Introdução
A leishmaniose visceral (LV) é uma doença infecciosa grave que atinge, sobretudo, populações menos favorecidas socioeconomicamente.1 A atenção à LV é uma atividade complexa, um desafio à Saúde Pública no Brasil, pois envolve diversas ações: controle do reservatório; redução da população do vetor; diagnóstico precoce; e tratamento.
O diagnóstico clínico da LV não é simples. A doença pode cursar com diferentes manifestações clínicas, comuns a outras enfermidades.2,3 Seu tratamento envolve o uso de medicamentos com potencial toxicidade, capazes de provocar graves efeitos adversos, especialmente em um cenário caracterizado pela insuficiência de profissionais preparados e de serviços organizados para a correta assistência e manejo da LV.4,5 Observa-se, ainda, baixo conhecimento e pouco envolvimento da população nas ações de prevenção e controle desse agravo,6 contribuindo para que a doença apresente alta taxa de letalidade no país, equivalente a 6,4% no período de 2009 a 2013.7
Para a efetividade das ações de prevenção e controle da LV nesse contexto, é imperativo intervir em localidades onde a LV é endêmica, respeitando o município enquanto espaço e sistema organizado, dinâmico e complexo para intervenção e análise, com ênfase na articulação e integração das ações entre serviços que, tradicionalmente, funcionam de forma fragmentada.5,8
No município de Ribeirão das Neves, Minas Gerais, foi implementada uma estratégia de ação de Saúde Pública dirigida à LV, com os objetivos de (i) ampliar a integração entre os serviços, (ii) estruturar os processos relacionados à prevenção e assistência aos casos, (iii) estimular maior nível de informação da população e dos profissionais de saúde a respeito da LV, além de (iv) sistematizar a análise de dados e a divulgação das informações sobre a doença.
O presente estudo teve como objetivo avaliar a estratégia de organização de serviços de saúde para prevenção e controle da leishmaniose visceral em Ribeirão das Neves, estado de Minas Gerais, Brasil, no período de 2010 a 2012.
Métodos
Trata-se de pesquisa avaliativa sobre a implantação de uma estratégia de organização de serviços para a prevenção e controle da leishmaniose visceral no município de Ribeirão das Neves, de 2010 a 2012. Esse tipo de abordagem estuda as relações entre uma intervenção e seu contexto, durante sua implementação; consiste em emitir um juízo de valor sobre o conjunto dos fatores estruturais (recursos empregados e sua organização) e de processo (serviços ou bens produzidos) que facilitam ou comprometem os resultados obtidos com a intervenção.9 Optou-se pelo estudo de caso, visando à análise detalhada, em profundidade, de uma determinada realidade ou situação em seus diversos aspectos, permitindo a elaboração de hipóteses e um debate sobre o objeto de estudo.10
Ribeirão das Neves, município pertencente à Região Metropolitana de Belo Horizonte, Minas Gerais, apresentava em 2014 uma população de 319.310 habitantes: população jovem, de baixa escolaridade, renda per capita de R$479,77, índice de desenvolvimento humano de 0,684 e índice de Gini de 0,40.11-13 No mesmo ano, o sistema de saúde local organizava-se territorialmente em cinco Regiões Sanitárias, dotadas de 53 equipes da Estratégia Saúde da Família (ESF) para cobrir 60% da população, cinco unidades básicas de referência, duas unidades de pronto atendimento (UPA), um hospital geral de médio porte e um Ambulatório de Referência de Doenças Infecciosas e Parasitárias (ARDIP), entre outros serviços de média complexidade.14
A estratégia adotada em Ribeirão das Neves, aqui avaliada, teve como eixo orientador a integração dos serviços de assistência, vigilância epidemiológica e controle de zoonoses, por meio da criação de uma equipe de coordenação e avaliação (a partir de agora, citada como EC), composta por representantes dos serviços mencionados anteriormente mais um enfermeiro da ESF de cada uma das cinco Regiões Sanitárias. A EC foi criada com os objetivos de (i) mobilizar a gestão e os demais profissionais para o trabalho, (ii) realizar análise diagnóstica de contexto organizacional e das práticas relacionadas à atenção e prevenção da LV, (iii) planejar as ações, coordenar e executar as atividades propostas, (iv) reorganizar a assistência e vigilância aos casos, (v) apoiar a preparação de técnicos de enfermagem como profissionais de referência nas ações de prevenção e controle da LV nos serviços, (vi) operacionalizar a intervenção de prevenção da LV na comunidade e (vii) avaliar a implantação da estratégia. O cronograma de atividades da equipe foi definido durante reuniões mensais, no primeiro ano de implantação, bimestrais no segundo ano e trimestrais a partir do terceiro ano.
