Introdução
Um dos principais problemas relacionados à atenção aos pacientes crônicos é a não adesão ao tratamento farmacológico, tendo como consequência o agravamento do caso e o aumento dos gastos com atenção especializada. 1 , 2 O acesso adequado - ou inadequado - aos medicamentos tem sido considerado o principal fator da adesão - ou não adesão. 3 Pouco se conhece, no entanto, sobre como se comporta a adesão quando há pleno acesso a medicamentos.
O Programa Remédio em Casa, da Secretaria Municipal da Saúde de São Paulo, iniciativa pública de acesso a medicamentos em domicílio, foi criado em 2005 com o objetivo de organizar o atendimento à população com hipertensão arterial, diabetes mellitus e hipotireoidismo, garantindo entrega domiciliar de medicamentos e assistência terapêutica integral. 4 É oportuno verificar como a adesão ao tratamento se comporta em um ambiente de pleno acesso a medicamentos, além do que se faz necessário observar o acesso a assistência à saúde, a participação em grupos educativos e outros fatores contributivos da adesão.
O objetivo do presente trabalho foi analisar a adesão ao tratamento medicamentoso e fatores associados entre portadores de hipertensão arterial participantes do Programa Remédio em Casa.
Métodos
Estudo transversal que abordou a população residente em Guaianases, região do município de São Paulo com graves problemas sociais. 5
Foram incluídas pessoas de ambos os sexos, portadoras de hipertensão arterial com 50 anos de idade ou mais, acompanhados em uma das seguintes unidades básicas de saúde (UBS): UBS Guaianases 1, UBS Jardim Robru e UBS Vila Chabilândia. Os dados foram obtidos mediante entrevista individualizada, realizada na própria UBS, e pela leitura do receituário.
A seleção dos usuários do Programa Remédio em Casa candidatos a participar do estudo foi realizada por amostra de conveniência. Tomando a lista de cada UBS, consultou-se o agendamento de consultas para se conhecer a data de retorno do paciente à unidade. O convite para participação no estudo foi feito no dia da consulta do usuário com a equipe multiprofissional, sendo a entrevista realizada imediatamente após a consulta ou agendada para data futura. A definição da amostra de entrevistados considerou, primeiramente, a quantidade de pacientes ativos de cada unidade: 75 pacientes ativos da UBS Guaianases 1, 254 pacientes ativos da UBS Jardim Robru e 225 pacientes ativos da UBS Vila Chabilândia. Com base nesses quantitativos, realizou-se, de forma proporcional, a seguinte distribuição: 14 pacientes da UBS Guaianases 1, 49 pacientes da UBS Jardim Robru e 43 pacientes da UBS Vila Chabilândia, resultando na amostra total de 106 indivíduos atendidos pelo programa. O cálculo da amostra seguiu os seguintes parâmetros: alfa de 0,05, poder de 0,8 e prevalência da adesão em 50%, chegando-se aos 106 participantes.
As entrevistas foram realizadas ao longo do segundo semestre de 2012 e não houve recusa de participação. O questionário aplicado foi composto por quatro blocos: características sóciodemográficas; características clínicas; características do programa; e Teste de Medida de Adesão (Measurement of Treatment Adherence [MAT]), uma escala validada no Brasil e amplamente utilizado no país e no mundo. 6 - 8
Para determinar a adesão, foi utilizado o MAT, 6 composto por sete questões adaptadas das escalas de Morisky, 7 Shea 8 e Ramalhindo. 9 No questionário, as respostas atenderam a escala de Likert com as seguintes pontuações: sempre (1), quase sempre (2), com frequência (3), às vezes (4), raramente (5) e nunca (6). As respostas a cada questão foram somadas e divididas pelo número total de questões, sendo o valor obtido convertido em uma escala dicotômica, construída para indicar os sujeitos por sua adesão ou não adesão ao tratamento farmacológico. Considerou-se como não adesão os valores obtidos de 1 a 4; e como adesão, os valores 5 e 6. 10 Não foi calculado o percentual de resposta para cada item da escala de Likert; realizou-se a contagem da pontuação, cujo resultado foi dividido por 7: se o número obtido dessa divisão fosse superior a 5, o indivíduo participante era considerado aderente, de acordo com a recomendação do MAT. 10
Calculou-se a prevalência de adesão segundo as variáveis independentes. As associações foram analisadas pelo teste do qui-quadrado; e as razões de prevalência, por meio da regressão de Poisson. Foi utilizado o programa STATA 11. Considerou-se o nível de significância de 5%.
Todos os participantes do estudo assinaram o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido. O projeto de pesquisa foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa da Secretaria Municipal da Saúde de São Paulo - Parecer no 114/2012 e pelo Comitê de Ética da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo - Parecer no 862.583/2012.
Resultados
Foram entrevistados 106 portadores de hipertensão arterial com pleno acesso a medicamentos. A idade dos participantes variou entre 50 e 90 anos, com média de 65,8±2,2 anos e predomínio do sexo feminino; a maioria deles vivia com companheiro, era predominantemente negra e tinha entre 5 e 11 anos de estudo, com renda acima de 2 salários mínimos à época (Tabela 1).
