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Epidemiologia e Serviços de Saúde

versão impressa ISSN 1679-4974versão On-line ISSN 2237-9622

Epidemiol. Serv. Saúde v.24 n.3 Brasília set. 2015

 

http://dx.doi.org/10.5123/S1679-49742015000300007

ARTIGO ORIGINAL

 

Utilização dos serviços de saúde por adolescentes: estudo transversal de base populacional, Pelotas-RS, 2012*

 

Adolescent use of health services: a population-based cross-sectional study Pelotas-RS, Brazil, 2012

 

Uso de servicios de salud por adolescentes: estudio transversal de base poblacional Pelotas-RS, 2012

 

 

Bruno Pereira NunesI; Thaynã Ramos FloresI; Suele Manjourany Silva DuroI; Mirelle de Oliveira SaesII; Elaine TomasiI; Alitéia Dilélio SantiagoI; Elaine ThuméIII; Luiz Augusto FacchiniI

IUniversidade Federal de Pelotas, Programa de Pós-Graduação em Epidemiologia, Pelotas-RS, Brasil
IIUniversidade Federal do Rio Grande, Programa de Pós-Graduação em Ciências da Saúde, Rio Grande-RS, Brasil
IIIUniversidade Federal de Pelotas, Programa de Pós-Graduação em Enfermagem, Pelotas-RS, Brasil

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

OBJETIVO: descrever a prevalência e características da utilização dos serviços de saúde por adolescentes da zona urbana de Pelotas-RS, Brasil.
MÉTODOS: estudo transversal descritivo de base populacional, realizado com 743 adolescentes de 10 a 19 anos; o desfecho foi a utilização de serviços de saúde nos trinta dias anteriores à entrevista.
RESULTADOS:
23,0% (IC95% 19,4;26,6) dos adolescentes referiram utilizar serviços de saúde; destes, 38,0% utilizaram consultórios particulares ou de convênio e 32,2% utilizaram unidades básicas de saúde; o Sistema Único de Saúde financiou 52,1% dos atendimentos; os principais motivos para utilização foram problema de saúde (69,0%) e consultas de revisão (18,7%); as razões para escolha do serviço foram a proximidade do domicílio (23,4%), preferência por serviço geralmente utilizado (22,8%) e escolha dos pais ou responsável (21,1%).
CONCLUSÃO: o uso de serviços de saúde foi frequente e suas características podem contribuir para o planejamento da atenção à saúde direcionada aos adolescentes.

Palavras-chave: Adolescente; Atenção Primária à Saúde; Serviços de Saúde; Epidemiologia Descritiva; Desigualdades em Saúde.


ABSTRACT

OBJECTIVE: to describe the prevalence and characteristics of health service use by adolescents in the urban area of Pelotas-RS, Brazil.
METHODS: a population-based cross-sectional study was conducted with 743 adolescents aged 10 to 19 years; the outcome was health service use in the thirty days preceding the interview.
RESULTS: of the total sample, 23.0% (95%CI: 19.4;26.6) used health services; of these, 38% used private or health plan services and 32.2% used public health services; the SUS financed more than half (52.1%) of care; the main reasons for health service use was health problems (69.0%) and follow-up appointments (18.7%); the reasons for choosing the service were nearness to home (23.4%), preference for commonly used services (22.8%) and choice made by parents or guardians (21.1%).
CONCLUSION: health service use was high and its characteristics can contribute to the planning of adolescent health care.

Key words: Adolescent; Primary Health Care; Health Services; Epidemiology, Descriptive; Health Inequalities.


RESUMEN

OBJETIVO: describir la prevalencia y características del uso de los servicios de salud por adolescentes de la zona urbana de Pelotas-RS, Brasil.
MÉTODOS: estudio transversal descriptivo de base poblacional, realizado con 743 adolescentes entre 10 a 19 años; el variable dependiente fue el uso de servicios de salud en los treinta días anteriores a la entrevista.
RESULTADOS: 23.0% (IC95% 19,4;26,6) de adolescentes reportó utilizar servicios de salud; de estos, 38% utilizó consultorios particulares o de seguro de salud y 32,2% unidades básicas de salud; el Sistema Único de Saúde financió 52,1% de las atenciones; los principales motivos para el uso fueron problema de salud (69,0%) y consulta de chequeo (18,7%); las principales razones para elegir el servicio fueron la proximidad del domicilio (23,4%), servicio de uso general (22,8%) y elección del padre o responsable.
CONCLUSIONES: el uso de servicios de salud fue frecuente y sus características pueden contribuir a la planificación de la atención en salud dirigida a los adolescentes.