Para a melhoria da atenção aos casos de LV, a estratégia previa o estímulo ao diagnóstico precoce e ao tratamento adequado, em tempo oportuno, por meio das seguintes ações:
- identificação das portas de entrada de casos suspeitos da doença;
- sensibilização e orientação de profissionais de saúde quanto aos dados de ocorrência da LV no município e à necessidade de maior suspeição clínica da doença, e redução da letalidade;
- realização do diagnóstico da LV no próprio município, para maior agilidade na liberação do resultado;
- comunicação articulada entre laboratório, unidades de saúde e vigilância epidemiológica;
- definição de serviços de referência para tratamento dos casos, de acordo com avaliação clínico-laboratorial de risco de óbito;
- construção de fluxogramas de orientação para abordagem da doença, com a participação de profissionais dos diferentes pontos de atenção; e
- instituição de uma referência técnica, para dar continuidade ao trabalho.
A estratégia do serviço de vigilância epidemiológica consistiu na elaboração de fluxograma interno, descrevendo seus principais objetivos: promover maior integração das ações de vigilância com os serviços de assistência; melhorar a vigilância dos casos de LV, com acompanhamento de sua evolução até cura clínica; implementar o georreferenciamento de casos e óbitos; sistematizar a análise de dados; e divulgar as informações.
A preparação de técnicos de enfermagem como profissional de referência para a LV, um por unidade de Atenção Primária à Saúde, ocorreu em oficina de trabalho, com carga horária de oito horas, que constou de roda de conversa, aula teórica e atividades em grupo de discussão sobre a doença e a função desse profissional no serviço, a que se acrescentou a elaboração de um plano de ação local. O papel do técnico de enfermagem como referência foi assim definido pelo grupo: conhecer o território; problematizar e dialogar com a equipe de saúde e com a comunidade a respeito da prevenção e controle da LV; participar do processo de educação permanente no serviço; e divulgar e atualizar informações a respeito da LV junto às equipes de saúde, procurando incentivar o diagnóstico precoce.
A estratégia de intervenção na comunidade, durante as visitas dos agentes de saúde nas cinco Regiões Sanitárias, caracterizou-se pela implementação de ações dirigidas à prevenção primária, por meio de atividades educativas e de avaliação sanitária, visando à ampliação do conhecimento sobre a LV e modificação de fatores de risco ambientais.
O modelo lógico9 da estratégia (Figura 1) define a organização dos serviços, com vistas à prevenção e controle da LV, em seis componentes:
(i) Mobilização da gestão e atuação da equipe de coordenação da proposta
(ii) Análise de contexto e planejamento
(iii) Reorganização da assistência aos casos de LV
(iv) Reorganização da vigilância à LV
(v) Formação de técnico de enfermagem como referência da prevenção e controle da LV no serviço e
(vi) Intervenção na comunidade
O modelo de avaliação consistiu na definição de perguntas avaliativas e, a partir dessas perguntas, foram estabelecidas técnicas de coleta, critérios, descrições ou métodos de cálculo, e os parâmetros utilizados nas matrizes de análise do grau de implantação da intervenção.
As matrizes foram definidas pela técnica de consenso,15 amparadas nas concepções teóricas, legais, e nas discussões realizadas com os integrantes da EC, além de pareceres de farmacêuticos, enfermeiros e médicos de diferentes serviços, envolvidos nas ações de diagnóstico e tratamento de casos humanos.
