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Epidemiologia e Serviços de Saúde

versão impressa ISSN 1679-4974versão On-line ISSN 2237-9622

Epidemiol. Serv. Saúde v.24 n.3 Brasília set. 2015

 

http://dx.doi.org/10.5123/S1679-49742015000300020

ARTIGO DE OPINIÃO

 

Discriminação e saúde: um problema de acesso

 

Discrimination and health: a problem of access

 

Discriminación y salud: un problema de acceso

 

 

Fernando Mendes MassignamI; João Luiz Dornelles BastosII; Fúlvio Borges NedelII,III

IUniversidade Federal de Santa Catarina, Programa de Pós-Graduação em Saúde Coletiva, Florianópolis-SC, Brasil
IIUniversidade Federal de Santa Catarina, Centro de Ciências da Saúde, Departamento de Saúde Pública, Florianópolis-SC, Brasil
IIIUniversitat Autònoma de Barcelona, Grups de Recerca d'Amèrica i Àfrica Llatines

 

 

A investigação científica do preconceito e da discriminação, hoje considerada prioritária para garantir a equidade no acesso a serviços de saúde, começou a despertar interesse a partir da década de 1920.1 Com o reconhecimento da Sociologia enquanto ciência capaz de elucidar os fenômenos sociais, as diversas formas de manifestação do preconceito e da discriminação deixam de ser tratadas como "consequências naturais" das relações entre grupos distintos para serem compreendidas como problemas sociais, objeto de escrutínio acadêmico e enfrentamento.

Até então, a ideia de superioridade racial, por exemplo, era hegemônica e legitimada pelas teorias cientificai da época, que apregoavam a existência de supostas "raças" humanas, justificando a exclusão, a escravidão e o isolamento de categorias sociais consideradas inferiores. O mesmo tipo de teorização também apontava a inferioridade "natural" das mulheres, bem como, no âmbito da saúde, disseminava a ideia de "degeneração",2 condições supostamente constitutivas de alguns sujeitos que os tornariam moralmente inferiores, justificando sua exclusão.3

Entretanto, o modo de explicar e investigar os conceitos que fundamentavam a hipótese do preconceito e da discriminação como fenômenos naturais, dado que calcados na inferioridade do outro, modificou-se expressiva e paralelamente aos acontecimentos e decorrentes transformações sócio-históricas ocorridas ao longo do século XX. Incluem-se aí, por exemplo, a Segunda Guerra Mundial e a luta por garantia de direitos e ações afirmativas nos Estados Unidos da América (EUA).1

O objetivo deste artigo é dar visibilidade ao tema, focalizando reflexões conceituais e achados de estudos para debater possíveis rumos da pesquisa sobre discriminação na área da Saúde. Não se trata de uma revisão sistemática da literatura ou de uma análise histórica do conceito e sim de um artigo de opinião, que objetiva estimular estudos e ações sobre os processos de discriminação no âmbito da atenção à saúde. Argumentamos que a compreensão da origem da discriminação e suas implicações no cuidado em saúde são fundamentais para a definição das formas de enfrentamento desse fenômeno.

A discriminação pode ser conceituada como

[...] uma espécie de resposta comportamental ao estigma e ao preconceito, definidos como atitudes negativas em relação ao valor de grupos sociais específicos, ou como uma forma efetivada de estigma ou preconceito, [e dessa forma, constituindo uma] nítida distinção entre as ideias, atitudes ou ideologias, e suas consequências comportamentais em ações discriminatórias.4

Assim, a discriminação é a perpetração, sobre os indivíduos de um determinado grupo social, de uma relação de poder que os exclui, atribuindo-lhes características de menor valor moral, enquanto os membros dos grupos dominantes são investidos de virtudes que faltam aos demais.3

Tendo em vista a expressiva produção acadêmica norte-americana sobre discriminação e saúde, quando comparada à produção nacional, e seus impactos nas investigações realizadas no Brasil, cabe indicar, de forma breve, alguns aspectos contextuais que influenciaram os estudos sobre o tema. Um deles refere-se ao fato de nos EUA, a luta pelos direitos civis ou a luta feminista pelos direitos das mulheres ter contribuído para a visibilidade da ideia de que a discriminação resulta de relações intencionalmente desiguais de poder entre as diversas categorias sociais em questão. Tal visão estimulou o desenvolvimento de ações afirmativas voltadas para a redução do impacto dessas desigualdades, como, por exemplo, a adoção de cotas para minorias étnico-raciais e sexuais, implementadas nas universidades estadunidenses.1