Palabras clave: Adolescente; Atención Primaria de Salud; Servicios de Salud; Epidemiología Descriptiva; Desigualdades en la Salud.


 

 

Introdução

A adolescência é o período do ciclo vital no qual ocorrem diversas mudanças psicológicas e fisiológicas,1-3 sendo considerado um importante período para a adoção de estilos de vida saudáveis, uma vez que hábitos adquiridos na infância e adolescência tendem a perdurar na vida adulta.4 Não obstante a adolescência ser considerada um período saudável da vida, com menor ocorrência de problemas de saúde em comparação a outras faixas etárias, deve-se ressaltar o aumento da violência e da mortalidade por causas externas nessa parcela da população.5,6

Sobre o perfil de procura dos adolescentes por assistência à saúde, há características que os diferenciam do restante da população como a não valorização de sintomas de menor gravidade e a falta de adesão a tratamentos e ações preventivas.7,8

No Brasil, informações sobre a utilização de serviços por esse grupo populacional são ainda escassas.7,9 Um estudo de base escolar mostrou que 47,7% dos entrevistados afirmaram ter procurado algum serviço de saúde nos últimos três meses.9 A descrição das características de utilização dos serviços de saúde, mediante inquéritos de base populacional, é fundamental para a criação e melhoria de ações direcionadas aos adolescentes.

O presente trabalho tem como objetivo determinar a prevalência e as características da utilização dos serviços de saúde por adolescentes da zona urbana do município de Pelotas, estado do Rio Grande do Sul, Brasil, no ano de 2012.

 

Métodos

Realizou-se um estudo transversal descritivo de base populacional com indivíduos de 10 a 19 anos de idade, participantes de um inquérito sobre a saúde de adolescentes, adultos e idosos realizado na zona urbana do município de Pelotas-RS, no ano de 2012. Maiores detalhes sobre a estratégia metodológica utilizada nesse inquérito podem ser obtidos em outra publicação.10

Em 2010, segundo dados do Censo Demográfico da Fundação Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), o município de Pelotas-RS possuía 328.275 habitantes e apresentava um índice de desenvolvimento humano municipal (IDHM) de 0,739. A rede de saúde era composta por 51 unidades básicas de saúde (UBS), um pronto-socorro municipal; cinco pronto-atendimentos (um público; e os demais, vinculados a planos de saúde); consultórios particulares; um Centro de Especialidades (CE) (público); sete Centros de Atenção Psicossocial (CAPS); cinco hospitais gerais e um psiquiátrico. A cobertura de Estratégia Saúde da Família (ESF) era de 21% da população do município em 2011.11

A seleção dessa amostra realizou-se em dois estágios, de forma aleatória. O primeiro estágio foi a seleção sistemática dos setores censitários de acordo com o Censo de 2010/IBGE, e o segundo, uma seleção sistemática dos domicílios. Os 495 setores censitários da cidade foram ordenados por sua numeração original. Esta estratégia permitiu a inclusão de domicílios de diferentes bairros da cidade na amostra e, consequentemente, diferentes níveis socioeconômicos.

Ao todo, foram selecionados 130 setores censitários e 1.722 domicílios, respeitando-se a estratégia de amostragem sistemática com probabilidade proporcional ao tamanho do setor. Em cada domicílio selecionado, todos os indivíduos na idade de 10 anos ou mais foram convidados a participar do estudo. Foram excluídos aqueles residindo em instituições ou com incapacidade emocional ou mental severa que os impossibilitasse de responder ao questionário. A presente análise foi realizada com adolescentes (10 a 19 anos de idade).

Para o cálculo de tamanho de amostra, utilizou-se nível de confiança de 95%, uma prevalência estimada de utilização de serviços de 16% ao mês, e erro aceitável de 4 pontos percentuais.9 Assim, seriam necessários 355 adolescentes para a realização do estudo. A amostra final consistiu de 743 adolescentes presentes nos domicílios, uma vez que o estudo fez parte de um inquérito de saúde que avaliou outros desfechos na população estudada.