A coleta de dados ocorreu a partir de três grandes ações:
- levantamento de informações, no decorrer de reuniões realizadas com a EC, a respeito da situação epidemiológica da doença no município, da organização do sistema local, das informações disponibilizadas pelas coordenações de assistência, vigilância epidemiológica e controle de zoonoses, pelos recursos humanos e pela base de dados do Sistema de Informação de Agravos de Notificação (Sinan);
- observação do processo de trabalho no sistema de saúde local; e
- aplicação de questionários semiestruturados, sobre a atenção à LV, aplicados junto a diferentes categorias de profissionais - médicos, enfermeiros, técnicos de enfermagem e agentes de combate às endemias.
Medidas-síntese (média) e de posição (mediana) foram utilizadas na análise descritiva dos dados de cada componente avaliado. O grau de implantação (GI) foi definido como um sistema de escores, com pesos diferenciados para cada indicador selecionado, segundo o nível de importância atribuído. Assim, constituiu-se a matriz de análise e julgamento. Nesta matriz, considerou-se a mesma estrutura para todos os componentes da estratégia. Foram avaliados o ambiente físico, equipamentos, insumos e recursos humanos.
Todos os critérios relacionados à dimensão Estrutura foram considerados essenciais à organização dos serviços com atenção à LV e poderiam receber, como pontuação máxima, 10 pontos. São eles:
- existência de no mínimo uma unidade de saúde organizada para aplicação de antimoniais por Região Sanitária;
- existência de laboratório que realiza diagnóstico da LV no próprio município;
- existência de médicos em cada um dos pontos de atenção do sistema de saúde (Atenção Primária à Saúde, UPA, hospital) orientados para o diagnóstico e tratamento da LV; e
- um responsável técnico definido e atuante na organização do sistema de saúde com atenção à LV.
Para a dimensão Processo, os critérios poderiam receber, como pontuação máxima, 5 ou 10 pontos. Os critérios avaliados no componente Mobilização da gestão e atuação da equipe de coordenação da proposta relacionaram-se a:
- equipe de coordenação criada (10 pontos);
- periodicidade das reuniões conforme cronograma (5 pontos);
- percentual de presença dos membros da EC nas reuniões programadas (5 pontos); e
- percentual de cumprimento das ações definidas nas reuniões (5 pontos).
No componente Análise de contexto e planejamento, avaliou-se a elaboração do relatório com diagnóstico realizado e do modelo lógico da proposta de organização dos serviços com atenção à LV pela EC, com a atribuição de até 10 pontos para cada um. Nos demais componentes - Reorganização da assistência aos casos de LV; Reorganização da vigilância à LV; Formação de técnico de enfermagem como referência da prevenção e controle da LV no serviço; e Intervenção na comunidade -, todos os critérios definidos foram avaliados com pontuação máxima de 10 pontos. São eles:
- fluxogramas de atenção à LV elaborados para os serviços de Atenção Primária à Saúde, hospital e pronto atendimento;
- aumento de 20% no número de casos notificados de LV, em relação ao período anterior ao estudo;
- redução de 50% no intervalo entre o início de sintomas e a notificação do caso, em relação ao período anterior ao estudo;
- redução de 20% no intervalo entre notificação do caso e início do tratamento, em relação ao período anterior ao estudo;
- redução em 50% na letalidade da LV no município, em relação ao período anterior ao estudo;
- acompanhamento de 100% dos casos de LV no ARDIP, até a cura;
- duas análises por ano com divulgação de dados epidemiológicos relacionados à LV;
- investigação de 100% dos óbitos associados à LV;
- 100% dos técnicos de enfermagem da Atenção Primária à Saúde preparados para atuar como referência da LV;
- 100% das unidade de Atenção Primária à Saúde (ESF) com técnico de enfermagem atuando como referência da LV;
- inserção de ações de prevenção da LV na rotina de trabalho de agentes de saúde das cinco Regiões Sanitárias;
- melhoria do conhecimento da população-alvo a respeito da LV; e
- melhoria das condições sanitárias dos domicílios-alvo da atuação dos agentes.
