Introdução
O Brasil vem implantando mudanças no modelo de atenção à saúde dos portadores de transtornos mentais, fechando manicômios e expandindo serviços comunitários de base territorial: os Centros de Atenção Psicossocial (CAPS).1 Alinhando-se a propostas de organismos internacionais, as medidas adotadas pelo sistema público de saúde brasileiro têm apontado para a articulação entre os serviços voltados à saúde mental e os de atenção básica como alternativa para ampliar o acesso ao cuidado pelos portadores de transtornos mentais.1,2
O Programa de Agentes Comunitários de Saúde (PACS) e a Estratégia Saúde da Família (ESF) foram implementados em grande parte do território brasileiro, com o propósito de estender as ações básicas de saúde a segmentos da população que não tinham acesso a esses serviços.1 Os agentes comunitários de saúde (ACS), atuantes em ambos os programas, realizam, entre outras atividades, visitas domiciliares nas quais coletam informações sobre as condições de vida e saúde das famílias por eles atendidas. Considerando-se o instrumento utilizado pelos ACS, de acordo com as informações referidas pelas famílias, é possível registrar 11 doenças ou condições de saúde, sendo uma elas os distúrbios mentais (DM). Esses dados, complementados por outros obtidos pelos demais profissionais da equipe de saúde da família, subsidiam o Sistema de Informação da Atenção Básica (SIAB), concebido para ser um instrumento de gestão local, regional e nacional.3
Um elemento essencial para o desenvolvimento programático de ações de saúde focadas em agravos específicos e de interesse - e responsabilidade - da Atenção Básica é o conhecimento da população acometida. O presente estudo teve como objetivos descrever a magnitude da ocorrência de registro de DM na Atenção Básica em municípios brasileiros e analisar os fatores associados aos DM.
Métodos
Realizou-se um estudo ecológico, cuja principal fonte de dados foi o SIAB. A partir desse sistema, foram obtidas informações relacionadas ao número de pessoas cadastradas na Atenção Básica, cobertura pela mesma Atenção Básica e registros de DM na população cadastrada.
Foram utilizados dados do SIAB oriundos de municípios que apresentaram, para o ano de 2014, registro de população cadastrada na Atenção Básica. O Ministério da Saúde, quando disponibiliza os dados do SIAB, exclui municípios que não forneceram informações a esse sistema em todos os meses do período. Portanto, este estudo baseou-se apenas nos municípios que forneceram dados regularmente, durante todos os meses de 2014.
De modo complementar, utilizou-se o Cadastro Nacional de Estabelecimentos de Saúde (CNES) para acessar informações relativas à existência de CAPS nos diferentes municípios; e dados da Fundação Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), com o propósito de estimar as populações dos municípios no ano de 2014.
Para verificar a magnitude da ocorrência do registro de DM na Atenção Básica, utilizou-se, além dos números absolutos e percentuais de registros, três indicadores desenvolvidos especialmente para esse fim. O primeiro deles foi a Razão Populacional de Registro de DM (RPDM): tendo como numerador, o número de casos de DM registrados na Atenção Básica, e como denominador, a população cadastrada na Atenção Básica, sendo este indicador expresso em registros por 100 mil habitantes. Os outros dois indicadores utilizados foram a Capacidade de Registro de DM (CRDM) e a Estimativa de Casos de DM não Registrados (ENRDM). O cálculo destes dois indicadores partiu da seguinte estimativa do Ministério da Saúde do Brasil: 3% da população nacional seria portadora de transtornos mentais graves e persistentes (TMGP).4 A CRDM corresponde ao percentual dos casos de DM registrados sobre o total de casos estimados de TMGP. Já a ENRDM corresponde à diferença entre os casos estimados de TMGP e os casos de distúrbios mentais registrados.
Para realização da análise bivariável, o 'registro de DM' foi considerado como desfecho. As variáveis explicativas analisadas foram (i) localizar-se nas macrorregiões Sudeste ou Sul (regiões com melhores indicadores sociais e de saúde), (ii) ser capital de Unidade da Federação (UF), (iii) contar com uma população maior que 200 mil habitantes, (iv) apresentar cobertura pela Atenção Básica superior a 75% e (v) dispor de CAPS.
O teste exato de Fisher foi utilizado para verificar, na análise bivariada, diferenças entre proporções relativas às variáveis estudadas. O nível de significância estatística adotado foi de 5%.
Por se tratar de estudo ecológico realizado com dados secundários e tendo como unidades de análise o município e a UF, não o indivíduo, a pesquisa foi dispensada de apreciação por Comitê de Ética em Pesquisa.
Resultados
Foram incluídos dados de 5.014 municípios (90% do total de municípios brasileiros), englobando 90.186.880 pessoas de 15 ou mais anos de idade cadastradas no Sistema de Informação da Atenção Básica. Considerando-se os municípios incluídos, 50,6% estavam localizados nas macrorregiões Sudeste ou Sul, 97,3% possuíam população inferior a 200 mil habitantes, 87,2% apresentavam cobertura pela Atenção Básica superior a 75%, 69,1% não possuíam CAPS e 0,8% (42) registraram casos de DM na Atenção Básica, no período estudado (Tabela 1).
