Introdução
A esquistossomose, uma das principais doenças negligenciadas do mundo, tem como agente etiológico cinco espécies de Schistosoma que parasitam o sistema circulatório dos seres humanos: S. mansoni, S. japonicum, S. intercalatum, S. mekongi e S. haematobium. A patologia associada às quatro primeiras espécies está relacionada à formação de uma fibrose hepato-intestinal crônica nas pessoas infectadas. Já a doença causada por S. haematobium afeta o trato urinário dos indivíduos infectados.1
A endemia está distribuída em 76 países e estimam-se mais de 700 milhões de pessoas sob risco de contrair a doença.2 No Brasil, a transmissão da esquistossomose ocorre em 18 estados brasileiros, e a prevalência da doença está abaixo de 1%.3 Embora a prevalência venha caindo na área endêmica como um todo, ainda existem localidades onde ela persiste, com índices acima de 25%.4 Essa realidade impõe desafios para o Ministério da Saúde, cuja meta é eliminar a esquistossomose como problema de Saúde Pública no país.5
Está claro que a eliminação da endemia deve envolver um esforço conjunto de vários setores públicos e a combinação de diferentes estratégias de controle (aumento da cobertura de diagnóstico e tratamento, saneamento, abastecimento de água e educação em saúde), além de assistência às populações atingidas pelas ações das equipes de Atenção Básica à Saúde. Há uma lacuna na difusão do conhecimento sobre o assunto para a população, associada ao fato de a esquistossomose apresentar-se, na maior parte dos casos, em sua forma crônica e assintomática, levando a que a doença seja muitas vezes negligenciada.6 Tal contexto recomenda programas de educação em saúde, que incentivem e envolvam as comunidades nos processos de prevenção e controle.7 Nesse sentido, é imprescindível refletir e compreender os determinantes sociais das doenças, para que as pessoas sejam estimuladas a adotar práticas preventivas efetivas.6,8
A literatura tem demonstrado que a educação em saúde, quando associada a outras medidas de controle, contribui para a redução da prevalência da esquistossomose, possibilitando maior eficácia e sustentabilidade dos programas de ação.9,10 A educação em saúde busca uma relação dialógica entre profissionais e população, visando à participação cidadã e à formação de pessoas com autonomia e comprometidas com a coletividade. No controle e prevenção de doenças e melhoria da qualidade de vida, a educação em saúde atua tanto na perspectiva da educação formal quanto da não formal.6,11
As estratégias educacionais para a promoção da saúde procuram não só informar. Ao estimular o desenvolvimento de uma postura crítica na população e considerar seus conhecimentos acerca do problema de saúde, elas criam condições para que a percepção sobre o agravo se reflita em um comportamento de prevenção.6,11
A educação e a comunicação em saúde utilizam várias estratégias para informar e mobilizar pessoas, motivando-as à participação no processo de cuidado coletivo da saúde, exercício da responsabilidade social, adoção de práticas preventivas e substituição de comportamentos de risco por outros mais seguros. Os materiais educativos impressos (MEI) - cartazes, folhetos e cartilhas - sobre esquistossomose são ferramentas de estratégia educacional.12 Eles devem conter informações e ilustrações corretas e contextualizadas, abordando o ciclo biológico, hospedeiros intermediários, sintomas, diagnóstico, profilaxia e tratamento, auxiliando na transformação das representações sociais da doença.13
As informações sobre a esquistossomose são veiculadas e distribuídas principalmente pelo Sistema Único de Saúde, o SUS, em seus níveis federal, estadual e municipal, por intermédio dos MEI. Estes materiais são afixados nas paredes e portas de entrada de unidades de saúde, escolas e estabelecimentos comerciais, ou entregues à comunidade em campanhas específicas. Contudo, observa-se uma carência de materiais educativos impressos, efetivos no empoderamento social dos indivíduos que vivem em áreas de risco. Estudos têm demonstrado que a elaboração dos MEI, carente de participação popular, apresenta incorreções científicas enquanto abusa de imagens - em alguns casos, estereotipadas ou grotescas.10,12,14 É evidente a necessidade de estudar a forma como se apresentam esses materiais, distribuídos no maior número de áreas endêmicas.
O presente estudo buscou descrever as características dos materiais educativos impressos - MEI - sobre esquistossomose produzidos no Brasil, nos níveis federal, estadual e municipal.