Foi estabelecido um total de 225 pontos, sendo 70 pontos para a dimensão Estrutura (20 pontos para estrutura física e 50 pontos para RH) e 155 pontos para a dimensão Processo (25 pontos para as atividades relativas ao componente Mobilização da gestão e atuação de equipe de coordenação e avaliação da proposta; 20 pontos para a Análise de contexto e planejamento; 50 pontos para a Reorganização da assistência aos casos de LV; 30 pontos para a Reorganização da vigilância à LV; 20 pontos para a Formação e atuação do técnico de enfermagem como referência da LV no serviço; e 10 pontos para a Intervenção na comunidade).
Dessa forma, procedeu-se à construção dos escores de implantação em duas etapas. No primeiro momento, foram determinados os valores observados (somatória dos pontos dos indicadores) e calculado o alcance de implantação (somatória dos pontos observados dividida pela somatória dos pontos máximos, vezes 100) para cada componente. Posteriormente, realizou-se a somatória dos componentes para o cálculo do alcance de implantação total. A partir desses percentuais, a equipe de pesquisa definiu as seguintes categorias para o grau de implantação: adequado, 90 a 100%; parcialmente adequado, 70 a <90%; não adequado, <70%.
Os dados foram tabulados e processados pelo programa Microsoft(r) Office Excel(r) 2010.
O presente estudo obedeceu às normas de pesquisas envolvendo seres humanos, preservando o sigilo dos dados, em conformidade com a Resolução do Conselho Nacional de Saúde (CNS) nº 466, de 12 de dezembro de 2012, e contou com a aprovação do Comitê de Ética em Pesquisa do Centro de Pesquisas René Rachou/Fiocruz/MG: Protocolo n° 17/2010. O Termo de Consentimento Livre e Esclarecido foi assinado por todos os participantes.
Resultados
O grau de implantação da estratégia de organização de serviços para prevenção e controle da leishmaniose visceral em Ribeirão das Neves foi de 84%, sendo classificado como parcialmente adequado. A Estrutura mostrou-se adequada em relação ao ambiente físico e a equipamentos (100% para cada um); entretanto, os recursos humanos obtiveram a pior avaliação (64%), sendo seu grau de implantação classificado como não adequado. Em relação ao Processo, os componentes Mobilização da gestão e atuação da equipe de coordenação da proposta, Análise diagnóstica e planejamento e Intervenção na comunidade foram os que obtiveram melhor avaliação (100% para cada um); a Formação de técnicos de enfermagem como referência da prevenção e controle da LV atingiu 95%; e por fim, a Reorganização da assistência aos casos de LV e a Reorganização da vigilância à LV tiveram resultados de 80% e 77%, respectivamente, estas classificadas com grau de implantação parcialmente adequado (Tabela 1).
Ao se avaliar a dimensão Estrutura no subcomponente de recursos humanos, verificou-se que a UPA II e o hospital apresentaram as menores pontuações em relação à existência de médicos em cada um dos pontos de atenção do sistema de saúde orientados para o diagnóstico e tratamento da LV: 40% e 10% respectivamente. A Atenção Primária à Saúde foi o subcomponente que apresentou a maior pontuação (90%) para esse critério. Os critérios do subcomponente de ambiente físico e equipamentos foram adequados (100%), conforme o esperado (Tabela 2).
Quanto à aplicação de medicamento específico para LV, as unidades de saúde mostraram-se organizadas nas cinco Regiões Sanitárias, e o diagnóstico laboratorial passou a se realizar no Laboratório Municipal, mediante parceria firmada com o Laboratório de Referência Estadual e disponibilização de testes rápidos.
Na avaliação da dimensão Processo, a maioria dos subcomponentes atingiu 100% de implantação. Entre os critérios elencados no componente Reorganização da assistência aos casos de LV, somente o critério de redução de 50% no intervalo entre início de sintomas e a notificação do caso (relativamente ao período anterior ao estudo) não atingiu o esperado, o que impactou no grau de implantação do conjunto das atividades realizadas, classificado como parcialmente adequado (Tabela 3). Todos os óbitos associados à LV foram investigados, sendo verificada redução de 50% na letalidade pela doença no município, em relação ao período anterior ao estudo.
