de Saúde (PNH).7 Em consonância, o racismo, como forma de discriminação nos serviços de saúde, tem sido alvo de campanha do Ministério da Saúde, cujo slogan é "Racismo faz mal à saúde". A campanha busca promover o envolvimento de usuários e trabalhadores do sistema no enfrentamento do racismo e divulgar o Disque Saúde 136, espaço para o acolhimento de denúncias de discriminação.

A inexistência de um fórum especificamente focado na discriminação nos serviços de saúde brasileiros suscitou o destaque para o tema neste número da Epidemiologia e Serviços de Saúde: revista do Sistema Único de Saúde do Brasil (RESS), com a publicação de dois artigos originais, uma revisão de literatura e um artigo de opinião.

O artigo de opinião "Discriminação e saúde: um problema de acesso" circunscreve a discriminação como uma barreira à prestação do cuidado de qualidade em saúde. Ademais, o texto situa criticamente a importância da discriminação no campo da saúde coletiva, pontuando a necessidade de investigá-la não como um determinante social de condições adversas de saúde, mas como uma força produtora de iniquidades no plano da atenção aos usuários. São igualmente relevantes as observações sobre uma possível agenda de pesquisa na área e alguns elementos a se considerar no enfrentamento do problema.8

Por seu turno, o artigo original, intitulado "Experiências de discriminação relacionadas aos serviços de saúde: análise exploratória em duas capitais do Sul do Brasil" resulta da análise dos dados de dois inquéritos, um realizado com usuários de serviços públicos de saúde e outro com estudantes universitários. A frequência de discriminação relacionada aos serviços de saúde esteve entre 7% e 14%, e o principal motivo para a discriminação apontado pelos respondentes foi a baixa posição socioeconômica. Fumantes e autodeclarados negros também relataram maiores frequências de discriminação.9

A revisão "Gênero, estigma e saúde: reflexões a partir da prostituição, do aborto e do HIV/Aids entre mulheres" aponta que a vulnerabilidade social das mulheres que se prostituem, abortam ou estão infectadas pelo HIV é aumentada. As relações complexas entre os agravos à saúde, os estereótipos de gênero, o estigma da Aids e as desigualdades sociais prejudicam o acesso destas mulheres aos serviços de saúde e potencializam os impactos negativos sobre sua situação de saúde.10

Com a pesquisa original "A dimensão ético-estético-política da Humanização do SUS: estudo avaliativo da formação de apoiadores de Santa Catarina (2012-2014)", abordam-se resultados de uma investigação multicêntrica sobre a PNH, com recorte específico para o estado de Santa Catarina. O estudo revela como o paradigma ético-estético-político pode ser incorporado por apoiadores institucionais da referida política, possibilitando que um novo modelo de atenção à saúde seja construído: aquele pautado por valores como "inclusão", "cuidado", "integralidade", "alteridade" e "humanização", entre outros valores e princípios.11

Enfim, espera-se que esta coletânea estimule a reflexão, produção de novos conhecimentos na área e, acima de tudo, colabore para a redução dos processos discriminatórios que se entranham nas diferentes instâncias de nossos serviços de saúde, contribuindo para a consolidação de um Sistema Único de Saúde ainda mais justo e não discriminatório.

Este número da revista Epidemiologia e Serviços de Saúde traz ainda interessante artigo sobre uso da análise de séries temporais em estudos epidemiológicos,12 como parte da série Aplicações da Epidemiologia, e a tradução da mais atual versão das Recomendações para elaboração, redação, edição e publicação de trabalhos acadêmicos em periódicos médicos, do Comitê Internacional de Editores de Periódicos Médicos (International Committee ofMedicalJournal Editors - ICMJE).13

Boa leitura!

 

Referências

1. Allen H, Wright BJ, Harding K, Broffman L. The role of stigma in access to health care for the poor. Milbank Q. 2014 Jun;92(2):289-318.

2. Hayman NE, White NE, Spurling GK. Improving Indigenous patients' access to mainstream health services: the Inala experience. Med J Aust. 2009 May;190(10):604-6.

3. Cabral ED, Caldas Jr AF, Cabral HA. Influence of the patient's race on the dentist's decision to extract or retain a decayed tooth. Community Dent Oral Epidemiol. 2005 Dec;33(6):461-6.

4. Quadros CA, Victora CG, Costa JS. Coverage and focus of a cervical cancer prevention program in southern Brazil. Rev Panam Salud Publica. 2004 Oct;16(4):223-32.

5. Leal MC, Gama SG, Cunha CB. Desigualdades raciais, sociodemográficas e na assistência ao pré-natal e ao parto, 1999-2001. Rev Saude Publica. 2005 jan;39(1):100-7.

6. Brasil. Ministério da Saúde. Portaria n° 992 de 13 de maio de 2009. Institui a Política Nacional de Saúde Integral da População Negra. Diário Oficial da República Federativa do Brasil, Brasília (DF), 2009 mai 14; Seção 1:31.

7. Ministério da Saúde (BR). Secretaria-Executiva. Núcleo Técnico da Política Nacional de Humanização. HumanizaSUS - Política Nacional de Humanização: a humanização como eixo norteador das práticas de atenção e gestão em todas as instâncias do SUS. Brasília: Ministério da Saúde; 2004. (Série B. Textos básicos de saúde).

8. Massignam FM, Bastos JLD, Nedel FB. Discriminação e saúde: um problema de acesso. Epidemiol Serv Saude. 2015 jul-set;24(3):541-4.

9. Baumgarten A, Peron TB, Peron JL, Toassi RFC, Hilgert JB, Hugo FN, et al. Experiências de discriminação relacionadas aos serviços de saúde: análise exploratória em duas capitais do Sul do Brasil. Epidemiol Serv Saude. 2015 jul-set;24(3):353-62.

10. Villela WV, Monteiro S. Gênero, estigma e saúde: reflexões a partir da prostituição, do aborto e do HIV/Aids entre mulheres. Epidemiol Serv Saude. 2015 jul-set;24(3):531-40.

11. Verdi M, Finkler M, Matias MCS. A dimensão ético-estético-política da Humanização do SUS: estudo avaliativo da formação de apoiadores de Santa Catarina (2012-2014). Epidemiol Serv Saude. 2015 jul-set;24(3):363-72.

12. Antunes JLF, Cardoso MRA. Uso da análise de séries temporais em estudos epidemiológicos. Epidemiol Serv Saude. 2015 jul-set;24(3):565-76.

13. Recomendações para a elaboração, redação, edição e publicação de trabalhos acadêmicos em periódicos médicos. Epidemiol Serv Saude. 2015 jul-set;24(3):709-32.

 

 

* Editor Científico convidado para os artigos sobre discriminação nos serviços de saúde, publicados neste número.