O registro de DM na Atenção Básica foi mais frequente nas macrorregiões Sudeste e Sul (p=0,001), nas capitais (p<0,001), em municípios com população maior que 200 mil habitantes (p<0,001), com cobertura pela Atenção Básica superior a 75% (p=0,005) e que dispunham de CAPS (p=0,001) (Tabela 2).
Nesses municípios, foram registrados 15.216 casos de DM, dos quais cerca de 83% registrados em quatro UF: Paraná (53,3%), Rio de Janeiro (14,2%), Santa Catarina (7,8%) e Minas Gerais (7,6%). Não houve registro de DM em 14 UF: duas da macrorregião Centro-Oeste, cinco da Nordeste, e em todas da macrorregião Norte (Tabela 3).
a) RPDM: Razão Populacional de Registro de Distúrbios Mentais
b) CRDM: Capacidade de Registro de Distúrbios Mentais
c) ENRDM: Estimativa de Casos de Distúrbios Mentais não Registrados
d) Houve registro de um caso
A RPDM foi de 16,9/100 mil habitantes; e a CRDM, de 0,6%. As macrorregiões que apresentaram os mais elevados valores desses indicadores foram a Sul (71,3/100 mil hab.; 2,4%) e a Sudeste (16,6/100 mil hab.; 0,6%). A ENRDM na Atenção Básica foi de 2.690.391 pessoas (Tabela 3).
Discussão
Os resultados deste estudo sugerem a fragilidade da articulação entre a Saúde Mental e os programas públicos de atenção básica à saúde, haja vista que menos de 1% dos municípios incluídos apresentaram registro de distúrbios mentais.
Além disso, evidenciou-se, no subgrupo de municípios com registro de casos de DM, uma sobre-representação de municípios localizados nas macrorrregiões com melhores indicadores socioeconômicos (Sudeste e Sul), providas de maior infraestrutura (capitais e municípios com população maior que 200 mil habitantes) e maior capacidade instalada na área da Saúde Mental (presença de CAPS). Entretanto, a literatura aponta que os contextos mais pobres e com menor capacidade instalada seriam aqueles nos quais a articulação entre Atenção Básica e a Saúde Mental far-se-ia mais necessária.2
A análise da magnitude do registro de DM evidenciou importante fragilidade na capacidade de identificação de casos: pouco mais de 0,5% dos casos esperados foram registrados, gerando uma baixa RPDM e uma estimativa de mais de 2,5 milhões de pessoas com DM sem registro. Um sub-registro de tal magnitude, ademais, apresentou variações importantes entre as macrorregiões: naquelas com piores indicadores sociais, como a Norte, não houve registro de caso, e nas Sudeste e Sul, que apresentaram os melhores indicadores, essa magnitude foi mais elevada.
A baixa magnitude de registro de DM na Atenção Básica não deveria ser atribuída, tão somente, a uma deficiência difusa do SIAB. Há evidências, por exemplo, de um melhor registro no sistema para outros agravos, como por exemplo, o diabete mellitus.5
A literatura sobre morbidade autorreferida por doenças crônicas aponta que determinados fatores, capazes de influenciar o acesso aos serviços de saúde, também podem impactar na autopercepção de doença.6 No caso específico dos transtornos mentais, sabe-se que estigmas sociais relacionados a esse agravo dificultam a identificação de casos baseada no autorrelato.2 Tais aspectos poderiam auxiliar na explicação, mesmo que parcial, das variações observadas na magnitude do registro entre as macrorregiões nacionais; ainda assim seriam insuficientes para justificar que 14 UF não tivessem apresentado nenhum registro sequer de DM, e que mais de 80% de todos os registros tivessem ocorrido em 4 UF. É mais razoável supor que políticas e iniciativas circunscritas ao nível local possam influenciar o maior registro de DM dentro de certos contextos, em detrimento de outros. Sobre iniciativas capazes dessa influência, destaca-se a implementação de estratégias de apoio matricial em saúde mental para equipes que atuam na Atenção Básica.
Uma possível limitação deste estudo encontra-se no uso das estimativas de transtornos mentais graves e persistentes - TMGP - como referência para a análise da magnitude de registro de DM no SIAB. Existe uma miríade de outras condições psiquiátricas não inclusas nesse subgrupo de transtornos, como os chamados transtornos mentais comuns, estes bem mais prevalentes na Atenção Básica.7 Outrossim, uma das reconhecidas dificuldades associadas à investigação de morbidade autorreferida é a categorização, em diagnósticos biomédicos, da percepção de doença por entrevistadores e entrevistados leigos.8 De qualquer forma, entende-se que os TMGP, dada sua mais visível disfuncionalidade, tenderiam a se aproximar mais do que, popularmente, seria considerado DM. O eventual uso de parâmetros mais abrangentes apenas aumentaria essa já evidente deficiência, na identificação de casos de DM pela Atenção Básica.
Os dados apresentados apontam que o registro de DM na população cadastrada no Programa de Agentes Comunitário de Saúde - PACS - e na Estratégia Saúde da Família - ESF -, aqui tomado como uma aproximação para avaliar a articulação entre a Saúde Mental e a Atenção Básica à Saúde no Brasil, é todavia incipiente, desigualmente distribuído e possivelmente dependente de iniciativas locais para sua efetivação.