No Brasil, os registros de violências revelam, de maneira geral, o predomínio dos homens, tanto como vítimas, quanto como perpetradores. Em 2013, o risco de morte de homens por agressões foi 11,3 vezes superior ao das mulheres, e 83,5% do total de internações por agressões no Sistema Único de Saúde (SUS) foram de homens.1 Na população jovem (20-29 anos), na qual as agressões são a principal causa de morte (54,6% no período 2000-2012),2 evidenciam-se diferenças marcantes entre os sexos quanto ao perfil das violências. Estudo realizado com dados do inquérito do Sistema de Vigilância de Violências e Acidentes (Viva), realizado pelo Ministério da Saúde, em 2011, com jovens vítimas de violências atendidos em serviços de urgência e emergência do SUS, revelou que os homens foram as principais vítimas (75,1%) e agressores (83,1% e 69,7% dos casos de violência perpetrada contra vítimas do sexo masculino e feminino, respectivamente). Entre os homens, predominaram agressões em via pública perpetradas por desconhecidos, com maior proporção de lesões mais graves e óbitos nas primeiras 24 horas. Por seu turno, entre as vítimas do sexo feminino, predominaram ocorrências no domicílio, perpetradas por companheiros, ex-companheiros, familiares ou conhecidos.3
O fato é que os homens são as principais vítimas de formas de violência que resultam em maior número de registros nos sistemas de informação da saúde, da segurança pública e da justiça. Por sua vez, a violência contra a mulher é caracterizada por sua invisibilidade, tendo em vista que ocorre principalmente no âmbito privado e é, em grande parte, perpetrada por familiares e conhecidos.3-5 Por estas características, grande parte das ocorrências não geram atendimentos e não são captadas pelos sistemas de informação, o que resulta em subenumeração dos eventos, e contribui para reforçar a invisibilidade da violência contra a mulher.
Lamentavelmente, este tipo de violência ganha visibilidade somente quando ocorrem casos extremos, que demandam ações do Estado, a exemplo dos estupros coletivos ocorridos no estado do Piauí e na cidade do Rio de Janeiro, entre maio e junho de 2016,6,7e dos feminicídios, crimes tipificados pela Lei nº 13.104/2015.8 A repercussão que alguns casos têm na mídia e nas redes sociais, a qual contribui para trazer à tona inúmeros relatos de casos semelhantes, desvela a falsa impressão de que a violência contra a mulher é um fenômeno de menor magnitude do que a violência que vitimiza os homens.
As estatísticas sobre estupros são um exemplo do subdimensionamento da magnitude da violência contra a mulher. Segundo o Anuário de Segurança Pública, em 2014 foram registrados 47.646 estupros no País, com subnotificação estimada em 35%.9 Por sua vez, o Sistema de Informação de Agravos de Notificação (Sinan), do Ministério da Saúde, registrou 17.781 atendimentos a mulheres vítimas de estupro em 2015, o que corresponde a uma média de 49 atendimentos por dia, ou mais de dois por hora. Entretanto, 40% dos municípios brasileiros ainda não notificavam ao Sinan os atendimentos a vítimas de violências. Além disso, nos municípios onde é realizada a notificação, nem todas as vítimas de estupro chegam a ser atendidas nos serviços de saúde, e também existe subnotificação do agravo entre aquelas que são atendidas.10 Supondo que os casos notificados correspondam a 10% das ocorrências, o número estimado de estupros por ano no Brasil seria de aproximadamente 500 por dia, ou mais de 20 a cada hora. De fato, o número de ocorrências de estupro no Brasil não é conhecido, e muito embora subestimada, sua magnitude impressiona.
No Brasil, em pesquisa encomendada pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública (2014), 90% das mulheres entrevistadas responderam que tinham medo de serem vítimas de agressão sexual.9 Esse temor não é infundado. O risco de uma mulher ser estuprada no Rio de Janeiro, no período dos Jogos Olímpicos de 2016, foi estimado em 3,5/10 mil. Este risco é semelhante àquele de um homem ser assassinado por arma de fogo (3,8/10 mil), maior que o risco de infecção por dengue (5/10 mil) e quase 12 vezes maior que o risco de infecção pelo vírus Zika (3/100 mil).11-13
Segundo a Organização Mundial da Saúde (OMS),5 35% das mulheres no mundo já sofreram violência física e/ou sexual perpetrada por parceiro íntimo ou violência sexual perpetrada por não parceiro. Ou seja, mais de uma a cada três mulheres no mundo já foi vítima de pelo menos um episódio desses tipos de violência, embora ainda existam muitas outras formas de violência contra a mulher, que abrangem um amplo espectro, desde a agressão verbal e outras formas de abuso emocional, passando pela violência física ou sexual, e que tem como expressão máxima o feminicídio.
É evidente que as estatísticas sobre violência contra a mulher no Brasil revelam somente uma pequena fração da ocorrência das diversas formas de violência às quais as mulheres são cotidianamente submetidas. Diante disto, evidencia-se a necessidade de aprimoramento dos sistemas de informação, no sentido de se ampliar sua cobertura e melhorar sua qualidade. Entre os sistemas gerenciados pelo Ministério da Saúde, destacam-se o Sistema de Informações sobre Mortalidade (SIM), o Sistema de Informações Hospitalares do Sistema Único de Saúde (SIH-SUS) e o Sistema Viva. Este sistema foi implantado em 2006 e está estruturado em dois componentes: (i) o inquérito realizado em serviços sentinela de atendimento de urgência e emergência; e (ii) o componente de vigilância contínua, incorporado ao Sinan em 2009.14 Cabe ressaltar que todos os casos de violência contra a mulher são agravos de notificação compulsória ao Sinan. Outros sistemas de informação também merecem ser explorados e integrados, como aqueles gerenciados pelo Ministério da Previdência; pelo Ministério da Justiça; pelas Secretarias de Segurança Pública dos estados e do Distrito Federal; pelo Ministério Publico; e pelo Poder Judiciário.
Não obstante a relevância dos dados dos sistemas de informação, estes apresentam limitações. Portanto, inquéritos com dados primários, coletados com a utilização de instrumentos validados, também são necessários para conhecer a realidade da violência contra a mulher.15,16
Os serviços de saúde também têm um papel fundamental na resposta à violência contra as mulheres, pois muitas vezes são o primeiro local onde as vítimas buscam atendimento. É importante que estes serviços estejam disponíveis nos dias e períodos de maior ocorrência da violência contra a mulher - finais de semana, noites e madrugadas - e que os profissionais dos serviços estejam capacitados para o atendimento adequado às vítimas e a notificação dos casos de violência.4,17-19
A violência contra a mulher é um problema de saúde pública de proporções epidêmicas no Brasil, embora sua magnitude seja em grande parte invisível. Este problema não pode ser tratado como se fora restrito a alguns segmentos, uma vez que permeia toda a sociedade brasileira. A prevenção e o enfrentamento da violência contra a mulher passam necessariamente pela redução das desigualdades de gênero e requerem o engajamento de diferentes setores da sociedade, para se garantir que todas as mulheres e meninas tenham acesso ao direito básico de viver sem violência.