Ainda que estudiosos da área tenham vislumbrado e considerado as dinâmicas existentes entre diversos aspectos da estrutura social e a manifestação de preconceitos, estereótipos, estigmas e discriminação, é o estudo da discriminação circunscrita às relações interpessoais que mais tem atraído a atenção dos pesquisadores no campo da Saúde.5-7

No Brasil, a partir de 1980, em meio à retomada dos princípios de democracia, justiça social e equidade, observa-se uma ampliação das perspectivas teóricas e metodológicas nas reflexões sobre discriminação no campo da Saúde Coletiva.8 A valorização desse objeto de estudo expressa-se na profusão de pesquisas evidenciando que as experiências discriminatórias acarretam iniquidades e efeitos negativos para a saúde.9 Tem sido demonstrado que as experiências discriminatórias estão associadas com condições adversas de saúde mental, incluindo transtornos de ansiedade, depressão e estresse pós-traumático, e comportamentos deletérios à saúde, como tabagismo, consumo abusivo de álcool, sedentarismo e dietas menos saudáveis, especialmente em indivíduos e grupos histórica e socialmente estigmatizados.10-12

Sendo a discriminação condenável porque carrega em seu conceito uma injustiça, seu papel na determinação de condições de saúde não deve ser o foco dos estudos a respeito, uma vez que a injustiça deve ser razão suficiente para combatê-la. Portanto, são desnecessários resultados que mostrem a discriminação como um fator de risco, da mesma forma que são inócuos os resultados de estudos que apresentem a discriminação como fator de proteção. Exatamente por representar uma injustiça social - e não por afetar condições e comportamentos em saúde -, o estigma, o preconceito e a discriminação devem ser considerados objetos de preocupação para a Saúde Coletiva.

É preciso compreender de que modo se concretiza a visão do outro nas relações entre indivíduos de grupos com maior ou menor poder social - expressos nas hierarquias socioeconômicas, de gênero, cor/raça, entre outras -, em meio a configurações sociais que fomentam processos discriminatórios3 na oferta, acesso e qualidade da atenção à saúde.

É importante ilustrar as formas pelas quais a discriminação se expressa e afeta a garantia do cuidado à saúde. Estudos internacionais assinalam que recomendações, encaminhamentos, interações e formas distintas de cuidado para alguns usuários permitem identificar formas reprováveis de demonstração de preconceito, de diferentes tipos.13 No entanto, os limites de tais construções ditas "reprováveis" são imprecisos, podendo ser fragmentados, reconstruídos, influenciados pelo pensamento crítico-reflexivo.

O acesso à garantia do cuidado e a construção de vínculo entre sujeitos, por exemplo, são influenciados, entre outros fatores, pelo modo como as instituições, desde a instituição-pessoa até a sistêmica, prestam continência às necessidades de saúde individuais e coletivas. Considerando-se que, no exercício do cuidado, a produção de intersubjetividades está dialeticamente ligada à experiência da realidade, o espaço social do cuidado é potencialmente robusto para gerar ressignificações e deflagrar a reflexão ético-política, tão cara à construção da tolerância, do respeito às diferenças e da solidariedade.

A postura do trabalhador em saúde, ao se colocar no lugar do usuário e perceber suas necessidades, é compreendida como uma das formas de acolhimento na medida em que atende e responde a essas demandas,14 tanto objetivas quanto subjetivas. O acesso, fator determinante para o uso efetivo dos serviços de saúde, também resulta de fatores individuais, contextuais e relativos à qualidade do atendimento que influenciam o uso e a efetividade do cuidado.15

No Brasil, tem crescido o número de estudos sobre estigma e discriminação nos serviços de saúde. Entre os estudos específicos sobre a discriminação racial e a intercessão entre racismo e pobreza no país, destacam-se dois trabalhos,16,17 pela maneira bastante emblemática com que demonstram experiências de discriminação em serviços de saúde e seus diferentes aspectos.