Métodos
Trata-se de uma caracterização de MEI, coletados por busca ativa. Os materiais foram solicitados aos gestores do Ministério da Saúde e das secretarias estaduais de saúde por e-mail, explicitando os objetivos do trabalho. A Coordenação-Geral de Hanseníase e Doenças em Eliminação, da Secretaria de Vigilância em Saúde do Ministério da Saúde, e 17 Secretarias de Estado responderam à solicitação e enviaram MEI produzidos por elas e/ou por prefeituras, autorizando a análise. Utilizou-se também o material produzido pelo Centro de Pesquisas René Rachou, pertencente ao acervo do Grupo de Pesquisas em Helmintologia e Malacologia Médica.
Todos os materiais disponibilizados foram digitalizados. As categorias para caracterização foram construídas com base em estudos que traçaram diretrizes ou avaliaram materiais produzidos para diferentes endemias.15-20 Todos os materiais enviados foram analisados.
A caracterização contemplou as seguintes categorias, também apresentadas na Figura 1: formato (identificação do formato, identificação do público-alvo, instituição produtora, data de publicação, contato); parasito e hospedeiro intermediário (citação do nome científico do parasito, representação gráfica dos vermes adultos, citação do gênero dos moluscos, presença de ilustração do molusco, representação gráfica do habitat dos moluscos); hospedeiro definitivo ou doente (representação gráfica do doente, sexo do doente, cor da pele do doente, representação social/profissional do doente); e doença (quantidade de nomes populares, representação do ciclo biológico, escalas nas fases microscópicas do ciclo, exame de fezes como diagnóstico, distinção entre forma aguda e crônica, sintomas, distribuição geográfica, representação gráfica das atividades de risco, citação das principais atividades de risco, tratamento).
Para o tratamento dos dados, as variáveis foram codificadas e o programa Microsoft Excel 2010(r) utilizado, para obtenção da distribuição de frequências das variáveis.
Resultados
Entre os 60 MEI recolhidos, 27 foram classificados como cartilhas, 17 como cartazes e 16 como folhetos. O público-alvo estava identificado em oito deles. O endereço de contato estava presente em apenas 21 dos materiais (Tabela 1). Entre os 13 que informaram a data de publicação, o mais antigo é de 1975 e o mais recente, de 2010.
A instituição produtora estava explicitada em 58 MEI (Tabela 1), sendo nove realizações de Secretarias Municipais de Saúde, 36 de Secretarias de Estado de Saúde, 11 do Ministério da Saúde, um de instituição privada e um da Organização Mundial da Saúde (OMS).
Entre os 60 MEI analisados, 17 foram produzidos pelo estado de Minas Gerais, seis pelo estado de Pernambuco, cinco pelo estado do Pará, quatro pelo estado do Maranhão e quatro pelo estado de Alagoas; os estados de Rondônia e do Rio Grande do Sul produziram três cada um; os estados da Bahia, do Paraná e do Mato Grosso do Sul, dois cada um, e os estados do Rio Grande do Norte, de Sergipe, da Paraíba, de São Paulo e do Ceará produziram um material cada um. Em outros cinco materiais, foi possível identificar a instituição responsável pela elaboração mas não a região do país a que esses materiais se destinavam. Em dois materiais, não foi possível a identificação da instituição que os produziu.
O nome científico do parasito Schistosoma mansoni foi citado em 48 materiais, esteve ausente em 12 e foi grafado corretamente em apenas 19. O nome do parasito com incorreção na grafia aparece em nove materiais. Em 21 deles, o nome do parasito não era condizente com a nomenclatura binomial; em nove, estava escrito de forma incompleta, ou seja, somente com o gênero (Tabela 1).
Em 36 materiais, o verme adulto apareceu representado corretamente; em outros 23, estava ausente. Em um material, o verme estava representado na forma de uma centopeia (Tabela 1).
O gênero do molusco Biomphalaria estava corretamente grafado em 13 dos materiais (Tabela 1), sendo que a citação de diferenciação específica (B. glabrata, B. tenagophila e B. straminea) apareceu em apenas sete desses exemplares. Ao analisar a subcategoria 'presença de ilustração do molusco', perceberam-se incorreções e inadequações. Em 39 materiais, o molusco foi representado de forma incorreta, sendo comumente utilizadas imagens estereotipadas, caricatas ou fora de escala, não condizentes com a realidade. Como exemplo, a Figura 2 traz o caramujo estilizado, fora da água, sem escalas e maior do que os hospedeiros humanos. O cartaz ainda recomenda indevidamente, como forma de prevenção, "Lave suas mãos antes de fazer as refeições", e não é datado.