Antes das entrevistas, todos os domicílios selecionados foram visitados pelos supervisores de campo. Estes entregavam aos moradores elegíveis uma carta de apresentação, antes de convidá-los a participar do estudo. Após o aceite dos moradores, era agendada a visita das entrevistadoras. Foram consideradas perdas e recusas as entrevistas não realizadas após três visitas-tentativas, em dias e horários diferentes, sendo uma dessas visitas realizada por um supervisor do estudo. Não houve reposição amostral.

Para controle de qualidade, foram adotadas estratégias de coleta de dados como, por exemplo, checagem de inconsistências no banco de dados. Após as entrevistas, como medida de controle da coleta, realizou-se uma nova visita a 10% dos indivíduos da amostra para a aplicação de um questionário reduzido, com 14 questões. A coleta de dados ocorreu entre fevereiro e junho de 2012. A aplicação dos questionários eletrônicos, estruturados com questões pré-codificadas, foi realizada por entrevistadoras treinadas para o uso de netbooks.

A utilização dos serviços de saúde foi verificada pela resposta à seguinte questão:

"Desde <dia do mês passado>, você foi atendido(a) em algum serviço de saúde?"

Antes de propor esta questão, a entrevistadora apresentava ao adolescente um texto introdutório no qual eram citados os tipos de serviços de saúde existentes no município de Pelotas-RS.

As variáveis independentes selecionadas foram:

- sexo (masculino; feminino);

- idade em anos completos (10 a 14; 15 a 19);

- cor da pele autorreferida (branca; preta; parda/ indígena/amarela);

- estuda atualmente (não; sim);

- trabalha atualmente (não; sim); e

- classificação econômica, operacionalizada pela Associação Brasileira de Empresas de Pesquisa -ABEP (categorias de classificação: A e B; C; D e E).12

Para a caracterização do último atendimento recebido no mês anterior à entrevista, foram utilizadas as seguintes variáveis:

- natureza jurídica do serviço de saúde (Sistema Único de Saúde [SUS]; convênio e plano de saúde; particular);

- local do atendimento (unidade básica de saúde [UBS]; consultório; pronto-socorro; pronto-atendimento; ambulatório da faculdade ou hospital; Centro de Atenção Psicossocial; Centro de Especialidades; hospital);

- motivo da escolha do serviço de saúde (mais próximo de casa; escolha dos pais ou responsáveis; serviço de saúde geralmente procurado; profissional de saúde geralmente procurado; facilidade para atendimento; encaminhamento; serviço gratuito; disponibilidade de horário do indivíduo); e

- motivo da utilização (problema de saúde; revisão; exames; receita ou atestado; consulta pré-natal; tomar medicações; pegar remédios; fisioterapia; exames preventivos). Para esta variável, os motivos da categoria 'problema de saúde' foram coletados de forma aberta e posteriormente categorizados em: problemas respiratórios; saúde bucal; dores; dermatológicos/alergias; acidentes/fraturas/lesões; geniturinários; gastrointestinais; saúde mental; oftalmológicos; osteomusculares; saúde da mulher; e outros.

Realizou-se análise descritiva com cálculo de prevalências e respectivos intervalos de confiança de 95% (IC95%). As diferenças nas prevalências foram avaliadas pelo teste de qui-quadrado para heterogeneidade. Valores de p menores que 0,05 foram considerados estatisticamente significativos. A análise foi realizada com auxílio do software Stata 12.1, utilizando-se o comando svyset para ter em conta o desenho amostral do estudo.

Também foi realizada a projeção das prevalências encontradas, com o propósito de estimar o número absoluto de adolescentes do município de Pelotas-RS que utilizaram os serviços de saúde. Nesse sentido, aplicou-se as prevalências encontradas para o número de adolescentes residentes na zona urbana de Pelotas-RS no ano de 2012, a partir da informação disponível no sítio eletrônico do IBGE.13

O projeto da pesquisa foi submetido e aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa da Faculdade de Medicina da Universidade Federal de Pelotas: Protocolo no 77/11. As entrevistas foram realizadas após assinatura do Termo de Consentimento Livre e Esclarecido pelos adolescentes maiores de 18 anos; e pelos responsáveis, no caso dos menores de 18 anos.