O estudo realizado por Leal e colaboradores16 aponta a influência da discriminação sobre o acesso a um atendimento pré-natal adequado e ao manejo do parto, tanto em serviços públicos como em serviços privados de saúde. Demonstrou-se que mães classificadas como pardas e pretas da cidade do Rio de Janeiro-RJ, em relação às brancas, receberam menos anestesia nos partos normais e tiveram maior risco de perambular por mais de uma maternidade antes de dar à luz. O estudo também evidenciou que mulheres pretas, pardas e brancas com baixa escolaridade enfrentaram, principalmente, duas formas de discriminação, (i) por nível educacional e (ii) por cor da pele.16

O baixo poder aquisitivo e a classe social foram as razões mais comuns para a discriminação nos cuidados de saúde, segundo resultados da Pesquisa Mundial de Saúde.17 Esses dados sugerem que, no Brasil, a discussão sobre a discriminação na atenção à saúde não pode desconsiderar a relação entre renda, classe social e demais marcadores sociais de desigualdade.

Diante da complexidade e dificuldade de alterar estruturas macrossociais no curto prazo, paralelamente a intervenções estruturais e culturais, cabe investir em ações no âmbito institucional, estimulando a criação de canais de comunicação entre usuários e gestores (por exemplo: ouvidoria; linhas telefônicas gratuitas com serviços de orientação e informação; sensibilização de Conselhos Locais e Municipais de Saúde), assim como espaços de formação profissional para os trabalhadores da saúde com o propósito de discutir as conexões entre as diversas situações de discriminação e a produção das desigualdades sociais, e formas de seu enfrentamento.

No âmbito institucional, o governo federal tem desenvolvido estratégias para reduzir o estigma e a discriminação na atenção à saúde, ampliando o acesso à saúde por grupos marginalizados, com o objetivo de minimizar a morbimortalidade relacionada a esses determinantes. Orientada pelo princípio da equidade que norteia o SUS, foi criada a Política Nacional de Humanização da Atenção e Gestão do Sistema Único de Saúde, que traz como uma de suas diretrizes gerais a sensibilização das equipes de saúde em relação aos preconceitos que permeiam suas práticas. A Política de Atenção Integral à Saúde da População Negra busca demonstrar os nexos entre o racismo e alguns agravos de saúde prevalentes entre os negros no Brasil. E a Política de Atenção Integral à Saúde da População Indígena propõe formas de acesso à saúde que não colidam com as práticas culturais dos diferentes povos indígenas no país. De igual modo, foram propostas políticas específicas para lésbicas, gays, bissexuais, travestis e transexuais (LGBT), e para demais grupos com dificuldade de acessar os serviços de saúde, como os idosos, pessoas com deficiência ou sob privação de liberdade.

Cabe ressaltar que essas ações e políticas não asseguram a esses grupos o fim da discriminação nos serviços prestados pela Saúde mas, ao criar barreiras e constrangimentos para essa discriminação ou mesmo exclusão de um direito universal, conferem maior visibilidade a suas necessidades. Ou seja, constituem uma modalidade de intervenção que incide diretamente sobre as normas culturais vigentes em uma determinada sociedade e como tal, deve ser considerada na arquitetura de iniciativas voltadas à superação de práticas discriminatórias. É necessário lembrar que essas políticas só se viabilizam quando traduzidas à realidade específica local, exigindo um esforço conjunto, ou seja, sob a perspectiva de cada um e todos os gestores, técnicos, conselheiros e demais envolvidos na produção do cuidado em saúde, assim como de pesquisadores e ativistas sociais comprometidos com a construção de uma sociedade mais justa e equânime.

Portanto, futuras pesquisas sobre a discriminação no âmbito da Saúde Coletiva devem incluir, além da institucionalização de políticas promotoras de equidade, a participação de todos os atores sociais. Dar voz ao usuário e ao trabalhador em saúde parece ser tão importante quanto promover iniciativas de educação permanente para a transformação das relações pautadas em desigualdades evitáveis.