Sobre o componente Reorganização da vigilância à LV, observou-se que a intervenção foi parcialmente implantada. O critério de duas análises por ano com divulgação de dados epidemiológicos relacionados à LV foi o pior avaliado, com grau de implantação não adequado (50%). O acompanhamento de 100% dos casos de LV no ARDIP até a cura foi classificado como parcialmente adequado (80%) (Tabela 3).
O componente Formação de técnicos de enfermagem como referência da prevenção e controle da LV no serviço foi considerado implantado. A formação desses profissionais atingiu 100% em relação ao quantitativo de profissionais preparados; entretanto, o deficit de profissionais nos serviços impossibilitou o alcance do indicador de cobertura de 100% das unidades (Tabela 3): quatro unidades de Atenção Primária à Saúde ficaram sem técnico de enfermagem de referência da LV, devido à inexistência do profissional.
O componente Intervenção na comunidade alcançou 100% dos pontos atribuídos e teve como critério a inserção de ações de prevenção da leishmaniose visceral na rotina de trabalho dos agentes de saúde das cinco Regiões Sanitárias (Tabela 3).
Discussão
A avaliação da implantação da estratégia mostrou que a intervenção contribuiu para a melhoria da organização dos serviços de saúde direcionada às ações de prevenção e controle da leishmaniose visceral. O trabalho estimulou maior integração e cooperação entre serviços, com maior agilidade no tratamento da doença, a partir da notificação de casos suspeitos pelo serviço de vigilância epidemiológica. O tipo de pesquisa realizado mostrou-se propício à análise de implantação de programas - a exemplo do objeto deste estudo - em que as explicações dos fatos decorrem da profundidade da análise do caso e não do número de unidades.9
A implantação de uma estratégia como essa, pautada na integração e articulação entre serviços, exige apoio institucional e participação dos profissionais envolvidos nas ações de assistência e vigilância em saúde, pois envolve diálogo e construção compartilhada, desde o planejamento até a avaliação, respeitando e valorizando os diferentes saberes, experiências, práticas e contextos. Embora não seja um resultado direto da avaliação realizada, supõe-se que a mobilização e o apoio da gestão do SUS local influenciaram positivamente no desenvolvimento da estratégia e no resultado da intervenção realizada, não obstante as dificuldades de operacionalização do sistema de saúde.
A significativa participação e empenho dos representantes dos diferentes serviços nas atividades propostas pela EC contribuiu para a implantação e avaliação sistemática da estratégia, com os devidos ajustes. A análise diagnóstica e a elaboração coletiva do modelo lógico possibilitaram maior aproximação da EC com a estratégia e com o processo de avaliação formativa, possibilitando a reflexão e aprendizado constante.
A avaliação formativa contribui para o aprimoramento de um programa ou intervenção,16 conforme foi verificado por este estudo. Além de apontar acertos e falhas, a avaliação auxiliou no gerenciamento do trabalho, com efeito retroativo contínuo entre os atores do processo, identificando obstáculos e possibilidades de soluções. Aspectos subjetivos, inerentes aos diversos componentes da EC, além das diferentes perspectivas de visão proporcionadas pelos serviços representados, seguramente influenciaram - de algum modo - o processo de avaliação.