Quanto ao habitat dos moluscos, 18 materiais retrataram esse ambiente de forma incorreta; em oito, essa representação não foi feita (Tabela 1).
Em 32 materiais, a ilustração do doente estava correta, em oito estava deturpada e em 20, ausente. Homens e mulheres doentes foram representados nos materiais com a seguinte distribuição: em 33 materiais, apareceram apenas homens; e em nove, ambos os sexos. Não houve inserção exclusiva do sexo feminino. Em 18 materiais, os sexos não foram representados (Tabela 2).
Em relação à cor da pele do hospedeiro definitivo, 29 materiais trouxeram a cor branca, 12, a cor negra, e 13 a cor parda. Em sete materiais, a cor da pele do doente não foi definida, sendo representada parte do corpo. Em um material, o doente apareceu na cor verde (Tabela 2).
Quanto à representação social/profissional do hospedeiro definitivo, houve 66 inserções de escolares, 48 de trabalhadores rurais, 37 de donas de casa, 25 de médicos ou agentes de saúde, 12 de esportistas e oito de professores (Tabela 2).
Em 41 materiais, mais de um nome popular da doença foi citado. O termo 'xistose' apareceu em 29, 'barriga d'água' em 23 e 'doença do caramujo' ou 'mal do caramujo' em 16 materiais. Apareceram também os termos 'xistossomose', 'doença de Manson-Pirajá da Silva', 'bilharziose' e 'hidropisia' (Tabela 3).
O ciclo da doença estava correto e com todos os elementos presentes em apenas sete materiais; estava incorreto ou incompleto, não elucidando a forma correta de contágio, ou não apresentando todos os estágios de vida do parasito, em 35 materiais; e ausente em 18 materiais (Tabela 3). Em 39 materiais, não se apresentou a escala de tamanho das imagens do ciclo biológico. Em 47 exemplares, foram apresentados desenhos; apenas 27 trouxeram fotografias.
Em 24 materiais, foi feita referência ao exame de fezes como o principal instrumento no diagnóstico da doença (Tabela 3). A representação iconográfica das fezes estava presente em 33 materiais, com pouco destaque para o papel delas na contaminação do ambiente.
A forma aguda foi distinguida da forma crônica em 35 materiais. Os sintomas mais citados foram diarreia (46), hepatoesplenomegalia (30), barriga d'água (33), prisão de ventre (30), febre (29) e coceira (24) (Tabela 3).
Em apenas nove materiais, a distribuição geográfica da doença foi mencionada, e em 57 MEI, houve representação gráfica das atividades de risco (Tabela 3). O tratamento foi indicado em 37 materiais e omitido em 23.
Várias formas de prevenção foram citadas nos materiais, algumas inadequadamente: por exemplo, "Lave suas mãos antes de fazer as refeições" (Figura 2). As formas de prevenção mais citadas foram "Não banhar-se em águas contaminadas" em 50 materiais, "Defecar em local apropriado" em 46, "Não lavar roupas e vasilhas em locais contaminados", em 34 MEI. Já as expressões 'educação em saúde' e 'procurar o posto de saúde' apareceram em apenas oito e dez dos materiais, respectivamente.
Discussão
Observou-se que os MEI analisados e distribuídos em larga escala para a população, de maneira geral, não apresentaram rigor científico quanto aos aspectos da esquistossomose, podendo comprometer as estratégias educacionais. Especula-se que alguns erros ou omissões podem ter feito com que esses materiais não tenham atingido seu principal objetivo: esclarecer a população sobre a doença e, consequentemente, auxiliar no controle da endemia.
Os maiores equívocos foram encontrados na referência ao ciclo do parasito: apenas sete dos materiais apresentaram o ciclo completo, com todas as etapas, livre de erros. Nos demais materiais, observou-se representação incorreta do molusco, falta da menção a um dos estágios do ciclo de vida do parasito e ausência de representação iconográfica do bolo fecal como contaminante do ambiente.
