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Epidemiologia e Serviços de Saúde
versão impressa ISSN 1679-4974versão On-line ISSN 2337-9622
Epidemiol. Serv. Saúde v.25 n.1 Brasília jan./mar. 2016
http://dx.doi.org/10.5123/S1679-49742016000100015
ARTIGO ORIGINAL
Cárie dentária em escolares de 12 anos de idade em município sem água fluoretada na Amazônia Ocidental brasileira, 2010*
Dental caries in 12-year-old schoolchildren from a non-fluoridated municipality in the Western Brazilian Amazon, Brazil, 2010
Caries dental en escolares de 12 años de edad en municipio sin agua fluorada en la Amazonia Occidental brasileña, 2010
Paulo Frazão1; Cleber Ronald Inácio dos Santos2; Doroti Elisabete D'Aquino Benicio3; Regina Auxiliadora de Amorim Marques3; Maria Helena D'Aquino Benício1; Marly Augusto Cardoso1; Paulo Capel Narvai1
1Universidade de São Paulo, Faculdade de Saúde Pública, São Paulo-SP, Brasil
2Universidade Federal do Acre, Centro de Ciências da Saúde, Rio Branco-AC, Brasil
3Prefeitura de São Paulo, Secretaria Municipal da Saúde, São Paulo-SP, Brasil
RESUMO
OBJETIVO: descrever a ocorrência da cárie dentária e o cuidado odontológico recebido por escolares de 12 anos de idade em município de pequeno porte na região amazônica, segundo sexo e área de residência.
MÉTODOS: estudo descritivo realizado em Acrelândia-AC, Brasil, em 2010; foram estimados o CPOD e o índice de cuidados odontológicos, segundo recomendações da Organização Mundial da Saúde.
RESULTADOS: participaram 186 escolares, sendo 47,8% meninas e 41,4% residentes na zona rural; o CpOD foi de 2,15 (1,77;2,52), sem diferenças entre as categorias; o índice de cuidados foi de 32,8%, com valores mais elevados para a zona rural (p<0,001).
CONCLUSÃO: embora não beneficiados por água fluoretada, os escolares apresentaram padrão de cárie e de cuidado odontológico mais próximo ao do conjunto Brasil que ao da região Norte; hipótese de associação com o nível de desenvolvimento humano e atuação das equipes de saúde bucal na Estratégia Saúde da Família foi discutida.
Palavras-chave: Cárie Dentária; Epidemiologia Descritiva; Zonas Rurais; Assistência Odontológica.
ABSTRACT
OBJECTIVE: to describe dental caries occurrence and dental care received among 12-year-old schoolchildren in a small town in the Amazon region according to sex and area of residence.
METHODS: this was a descriptive study conducted in Acrelandia-AC, Brazil, in 2010; DMFT and dental care indexes were estimated in accordance with World Health Organization recommendations.
RESULTS: 186 schoolchildren participated, 47.8% were girls and 41.4% lived in the rural area; DMFT was 2.15 (1.77;2.52) without differences between the categories; the care index was 32.8%, with higher rates for the rural area (p<0.001).
CONCLUSION: although they lived in a non-fluoridated area, the schoolchildren had a caries experience and dental care pattern closer to that of Brazil as a whole rather than that of the Northern region; the hypothesis of association with the level of human development and the performance of Family Health Strategy Oral Health teams is discussed.
Key words: Dental Caries; Epidemiology, Descriptive; Rural Areas; Dental Care.
RESUMEN
OBJETIVOS: describir la presencia de caries dental y atención odontológica recibida por escolares de 12 años de edad, en un pequeño municipio en la región amazónica según sexo y área de residencia.
MÉTODOS: estudio descriptivo realizado en Acrelandia-AC, Brasil, en 2010, fueron estimados el CPOD e el índice de cuidados odontológicos según recomendaciones de la Organización Mundial de la Salud.
RESULTADOS: participaron 186 escolares, siendo 47,8% mujeres y 41,4% residentes de zona rural; el CPOD fue 2,15 (1,77;2,52), sin diferencias entre las categorías; el índice de cuidados odontológicos fue 32,8%, con valores superiores para la zona rural (p<0,000).
CONCLUSIÓN: a pesar no ser beneficiarios de agua fluorada, los escolares mostraron un padrón de caries y cuidados odontológicos más próximo al de todo Brasil que al de la región norte; se discute la hipótesis de asociación con el nivel de desarrollo humano y el desempeño de los equipos de Salud Bucal de la Estrategia Salud de la Familia.