 

Resultados

Foram elegíveis 789 adolescentes para o estudo. As perdas e recusas foram de 6,1% (n=48), totalizando 743 adolescentes entrevistados. Destes, 171 (23,0%; IC95% 19,4;26,6) utilizaram os serviços de saúde no mês anterior à entrevista. A maioria dos adolescentes (71,6%; n=532) respondeu ao questionário sem ajuda de pais ou responsáveis, sendo que essa proporção diminuiu quanto mais jovem fosse o adolescente.

A maior parte da amostra era do sexo feminino (51,7%), na faixa etária de 15 a19 anos (52,5%) e de cor da pele branca (75,5%). Cerca de 90% dos adolescentes relataram estar estudando atualmente e 14,8% referiram estar trabalhando. Aproximadamente 50% dos adolescentes eram da classe econômica C. A utilização dos serviços de saúde no último mês foi maior entre meninas (27,9%; IC95% 23,3;32,5), comparadas aos meninos (17,8%; IC95% 13,4;22,2) (p=0,001). Não houve diferença estatisticamente significativa entre uso de serviços de saúde e idade, cor da pele, se estuda atualmente, se trabalha atualmente, e classificação econômica (Tabela 1).

 

 

O SUS financiou mais da metade (52,1%; IC95% 43,0;61,1) dos atendimentos representando, aproximadamente, 5.879 adolescentes atendidos por mês na zona urbana do município. Os atendimentos particulares e por convênio representaram 18,1% (IC95% 11,5;24,7) e 29,8% (IC95% 22,5;37,2), respectivamente. O serviço de saúde mais utilizado, nos últimos 30 dias, foi o consultório particular (38,0%) seguido da UBS (32,2%) e dos pronto-atendimentos (12,9%), estimando-se que 4.287, 3.633 e 1.456 adolescentes seriam atendidos nesses serviços de saúde, respectivamente. Entre os motivos de escolha do serviço de saúde, predominaram: serviço de saúde mais próximo de casa (23,4%); serviço de saúde geralmente procurado (22,8%); e escolha dos pais ou responsáveis (21,1%). Algum problema de saúde (69,0%) e revisão (18,7%) foram os motivos mais frequentes para a busca por atendimento (Tabela 2). Entre os problemas de saúde referidos, as maiores proporções foram relacionadas a problemas respiratórios (26,3%), problemas de saúde bucal (13,6%) e dores em geral (12,7%) (Tabela 3).

 

 

 

 

Discussão

Os resultados encontrados evidenciaram que, aproximadamente, um a cada quatro adolescentes utilizou algum serviço de saúde no último mês. Pelo conhecimento dos autores, além dos resultados dos Suplementos Saúde da Pesquisa Nacional de Amostra de Domicílios (PNAD/IBGE), este é o único estudo brasileiro de base populacional com uma amostra representativa de adolescentes a coletar e analisar informações sobre utilização de serviços de saúde.

Ressalta-se que a partir dos achados do presente estudo, foi possível projetar o número absoluto da população de adolescentes atendida em serviços de saúde no período de um mês. Assim, a amostra analisada proporciona estimativas importantes para a gestão no planejamento da demanda aos serviços de saúde no município de Pelotas-RS.

A prevalência de utilização de serviços de saúde encontrada nesta pesquisa foi diferente da observada em um estudo de base escolar, feito com adolescentes de 12 a 17 anos residentes no município de Niterói, estado do Rio de Janeiro.9 A prevalência de acesso ao primeiro serviço de saúde procurado foi de 42,7% nos três meses anteriores à entrevista. O período recordatório e as características da estrutura de atenção à saúde podem justificar as prevalências díspares, encontradas entre este e o estudo de Niterói-RJ. Mesmo assim, as justificativas mais plausíveis para essa diferença podem-se atribuir à maior abrangência de serviços de saúde contemplados na presente pesquisa, já que o estudo realizado no município fluminense considerou como uso de serviços de saúde apenas as consultas médicas e as hospitalizações.

A prevalência de utilização encontrada na população em estudo foi semelhante àquelas reveladas por estudos com amostras de outros grupos etários.14,15 Este resultado alerta para a considerável demanda aos serviços de saúde por adolescentes e, consequentemente, para a importância do planejamento da demanda, acolhimento e qualidade da atenção prestada a essa população.

A utilização de serviços de saúde por questões preventivas foi baixa, semelhante à encontrada em outro estudo com adolescentes,7 o qual avaliou a demanda aos serviços de saúde evidenciando, como motivo mais frequente, os aspectos de saúde relacionados à gravidez, seguidos por problemas relacionados ao aparelho respiratório.