A correta ilustração dos ciclos biológicos e seus elementos é determinante na construção do conhecimento e na representação social da doença, e consequentemente, no sucesso dos programas de controle. A presença de escalas é essencial, principalmente para as crianças, as quais, "em ambiente aquático, imaginam cercárias do tamanho de peixinhos".4 Sugere-se que as ilustrações do ciclo venham acompanhadas de objetos conhecidos como, por exemplo, "a imagem de uma moeda que pode servir de referencial de tamanho para o molusco".16
O exame de fezes e o tratamento, também determinantes para a eficácia de um programa de controle da esquistossomose, não foram mencionados em vários materiais educativos impressos. Autores já alertaram para a não inserção da representação iconográfica das fezes nesses materiais, levando a minimizar a importância de tal elemento no ciclo.17 Assim, vê-se prejudicada a discussão crítica sobre o papel das fezes na manutenção da endemia, e sobre os riscos decorrentes do hábito, comum na população de áreas endêmicas, de defecação nas margens de coleções hídricas.18
Outrossim, observou-se a reprodução de estereótipos de papéis sociais e/ou de gênero nas ilustrações e fotografias, como o predomínio de personagens masculinos portadores da doença, ou a apresentação de profissional da Saúde como homem e de profissional da Educação como mulher. A representação exclusiva da figura masculina no contexto do ciclo biológico, presente em mais da metade dos materiais, geralmente realizando atividades de risco - como pescar e banhar-se -, minimiza o papel epidemiológico da mulher no contexto da endemia: transmite a ideia de que somente o homem pode ser infectado, o que não corresponde à realidade.21
Em alguns materiais, percebeu-se um forte apelo visual, traduzido pelo excesso de cores não condizentes com a realidade, infantilização da representação do caramujo e excesso de imagens. A utilização de uma grande quantidade de imagens, da mesma forma que o uso equivocado ou o abuso de cores, acaba por interferir na construção do conhecimento e na capacidade de mobilização social desses materiais.12 O apelo visual é uma característica que, se bem utilizada, pode se tornar um recurso importante na construção do conhecimento sobre a doença. A representação incorreta e a descrição equivocada do habitat dos caramujos do gênero Biomphalaria, por sua vez, podem promover uma associação da esquistossomose com caramujos terrestres, fato comum entre moradores de áreas endêmicas, comprometendo as ações de controle.22
A representação de mapas, com a distribuição da doença encontrada em apenas nove materiais analisados, é essencial para que o leitor identifique e avalie sua situação no espaço geográfico e no contexto da doença.18 Ademais, a importância da presença das nomenclaturas populares nos materiais deve ser avaliada, principalmente considerando-se a ampla diversidade linguística do Brasil, de forma a que os materiais sejam mais democráticos e alcancem um número maior de pessoas.
Outro fato que chamou a atenção: em 20 materiais, elaborados pelos três níveis de gestão - municipal, estadual e federal -, solicitava-se à população que exigisse das autoridades políticas públicas sanitárias a tomada de certas medidas. Por exemplo: "Exigir tratamento de água nas casas e tratamento de esgoto", indicando a transferência de responsabilidade, de maneira a delegar ao sujeito atribuições do Estado.
Muitos materiais revelaram ser reproduções fiéis, uns dos outros, o que sugere a necessidade de planejamento para a produção de materiais educativos adequados à realidade local, e maior criatividade em sua concepção. Textos e imagens foram reproduzidos deliberadamente, mostrando que não houve uma gestão eficiente da instituição responsável pela criação, confecção e validação desse tipo de material.12,14,18 O mesmo grupo de pesquisa responsável por esta caracterização também identificou, de um modo geral, incoerências nos folhetos, cartazes e cartilhas disponíveis na rede mundial de computadores - internet -20 e em livros didáticos indicados pelo Programa Nacional do Livro Didático (PNLD) do Ministério da Educação.18
Este estudo é o primeiro a analisar MEI de diferentes regiões, épocas e esferas governamentais, e apontar incorreções e inconsistências em sua produção. Uma de suas limitações esteve na seleção dos materiais incluídos, restrita àqueles enviados pelos gestores contatados. O fato de somente 13 materiais estarem datados não permitiu avaliar os contextos históricos, tampouco as teorias hegemônicas da educação em saúde que orientaram essas produções.
Destaca-se a importância de se envolver profissionais qualificados na elaboração e validação de materiais de veiculação pública (sítios eletrônicos, livros didáticos e MEI) com informações corretas e layout agradável, atrativos ao leitor.
Os materiais educativos impressos analisados, em sua maioria, apresentaram conceitos equivocados e/ou incompletos em relação ao modelo epidemiológico da esquistossomose. A informação correta contribui para a construção de um pensamento científico e crítico, a adoção de atitudes que minimizem o risco de se contrair a doença e o fortalecimento da promoção da saúde.