Palabras-clave: Caries Dental; Epidemiología Descriptiva; Medio Rural; Atención Odontológica.
Introdução
A cárie dentária continua sendo, no início do século XXI, o principal problema de saúde bucal em vários países do mundo, afetando de 60 a 90% das crianças em idade escolar e a maioria dos adultos. A doença é uma das principais causas de perda e de dor de dente, restringindo as atividades na escola e no trabalho, e portanto, impactando a qualidade geral de vida dos afetados.1
No Brasil, a prevalência dessa doença em crianças da idade-índice de 12 anos caiu de 96,3% para 68,9%, entre 1980 e 2003,2 até chegar a 56,0% em 2010,3 devido, principalmente, ao (i) aumento do acesso a água e creme dental fluoretados e a (ii) mudanças nos objetivos dos programas locais de saúde bucal, que passaram a enfatizar a promoção da saúde e ações preventivas específicas.2 Apesar dessas melhorias, a cárie é desigualmente distribuída, conforme o nível socioeconômico, com uma pequena proporção de adolescentes concentrando a maior parte da carga da doença.2 A maioria desses adolescentes vive em áreas onde a taxa de pobreza é alta, com indicadores socioeconômicos ruins e consumo de água não fluoretada.2 Muitas dessas áreas estão localizadas na Amazônia brasileira, um vasto território do norte do Brasil, onde são raros os inquéritos de saúde.
Desde os tempos coloniais, embora mais acentuadamente no século XX, a riqueza dos aspectos ambientais, humanos, geossociais, antropológicos, econômicos, históricos e políticos tem atraído a atenção crescente de diferentes pesquisadores interessados na complexidade dessa região, socialmente constituída pelo modo de vida dos povos nativos, representados por índios e caboclos, pelo processo de colonização engendrado por portugueses e espanhóis e pela participação subsequente de afro-brasileiros, nordestinos e diversos imigrantes determinados a ocupar esse imenso território e realizar suas aspirações.4
Embora esteja bem documentado o declínio na prevalência de cárie em crianças brasileiras, é escassa a literatura sobre a distribuição da doença em municípios da região amazônica, sobretudo onde a água de abastecimento público não é fluoretada e parte significativa da população vive em área rural. Em 2010, a taxa de urbanização da região Norte, composta por sete estados - Rondônia, Acre, Amazonas, Roraima, Pará, Amapá e Tocantins -, era de 74,3%, contra 84,8% para o pás.5 Em 31 de agosto de 2015, uma busca na Biblioteca Virtual em Saúde, empregando duas estratégias - (tw:[Cárie Dentária]) AND (tw:[Amazônia]); (tw:[Dental caries]) AND (tw:[Amazon]) -, encontrou apenas quatro artigos descritivos da doença em população não indígena de 12 anos,6-9 idade importante para a determinação do padrão de cárie na infância.10 A presença expressiva de população rural em municípios da região amazônica permite explorar diferenças no estado da dentição em crianças residentes em áreas rurais, quando comparadas às que vivem em áreas urbanas.
Estudo epidemiológico em escolares de 12 anos de idade realizado em 2002-200311 no Brasil, mostrou que os que estudavam em escolas rurais tinham cerca de 40% mais dentes atacados por cárie do que os que frequentavam escolas urbanas12: o índice CPOD que mede a experiência de cárie dentária em populações e cujo valor expressa a média de dentes cariados "C", perdidos "P" e obturados "O" em um grupo populacional foi 3,7 em escolas rurais contra 2,7 em escolas urbanas.12 Este estudo revelou que o nível de cárie expresso pelo índice CPOD era, aproximadamente, 26% maior nos municípios com até 10 mil habitantes, em relação à média nacional, e cerca de 70% maior em relação ao nível médio encontrado nos municípios com mais de 100 mil habitantes.11
Pouco se sabe da atuação das equipes de saúde bucal nessas comunidades no contexto da reorganização da Atenção Básica por meio da Estratégia Saúde da Família (ESF). De uma fase inicial que priorizava apenas as áreas de maior risco social, essa iniciativa se expandiu para afirmar-se como uma estratégia de mudança do modelo de atenção básica à saúde adotado no Brasil.13 Todavia, constatam-se importantes dificuldades para produzir mudanças no modelo de atenção à saúde bucal.14
O objetivo deste estudo foi descrever a ocorrência da cárie dentária e o cuidado odontológico recebido por escolares de 12 anos de idade em município de pequeno porte na região amazônica, segundo sexo e área de residência.