A maior parte dos atendimentos realizados foi financiada pelo SUS (52,1%). Essa predominância de atenção ofertada pelo sistema público também é observada para outros grupos etários,14 ressaltando a importância do Sistema Único de Saúde na prestação de cuidado à população. Não obstante esse protagonismo, o serviço de saúde mais utilizado pelos adolescentes de Pelotas-RS foi o consultório, financiado por planos/convênios de saúde ou pagamento privado (desembolso direto). A oferta dos consultórios no município é grande - uma estrutura de 586 estabelecimentos isolados -11 justificando, em boa medida, a maior utilização desse tipo de serviço. Todavia, assim como ocorre na maior parte do Brasil, os serviços mais especializados e de maior custo-despesa são, majoritariamente, financiados pelo SUS.16

Um dos principais motivos da escolha do serviço de saúde procurado foi a proximidade com o domicilio do entrevistado. Este resultado é semelhante ao encontrado por Santos e colaboradores, que verificaram, como principal motivo de escolha da UBS para realização do pré-natal, a proximidade do domicílio da gestante.17 Quase um terço dos atendimentos relatados neste estudo ocorreram nas UBS. Embora a rede básica de serviços de saúde de Pelotas-RS apresente dificuldades de estrutura e organização, essa proporção considerável de atendimentos revela a importância do nível primário na atenção à saúde dos adolescentes do município.

O aprimoramento da rede de atenção básica à saúde pode gerar um impacto importante na saúde da população adolescente no Brasil. Além desses serviços serem os mais próximos dos domicílios, as ações de prevenção, a promoção da saúde e o envolvimento com a família são, reconhecidamente, fundamentais para a melhoria da qualidade de vida dos adolescentes e, como decorrência, uma transição mais saudável da adolescência à vida adulta. Portanto, o fortalecimento da atenção básica e, principalmente, da Estratégia Saúde da Família torna-se fundamental para um melhor desempenho dos serviços voltados à saúde dos adolescentes. Afinal, a ESF foi criada e implementada tendo, como princípio, a promoção e prevenção da saúde, a orientação familiar, o acolhimento e, complementarmente, o entendimento do território onde vivem os adolescentes e suas famílias.

O uso de serviços de saúde foi maior no sexo feminino quando comparado ao mesmo uso pelo sexo masculino. Essa diferença pode-se atribuir à maior procura de serviços de saúde pelas mulheres, ao longo do ciclo vital.14 Associações similares foram encontradas em populações adolescentes,9 adultas e idosas,18,19 ratificando a consistência da hipótese de maior utilização de serviços de saúde por mulheres. O menor uso de serviços por adolescentes do sexo masculino pode acarretar maior exposição a fatores de risco para o desenvolvimento de problemas crônicos, doenças sexualmente transmissíveis (DST), acidentes e violências.20 Dados provenientes da Pesquisa Nacional de Saúde do Escolar (PeNSE) de 2009 evidenciaram que os meninos são tão expostos a hábitos não saudáveis de vida quanto as meninas.21

As associações de uso dos serviços com todas as demais variáveis independentes não apresentaram significância estatística. Porém, à exceção da variável 'idade', as diferenças percentuais encontradas merecem maior atenção, considerando-se sua forte relação com as desigualdades socioeconômicas. Entre os adolescentes de cor da pele branca e de cor parda/indígena/amarela, o uso de serviços de saúde foi 1,78 vezes maior quando comparado ao daqueles de cor da pele preta. Essa diferença é importante e, possivelmente, revela uma discriminação na obtenção de atendimento nos serviços de saúde, conforme observado em outros estudos.22,23 Análises multivariáveis entre uso de serviços e cor da pele, com controle de confusão entre variáveis socioeconômicas, são necessárias para melhor explorar essa aparente desigualdade evidenciada.