Tabela 1 - Prevalência de adesão a medicamentos segundo características sociodemográficas e clínicas dos participantes e do Programa Remédio em Casa no município de São Paulo, 2012

a) Ajustada por idade e sexo
b) IC95%: intervalo de confiança de 95%
c) Teste do qui-quadrado
d) Valor do salário mínimo em 2012, ano do estudo: R$622,00
Entre as medidas não farmacológicas para controle da hipertensão arterial, destaca-se a reeducação alimentar e a prática de atividade física; 79,3% dos entrevistados passaram por avaliação clínica nos últimos seis meses, 82,9% disseram nunca haver falha na entrega do medicamento (falha da remessa postal), 83,1% responderam que retiraram os medicamentos na UBS e 82,6% não tiveram qualquer dificuldade para obter os medicamentos nas unidades. Dos 106 participantes, 80,2% foram considerados aderentes. Do ponto de vista estatístico, não houve diferenças significativas na adesão quanto às características sociodemográficas, clínicas e do Programa Remédio em Casa; optou-se por apresentar apenas a análise descritiva e as razões de prevalência ajustadas por idade e sexo (Tabela 1).
Discussão
Os portadores de hipertensão arterial com pleno acesso a medicamentos apresentaram alta adesão terapêutica. Os poucos participantes não aderentes não diferiram dos demais, do ponto de vista das características sociodemográficas, comportamentais e clínicas
O pequeno número de participantes, principal limitação da pesquisa, pode explicar a ausência de diferenças significantes. Outra limitação na comparação com a literatura é a forma como a adesão foi medida, já que diferentes abordagens de adesão são encontradas em uma gama de estudos sobre o tema, por exemplo, em pesquisas que realizam a contagem de comprimidos, que avaliam os níveis sanguíneos do princípio ativo e outras, ainda, que utilizam tão somente a aplicação de questionários. 6 , 7 A literatura recomenda que sejam realizadas duas medidas de adesão e que as mesmas sejam comparadas, o que não foi possível no presente estudo.
Em geral, a adesão a medicamentos em portadores de doenças crônicas é baixa - em torno de 50% - 10 e diversos fatores podem influenciar essa proporção. Vergetti, Melo e Nogueira 11 e Jin e colaboradores, 12 além de outros pesquisadores, 13 , 14 mostraram associação da adesão com a idade: de acordo com esses estudos, pacientes mais idosos diferenciaram-se por apresentar dificuldades físicas e cognitivas. A situação econômica também pode influenciar a adesão: menor poder aquisitivo está relacionado com menor acesso a medicamentos. 14 - 18
O acesso a medicamentos no Brasil ainda é um problema, apesar das diversas políticas para sua oferta gratuita. Enquanto a Política Nacional de Medicamentos visa o acesso aos medicamentos essenciais, o desabastecimento ainda ocorre devido a problemas complexos e multifatoriais. 18 - 23 A falha no abastecimento de medicamentos essenciais nas unidades públicas de saúde penaliza, predominantemente, indivíduos mais vulneráveis e de menor renda. 2
Estudos mostram que um dos fatores importantes na adesão é o acesso ao medicamento e o acompanhamento da equipe multiprofissional.16 - 18 O presente estudo observou que a falha na entrega domiciliar, nas poucas ocasiões em que ocorreu, foi contornada pela pronta entrega na unidade de saúde. Ademais, quando os participantes foram questionados sobre a existência de impedimento para retirar medicamentos na farmácia da UBS, 82,6% responderam que nunca tiveram esse problema e 40% dos entrevistados alegaram que o principal motivo de não ter feito seu uso adequado foi a falta do medicamento na rede de serviços. Portanto, a entrega do medicamento em domicílio parece não influenciar a adesão, já que as atividades do programa exigem a presença dos participantes na unidade, ocasião em que os medicamentos podem ser retirados na farmácia.
Outro aspecto importante do Programa Remédio em Casa é o acompanhamento médico: 79,3% dos usuários referiram ter-se consultado nos últimos seis meses. Se o absenteísmo é baixo nas consultas médicas individuais, nos grupos educativos observa-se um elevado número de faltosos, o que corrobora estudos anteriores. 18 , 23 No estudo realizado na cidade de Ribeirão Preto-SP em 2005, que avaliou 245 pacientes hipertensos,23 89,7% dos entrevistados compareceram às consultas médicas e apresentaram maior aderência quando comparados aos pacientes faltosos.
O estudo sobre adesão ao tratamento antirretroviral realizado com 73 pacientes no mesmo município de São Paulo-SP, em 2014, apontou índices significativos de adesão irregular aos antirretrovirais, com correlações entre adesão e suporte familiar.24 O estudo sobre adesão ao tratamento farmacológico para depressão realizado em Uberlândia-MG no ano de 2009, com 24 pacientes, identificou que a adesão está relacionada ao contexto do tratamento.25 A adequada estrutura e organização do serviço, com garantia de acompanhamento e consultas, pleno acesso a medicamentos e fortalecimento do vínculo com a equipe multiprofissional minimizam riscos futuros de adoecimento e morte.18 , 21
É plausível supor que em situação de adequada assistência, fatores relacionados aos aspectos individuais perdem influência na determinação da não adesão, sendo superados pela oferta efetiva de atenção à saúde e pleno acesso a medicamentos.
Poucos são os estudos avaliativos da adesão à farmacoterapia em um cenário de total disponibilidade de medicamentos. Portanto, novas pesquisas envolvendo maior número de participantes e diversificação na mensuração da adesão ainda são necessários, para entender detalhadamente a complexa dinâmica da determinação da adesão ao tratamento das doenças crônicas.