Segundo Travassos & Bahia,

[...] permanece ausente uma política de combate à discriminação e aos privilégios que estão na base das desigualdades sociais que ainda permeiam o SUS. Que sua criação seja orientada por uma agenda inclusiva, evitando-se produzir novos estigmas, pois os que temos já nos bastam.18

Portanto, mostram-se necessárias mais pesquisas sobre a ocorrência de discriminação e seus efeitos sobre a oferta, o acesso e a qualidade na atenção à saúde de segmentos da população mais vulneráveis ao estigma ou preconceito, marginalizados pela sociedade.

 

Agradecimentos

Às pesquisadoras Simone Souza Monteiro e Wilza Vieira Villela pelas contribuições e sugestões durante a elaboração do manuscrito. À professora Rita de Cássia Gabrielli Souza Lima, pelas contribuições e sugestões na leitura final do manuscrito.

 

Contribuição dos autores

Todos os autores contribuíram na concepção, redação e revisão do artigo, e são responsáveis por todos seus aspectos, incluindo a garantia de sua precisão e integridade.

 

Referências

1. Duckitt J. Historical overview. In: Dovidio JF, Hewstone M, Glick P, Esses VM, editors. The SAGE handbook of prejudice, stereotyping and discrimination. London: SAGE; 2010. p. 29-44.

2. Caponi S. Biopolíticae medicalização dos anormais. Physis. 2009;19(2):529-49.

3. Elias N, Scotson JL. Os estabelecidos e os outsiders: sociologia das relações de poder a partir de uma pequena comunidade. Rio de Janeiro: Jorge Zahar; 2000.

4. Parker R. Stigma, prejudice and discrimination in global public health. Cad Saude Publica. 2012 Jan;28(1):164-9.

5. Jones CP. Levels of racism: a theoretic framework and a gardener's tale. Am J Public Health. 2000 Aug;90(8):1212-5.

6. Krieger N. A glossary for social epidemiology. J Epidemiol Community Health. 2001 Oct;55(10):693-700.

7. Dovidio JF, Hewstone M, Glick P, Esses VM. Prejudice, stereotyping and discrimination: theoretical and empirical overview. In: Dovidio JF, Hewstone M, Glick P, Esses VM, editors. The SAGE handbook of prejudice, stereotyping and discrimination. London: SAGE; 2010. p. 3-28.

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9. Paradies YC, Williams DR. Racism and health. In: Heggenhougen K, Quah S, editors. International encyclopedia of public health. San Diego: Academic Press; 2008. p. 474-82.

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11. Paradies Y. A systematic review of empirical research on self-reported racism and health. Int J Epidemiol. 2006 Aug;35(4):888-901.

12. Williams DR, Mohammed SA. Discrimination and racial disparities in health: evidence and needed research. J Behav Med. 2009 Feb;32(1):20-47.

13. Penner LA, Albrecht TL, Orom H, Coleman DK, Underwood III W. Health and health care disparities. In: Dovidio JF, Hewstone M, Glick P, Esses VM, editors. The SAGE handbook of prejudice, stereotyping and discrimination. London: SAGE; 2010. p. 472-90.

14. Ramos DD, Lima MADS. Acesso e acolhimento aos usuários em uma unidade de saúde de Porto Alegre, Rio Grande do Sul, Brasil. Cad Saude Publica. 2003 jan- fev;19(1):27-34.

15. Travassos C, Martins M. Uma revisão sobre os conceitos de acesso e utilização de serviços de saúde. Cad Saude Publica. 2004;20 supl 2:S190-S8.

16. Leal MC, Gama SG, Cunha CB. Desigualdades raciais, sociodemográficas e na assistência ao pré-natal e ao parto, 1999-2001. Rev Saude Publica. 2005 jan;39(1):100-7.

17. Travassos C, Laguardia J, Marques PM, Mota JC, Szwarcwald CL. Comparison between two race/skin color classifications in relation to health-related outcomes in Brazil. Int J Equity Health. 2011;10:35.

18. Travassos C, Bahia L. Qual é a agenda para o combate à discriminação no SUS? Cad Saude Publica. 2011 fev;27(2):204-5.

 

 

Endereço para correspondência:
Fernando Mendes Massignam

Universidade Federal de Santa Catarina,
Centro de Ciências da Saúde,
Programa de Pós-Graduação em Saúde Coletiva,
Campus Universitário, Trindade,
Florianópolis-SC, Brasil.
CEP: 88040-900.
E-mail: fernando.massignam@ufsc.br