No presente estudo, a avaliação permitiu detectar dificuldades na operacionalização da estratégia e fragilidades do sistema de saúde que influenciaram nos resultados do grau de implantação alcançado. Os indicadores relacionados aos recursos humanos tiveram a pior classificação, com grau de implantação considerado não adequado. O deficit quantitativo e qualitativo de profissionais foi um dos principais entraves encontrados e refletiu negativamente na implantação da estratégia, nos processos de reorganização da assistência aos casos de LV, formação de profissionais e vigilância da doença, cujos efeitos repercutem diretamente na qualidade da atenção à saúde. Esse deficit constitui um dos principais problemas funcionais e estruturais do SUS no país.17 Na Atenção Primária à Saúde do município, quase metade das unidades de saúde permaneceram sem médico durante todo o período do estudo. No serviço de vigilância epidemiológica, a ausência de profissional qualificado dificultou a análise e divulgação de dados epidemiológicos relacionados à LV, o que contribuiu para a baixa pontuação na avaliação de implantação de processo referente ao componente Reorganização da vigilância à LV. Estudos de avaliação de sistemas de informações do SUS têm observado que a rotatividade e a qualificação insuficiente de recursos humanos, entre outros fatores, podem comprometer a análise adequada das informações e dificultar o alcance de seus propósitos.18,19
Os resultados da análise diagnóstica identificaram entraves operacionais que afetavam diretamente a qualidade da atenção à LV no sistema de saúde, entre eles (i) falta de integração entre os serviços de vigilância epidemiológica e assistência, (ii) deficit de acesso aos serviços de saúde, agravado pela falta de médicos e outros profissionais, comprometendo o funcionamento adequado dos serviços, além da (iii) ausência de fluxos de orientação a respeito da correta abordagem da doença. A duração prolongada dos sintomas e, por conseguinte, a demora no diagnóstico e tratamento dos pacientes com LV tem sido identificada como fator de risco para a letalidade associada à doença.20,21
O controle de cura da LV é basicamente clínico, razão porque o seguimento do paciente tratado deve ser feito aos três, seis e 12 meses após o início do tratamento.21 Neste estudo, o critério de acompanhamento pelo Ambulatório de Referência de Doenças Infecciosas e Parasitárias - ARDIP - de 100% dos casos de LV até a cura atingiu 80% e contribuiu para o resultado parcialmente adequado da avaliação da implantação do componente Reorganização da vigilância à LV. Na avaliação de estrutura, os indicadores relativos à estrutura física e equipamentos atingiram pontuação máxima, evidenciando maior organização do sistema de saúde na atenção à LV. Antes do início do estudo, a falta de infraestrutura para diagnóstico de LV no próprio município contribuía para o atraso na confirmação do diagnóstico da doença e consequentemente, atraso no início do tratamento. Em estudo realizado por Luz e colaboradores (2001)22 sobre a resolutividade diagnóstica para as leishmanioses em municípios da Região Metropolitana de Belo Horizonte, os autores mostraram que até mesmo aqueles que possuíam serviços referenciados para o atendimento de casos da doença apresentavam deficiências no diagnóstico da LV.
A disponibilização de testes laboratoriais para diagnóstico da LV no município de Ribeirão das Neves durante o desenvolvimento deste estudo, ao agilizar o procedimento, pode ter favorecido uma maior suspeição da doença e redução do intervalo de tempo entre a notificação do caso e o início do tratamento; além da ampla circulação da informação, que contou com o protagonismo dos técnicos de enfermagem lotados nas unidades da Atenção Primária à Saúde, onde atuaram como articuladores dessa informação entre os demais profissionais. O tempo de evolução da LV até a notificação foi bastante variável, condizendo com os dados encontrados na literatura.23,24
A formação do técnico de enfermagem como referência da LV consistiu em uma proposta inovadora de aprendizagem no cotidiano dos serviços, e de protagonismo de uma categoria profissional à qual, tradicionalmente, são reservadas funções exclusivamente assistenciais. A proposta analisada mostrou que pode ser incorporada ao processo de trabalho das equipes, pois não exige infraestrutura complexa e pode ser realizada na própria unidade de saúde. O deficit e a alta rotatividade de técnicos de enfermagem, entretanto, dificultaram a implantação desse componente da estratégia.
Entre as limitações para a realização do estudo, relacionam-se o desenvolvimento da intervenção na dinâmica e na complexidade de funcionamento dos serviços, suas particularidades e deficiências, sendo que algumas delas não permitiam modificações durante a implantação da estratégia e portanto, influenciaram os resultados. Ademais, diferentes pontos de vista, envolvendo os diversos atores do processo de intervenção e avaliação da implantação, perpassaram todo o trabalho. Não obstante, o tipo de avaliação utilizado contribuiu com o desenvolvimento e aprimoramento da organização de serviços de saúde para a prevenção e controle da leishmaniose visceral.
Os resultados deste trabalho demonstraram a importância e a viabilidade da estratégia de organização de serviços de saúde para a melhoria da prevenção, controle e atenção aos casos de leishmaniose visceral. A intervenção realizada revelou-se tão promissora quanto possível de ser utilizada em diferentes contextos locais, inclusive na organização e atenção a outros agravos.