Métodos
Trata-se de estudo descritivo realizado no município de Acrelândia, localizado na mesorregião do Vale do Rio Acre, estado do Acre, Amazônia Ocidental Brasileira (Figura 1). O município possui fronteira internacional com a República da Bolívia e fronteiras estaduais com Rondônia e Amazonas. Acrelândia também faz limite com outros dois municípios do Acre: Senador Guiomard e Plácido de Castro. Em 2010, o município contava com 12.538 habitantes e 47,2% (5.916) de sua população residia na área urbana.5
Segundo Souza,15 o índice de desenvolvimento infantil de Acrelândia foi de 0,389 no ano de 2001, abaixo da média nacional de 0,539. O índice de desenvolvimento humano (IDH) do município foi de 0,680 para o ano 2000, situando-o na quinta melhor posição entre os 22 municípios do Acre. O estado possui o pior IDH (0,697) entre os estados da região Norte, cujos valores eram inferiores na comparação com a média para o país (0,766).16 Como a mensuração da experiência de cárie aos 12 anos de idade é um indicador relacionado às exposições que afetaram o grupo populacional nos doze anos anteriores, neste estudo, considerou-se o valor do IDH para o ano 2000 como mais adequado à caracterização do contexto relativo às condições de desenvolvimento humano a que a população em tela esteve submetida.
Em julho de 1998, Acrelândia aderiu formalmente ao Programa de Agentes Comunitários de Saúde (PACS). Desenvolvido a partir de 1999, o PACS local chegou a dezembro daquele ano com 16 agentes comunitários de saúde (ACS) dedicados a atender uma população, à época, de 6.536 habitantes. Em 2004, o município teve mais um ACS agregado ao quadro, e duas equipes de Saúde da Família iniciaram suas atividades. Naquele momento, a população aumentara para 8.695 habitantes, dos quais 79,4% eram atendidos pelas duas equipes de Saúde da Família. Entre 2005 e 2007, essas equipes passaram a três e finalmente cinco, mantendo-se esse número até setembro de 2011. O quadro de ACS aumentou de 17 para 45, entre 2005 e 2008, permanecendo esse quantitativo de agentes até setembro de 2011. Desde 2005, os serviços prestados pelo Programa (atual Estratégia) Saúde da Família cobrem 100% da população de Acrelândia.
Em outubro de 2005, uma equipe de saúde bucal (SB), composta por cirurgião-dentista e auxiliar de saúde bucal, começou a operar no município. No mês seguinte, uma segunda equipe de SB iniciou suas atividades. Em fevereiro de 2006, o município já era atendido por três equipes de SB, duas delas atuando em unidades rurais. A partir de junho de 2007, mais uma equipe de SB foi constituída, mantendo-se o número de quatro equipes até setembro de 2011, quando Acrelândia já contava com 12.538 habitantes. Considerando-se a norma do Ministério da Saúde vigente para o período de interesse (a Portaria GM/ MS no 1.444, de 28 de dezembro de 2000, estabelece que uma equipe de SB deva atender, em média, seis mil e novecentos habitantes), o município, do ponto de vista dos recursos necessários para propiciar uma cobertura adequada, estaria bem provido. Observe-se que desde setembro de 2009, Acrelândia dispunha de um Núcleo de Apoio à Saúde da Família (NASF).
A população de referência deste estudo correspondeu aos escolares de 12 anos de idade residentes no município e que frequentavam escolas públicas urbanas e rurais. Segundo estimativas demográficas relativas a 2009, residiam no município 280 indivíduos de 12 anos de idade. A taxa de escolarização de crianças e adolescentes de 7 a 14 anos é alta na cidade, em torno de 95%. Conforme cadastro da Secretaria Municipal de Educação, estavam em funcionamento 18 escolas públicas, sendo quatro estaduais e as demais municipais. Os escolares de 12 anos distribuíam-se em três escolas urbanas e 13 escolas rurais. Foram incluídas todas as escolas urbanas e as escolas rurais de maior porte. Com base no número total de estudantes, as escolas rurais foram relacionadas em ordem decrescente, sendo incluídas no estudo as cinco primeiras escolas, responsáveis por cerca de 86,4% do total de estudantes matriculados.