Adolescentes que estudavam revelaram maior utilização dos serviços de saúde, comparativamente aos que não estudavam na época do estudo, à semelhança dos adolescentes que não trabalhavam em comparação aos que trabalhavam. Esses resultados indicam, mais uma vez, a ocorrência de desigualdades sociais, haja vista os adolescentes trabalhadores e aqueles que não estavam na escola serem, predominantemente, pertencentes às classes econômicas menos favorecidas. Somado a isso, outro estudo evidenciou maior probabilidade de os adolescentes que trabalham usarem álcool de forma experimental.24

Em relação à classificação econômica, a maior utilização de serviços de saúde foi observada na classe A/B. À semelhança do encontrado em outros estudos sobre uso de serviços em populações adultas e idosas,18,19 as desigualdades sociais na utilização desses serviços foram também evidenciadas entre os adolescentes. Análises referentes à tendência das desigualdades sociais alusivas ao uso de serviços de saúde em toda população brasileira apontam para uma diminuição das iniquidades de renda e seu reflexo na maior utilização desses serviços.25 Entretanto, maiores avanços são necessários para o alcance da igualdade na atenção prestada à população.

Neste estudo, a menor prevalência de uso de serviços de saúde ficou evidenciada, de forma independente, para adolescentes de classes econômicas mais baixas, de cor da pele preta, que trabalhavam e que não estudavam à época desta pesquisa. O achado indica a existência de iniquidades em saúde, já que são justamente esses adolescentes os que apresentam, por exemplo, menor grau de conhecimento sobre a transmissão de HIV/aids,26 maior ocorrência de déficit de altura e de peso,27 maior probabilidade de se tornarem fumantes,28 maior ocorrência de cluster de fatores de risco para doenças crônicas29 e maior número de morbidades crônicas.30

Entre as limitações ao desenvolvimento do presente estudo, pode-se destacar a falta de informação destinada ao público adolescente sobre prevenção de agravos e promoção da saúde fora dos serviços de saúde; principalmente dentro das escolas, por meio do Programa Saúde na Escola - instituído pelo Decreto Presidencial n° 6.286, de 5 de dezembro de 2007. Outra limitação deste estudo encontrar-se-ia na possível falta de poder estatístico para encontrar diferenças significantes na utilização de serviços de saúde segundo as variáveis independentes. Por exemplo, a falta de associação entre uso de serviços e cor da pele pode-se atribuir ao tamanho da amostra, já que as diferenças nas prevalências são importantes - chegam a quase 80% - entre adolescentes de cor da pele branca e preta. O delineamento transversal do estudo não permite inferir relações de causa e efeito. Ademais, não foi realizada análise ajustada dos dados, de maneira a não ser possível analisar fatores de confusão.

Considerando-se que na adolescência, os indivíduos se encontram em formação física e mental, e em construção de hábitos relacionados à saúde, os serviços de saúde poderiam estar cada vez mais próximos dessa população, assumindo ações de promoção da saúde e prevenção de possíveis agravos,20 até alcançar os objetivos elencados nas diretrizes de saúde para a população adolescente.2,3

As informações evidenciadas nesse artigo são relevantes para gestores e profissionais de saúde no planejamento da atenção prestada a essa parcela da população, geralmente negligenciada pelas políticas públicas de saúde. Os resultados aqui apresentados poderão subsidiar futuras pesquisas, tendo por objeto a população adolescente e sua relação com os serviços de saúde.

 

Contribuição dos autores

Nunes BP contribuiu na concepção e delineamento do estudo, análise e interpretação dos resultados, redação e revisão crítica do conteúdo.

Flores TR contribuiu na análise e interpretação dos dados, redação e revisão crítica do conteúdo.

Duro SMS, Saes MO, Tomasi E e Santiago AD contribuíram na concepção do estudo, na interpretação dos dados e na revisão crítica do conteúdo.

Thumé E e Facchini LA contribuíram na concepção e delineamento do estudo, redação e revisão crítica do conteúdo.

Todos os autores aprovaram a versão final do manuscrito e são responsáveis por todos seus aspectos, incluindo a garantia de sua precisão e integridade.

 

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* Artigo baseado na dissertação de Bruno Pereira Nunes, intitulada 'Acesso aos serviços de saúde em adolescentes e adultos na cidade de Pelotas-RS', apresentada junto ao Programa de Pós-Graduação em Epidemiologia da Faculdade de Medicina da Universidade Federal de Pelotas em 2012.

Pesquisa financiada pela Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES)/Ministério da Educação: Processo PROEX 337/2010 - bolsa de Mestrado.

 

Endereço para correspondência:
Bruno Pereira Nunes
Av. Duque de Caxias, no 250,
Fragata, Pelotas-RS, Brasil.
CEP: 96030-002
E-mail: nunesbp@gmail.com

Recebido em 05/02/2015
Aprovado em 17/06/2015