No intuito de produzir inferências para a população, o tamanho da amostra foi determinado considerando-se um coeficiente de variação de 100% em torno do valor médio do índice CPOD, um nível de precisão de 10% e um nível de significância de 95%.17 O valor foi ajustado para o tamanho da população de referência, resultando em um tamanho amostral de 162 adolescentes com 12 anos de idade. Nas escolas rurais incluídas, onde haviam 102 escolares matriculados, não houve sorteio e todos os escolares encontrados na escola no período dos exames, e cujos pais autorizaram sua participação, foram examinados. Este procedimento foi adotado por razões operacionais, evitando enfrentar maiores dificuldades de acesso à zona rural. Nas unidades urbanas, onde havia 223 escolares matriculados na idade de interesse, por meio de um sorteio sistemático, metade dos escolares foi selecionada para participar do estudo. Esta estratégia foi adotada para se obter um tamanho de amostra ligeiramente superior ao necessário.
No segundo semestre de 2010, entre a segunda quinzena de agosto e a primeira de novembro, foram realizados exames dentais, com auxílio de espelho bucal e sonda do tipo ball point (especificação: WHO-621), sob luz natural, por dois dentistas calibrados, e como resultado, o menor valor obtido para a estatística Kappa foi de 0,74 entre os dentes permanentes.
Foi calculado o índice CPOD para cada escolar participante, conforme recomendação da Organização Mundial da Saúde.10 Foram estimadas a prevalência de cárie dentária, medida pelo índice CPOD>0, e sua gravidade (também chamada de experiência ou ataque de cárie dentária), aferida pelo número médio de dentes cariados 'C', perdidos 'P' e obturados 'O'.18 Como há uma relação matemática entre experiência de cárie medida pelo índice CPOD e prevalência de cárie medida pela porcentagem de indivíduos com CPO>0, valores de CPOD entre 2,7 e 4,4 são indicativos de nível moderado de cárie ou prevalência moderada; valores entre 1,2 e 2,6 são indicativos de prevalência baixa; e valores inferiores a 1,2 refletem uma prevalência muito baixa.1
Também foi apurado o índice de cuidados odontológicos,19 expresso pela participação do componente 'dentes restaurados' ('O') no CPOD total. Utilizado em avaliações e análises comparativas de efetividade dos programas de atendimento odontológico, esse índice é calculado pela proporção do número de dentes restaurados em relação ao total de dentes com experiência de cárie (cariados, extraídos ou restaurados), sendo também empregado para mensurar a utilização de serviços odontológicos.
O teste do qui-quadrado de Pearson e o teste de Mann-Whitney foram aplicados para comparar os valores segundo o sexo (feminino; masculino) e a área de localização da escola (urbana; rural), adotando-se p<0,05 para rejeição da hipótese de nulidade. Para tanto, contou-se com o apoio do software SPSS versão 17.
O protocolo do estudo foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa da Faculdade de Saúde Pública da Universidade de São Paulo em 30 de outubro de 2009, sob Parecer no 297/2009. Consentimento livre e esclarecido foi obtido junto aos pais/responsáveis dos escolares que participaram do estudo. Em caso de presença de edema, hemorragia, dor ou alteração de tecido mole que necessitasse de avaliação clínica e/ou consulta de urgência, os professores e os pais/responsáveis foram orientados para procurar a unidade de referência.
Resultados
Os participantes do estudo totalizaram 186 escolares de 12 anos de idade: 77 residentes na zona rural e 109 na zona urbana. Finda a apuração das recusas e perdas, a taxa de resposta foi de 75,5% para as escolas rurais e de 97,3% para as escolas urbanas. Do total de participantes, 47,8% eram do sexo feminino (Tabela 1).
A experiência de cárie em dentes permanentes encontrada no município de Acrelândia foi de 2,15 dentes (IC 1,77;2,52) atingidos pela doença, em média. As diferenças entre os escolares de ambos os sexos não foram significativas (Tabela 2). O número médio de dentes permanentes perdidos foi estatisticamente maior para os escolares da área urbana (p=0,021). Não foram observadas diferenças estatísticas significativas para os valores médios relativos aos dentes permanentes cariados e restaurados.
Destaca-se que mais da metade dos dentes cariados não estavam tratados. O índice de cuidados correspondeu a 32,8% dos dentes atingidos pela cárie e registrou, respectivamente, para os sexos feminino e masculino, 32,2% e 33,5% (p=0,961); e para as áreas urbana e rural, correspondentes 25,8% e 42,0% (p<0,001) (Tabela 3).
Em relação à prevalência de cárie, 62,9% dos escolares apresentaram pelo menos um dente permanente atacado por cárie, sem diferença estatística significativa entre os sexos (p=0,996). Embora a prevalência de cárie tenha sido numericamente maior para a área rural (68,8%), a diferença não foi estatisticamente significativa (p=0,162) (Tabela 4).
Discussão
O nível de cárie encontrado, estimado pelo valor do CPOD, caracteriza uma situação de baixa prevalência.1 Do ponto de vista estatístico, observou-se leve sobreposição do limite superior do intervalo de 95% de confiança, relativo a Acrelândia, ao valor do limite inferior dos intervalos relativos à região Norte como um todo, e ao interior da região Norte em particular. A despeito desse aspecto, e embora não beneficiados por água fluoretada, pode-se afirmar que os escolares de Acrelândia apresentaram um padrão de ocorrência de cárie mais próximo do padrão observado para o Brasil (média=2,04 e IC95% 1,76;2,32) do que aos padrões observados para a região Norte (média=3,22 e IC95% 2,45;3,99) e o interior da região Norte (média=3,55 e IC95% 2,47;4,63).20 Não foram observadas diferenças entre meninos e meninas; porém, foram notadas diferenças entre as áreas urbana e rural.
Os resultados encontrados são importantes porque qualificam o atual conhecimento científico sobre a distribuição da cárie dentária aos 12 anos de idade nos municípios de pequeno porte, no contexto brasileiro geral; e especialmente na Amazônia Ocidental, uma área que tem atravessado um intenso processo de colonização.4
A presença de fluoreto nos cremes dentais mais populares do mercado e o acesso da população a esses produtos podem ter contribuído para esse padrão de prevalência da doença na população.21 Outros aspectos mostram-se igualmente importantes, se considerarmos os achados e valores referentes a um município como o de Monte Negro, situado no estado de Rondônia, observados em 2008. De mesmo porte populacional à época deste estudo (<15 mil hab.), Monte Negro dista 540 km de Acrelândia e apresenta porcentagem semelhante de população vivendo em área rural, 54,7%;9 entretanto, o nível de experiência de cárie encontrado em Monte Negro foi mais elevado, 3,41 (IC95% 2,82;4,01), em relação ao observado para Acrelândia, 2,15 (IC95% 1,77;2,52). Essa diferença parece estar associada a disparidades importantes em termos de desenvolvimento humano, com implicações nas oportunidades e expectativas de vida e saúde das populações projetadas para a primeira década do século XXI. O valor do IDH em Monte Negro (0,435) no ano 2000 era 24,5% menor, comparativamente ao valor observado em Acrelândia (0,680), situando as respectivas populações em categorias distintas de desenvolvimento. De fato, a relação entre menor experiência de cárie aos 12 anos de idade e maior valor do IDH tem forte sustentação na literatura científica,22 e os achados do presente estudo sugerem a mesma associação.
Dados da Pesquisa Nacional de Saúde Bucal realizada em 201020 revelaram que a maioria dos indivíduos de 12 anos de idade residentes na região Norte consultou um dentista pelo menos uma vez na vida (71,4%), há menos de 3 anos (87,4%), utilizando-se do serviço público odontológico (64,3%). Com base nessas informações, é possível inferir que parcela considerável da incorporação de serviços restauradores decorre da participação dos serviços públicos. O valor do índice de cuidados odontológicos entre crianças de Acrelândia (32,8%) esteve mais próximo do valor encontrado para o Brasil (35,3%) que dos valores observados para a região Norte (20,6%) e o interior da região Norte (19,4%).20
Comparados com os dados de Monte Negro (18,5%), observou-se uma proporção mais elevada de dentes restaurados em Acrelândia (32,8%). Até 2008, Monte Negro contava apenas uma equipe de saúde bucal inserida na Estratégia Saúde da Família, enquanto Acrelândia, até 2010, dispunha de quatro equipes de SB, sugerindo que entre as cidades brasileiras de pequeno porte, com semelhante porcentagem de população vivendo em área rural, pode haver disparidades importantes na implantação dos programas de atendimento odontológico e seus reflexos na saúde bucal, independentemente do acesso local a água de abastecimento fluoretada. Também o valor observado para o índice de cuidados odontológicos na zona rural de Acrelândia (42,0%) foi mais elevado, apontando a relevância do trabalho desenvolvido pelas equipes de SB.
Essas disparidades entre os municípios podem ser resultado de políticas públicas, sociais e econômicas, subjacentes aos contrastes observados em termos de desenvolvimento humano e/ou número de equipes de SB integradas à Estratégia Saúde da Família. Tais políticas, ainda que indiretamente, também poderiam se traduzir em níveis de cárie e de cuidados odontológicos distintos, segundo cada localidade mais ou menos contemplada por elas.
Em que pesem esses aspectos, mais da metade dos dentes atingidos eram dentes cariados não tratados, indicando que as atividades de atenção à saúde bucal podem ser aprimoradas se forem incorporadas algumas ações como, por exemplo, (i) projetos educativos para estimular o autoexame entre os escolares e reduzir o receio da consulta odontológica, e (ii) técnicas de rastreamento e busca ativa de casos, assegurando-se que todas as crianças, antes de completarem 12 anos de idade, tenham realizado o exame bucal periódico e o tratamento dentário das cavidades de cárie. Além disso, é importante compartilhar os resultados observados com os profissionais das equipes de SB, avaliando-se as medidas mais adequadas para se evitar a perda precoce de dentes permanentes, duas vezes maior entre os jovens matriculados nas escolas urbanas analisadas. Uma revisão sobre a atenção à saúde bucal no âmbito da Estratégia Saúde da Família mostrou que a implantação dessas equipes, mesmo ao criar condições mais favoráveis, não assegura mudança do modelo de atenção à saúde bucal.14
Inquéritos transversais são estudos adequados quando o objetivo é descrever uma dada realidade para um determinado momento. Não obstante, estudos envolvendo a distribuição da cárie dentária em grupos populacionais específicos de municípios pequenos, cujo padrão de cárie é desconhecido, podem enfrentar limitações decorrentes do tamanho da amostra quando se busca explorar diferenças; principalmente quando a distribuição da cárie se aproxima de um padrão de baixa prevalência, como foi o caso de Acrelândia. Além disso, o fato de 13,6% dos escolares das unidades de ensino de pequeno porte na zona rural não terem tido a possibilidade de participar da amostra poderia representar uma fragilidade para o estudo, se o padrão de cárie nesse grupo fosse substancialmente diferente dos demais escolares da zona rural; o que é improvável, considerando-se que a estimativa produzida foi obtida a partir de uma amostra representativa de mais de 80% dos escolares da população de referência.
Conclui-se que, embora não beneficiados por água fluoretada, os escolares de Acrelândia apresentaram um padrão de ocorrência de cárie e de cuidado odontológico mais próximo do padrão do Brasil, que do encontrado para a região Norte e o interior da região Norte, com expressivo contraste do índice de cuidados odontológicos observado em sua zona rural. Na comparação com Monte Negro, município relativamente próximo na escala regional, de mesmo porte populacional e semelhante porcentagem de população rural, Acrelândia apresentou um padrão de distribuição da doença sensivelmente melhor, sugerindo possível associação causal (i) entre o desenvolvimento humano e os índices de CPOD encontrados - abaixo do esperado para a região -, e (ii) entre a atuação das equipes de saúde bucal na Estratégia Saúde da Família e o cuidado odontológico recebido por determinados grupos populacionais. Dado o caráter descritivo deste estudo e a necessidade de se investigar o nexo causal determinante dessas associações, cabe recomendá-las como hipóteses para futuras investigações, desenhadas com o objetivo específico de testar e estabelecer o quanto o nível de desenvolvimento humano e a atuação das equipes de saúde bucal na Estratégia Saúde da Família podem contribuir para a saúde da população da Amazônia, tanto no controle da cárie quanto no acesso ao tratamento odontológico.
Contribuição dos autores
Narvai PC planejou e coordenou todas as etapas do estudo.
Frazão P coordenou a transcrição eletrônica dos dados, realizou a análise dos dados e escreveu o rascunho do manuscrito.
Santos CRI auxiliou no sorteio da amostra e nas atividades de campo.
Marques RAA e Benicio DED realizaram a coleta dos dados.
Cardoso MA assegurou apoio logístico à coleta de dados.
Benício MHD supervisionou a análise dos dados.
Todos os autores participaram do planejamento do estudo, da elaboração, revisão e aprovação da versão final do manuscrito, e declaram serem responsáveis por todos os aspectos do trabalho, garantindo sua precisão e integridade.
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Endereço para correspondência:
Paulo Frazão
Universidade de São Paulo, Faculdade de Saúde Pública
Av. Dr. Arnaldo, no 715,
São Paulo-SP, Brasil.
CEP: 01246-904
E-mail: pafrazao@usp.br
Recebido em 09/03/2015
Aprovado em 03/01/2016
* O estudo contou com o apoio do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq)/Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovação (MCTI): Processo no 402260/2008-2.