Introdução
Violência contra crianças é um fenômeno multifacetado e multideterminado, que acompanha a trajetória humana desde tempos remotos. Para grande parte das crianças, o lar não é um local seguro como seria de se esperar quando, nesse ambiente, elas sofrem agressões e violações de seus direitos1 ou são traumatizadas por presenciarem violência entre seus pais. As quatro expressões mais visíveis da violência praticada contra crianças são a física, a sexual, a psicológica e as negligências.2
Dados da Organização Mundial da Saúde (OMS) revelam que mais de duas mil crianças morrem diariamente, em decorrência de traumas físicos, e 53 mil morrem assassinadas a cada ano; e que uma em cada três mulheres é abusada sexualmente antes de completar 18 anos de idade. Segundo a Organização, a maior concentração de vítimas de violências encontra-se na faixa etária de zero a dez anos.3
A violência na infância não privilegia sexo, raça, faixa etária ou classe social.4 Embora os órgãos oficiais de proteção registrem um grande número de casos, a pouca qualidade dessas informações dificulta a compreensão da violência e sua visibilidade.5,6 A frequente carência de dados associa-se à falta de conhecimento mais aprofundado sobre as diversas situações características de maus-tratos.7-9
Na década de 1990, o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) tornou obrigatória a notificação de toda suspeita ou confirmação de violência contra crianças ou adolescentes no Brasil, sob pena de multa para o profissional que deixasse de comunicar os casos.10 Na área da Saúde, o Ministério instituiu a Ficha de Notificação de Casos Suspeitos ou Confirmados de Violência, implementada a partir de 2006.11
A vigilância epidemiológica de violências e acidentes vem complementar um conjunto de ações e serviços cujo principal objetivo é garantir o acesso de todos à atenção integral à saúde, caracterizando melhor o perfil da vítima, circunstâncias do evento e provável autor de agressão. Trata-se de uma estratégia útil à busca ativa de eventos considerados menos graves, que não compõem os tradicionais sistemas de informações em saúde do país. Ademais, a vigilância desses agravos permite identificar os grupos mais vulneráveis à manifestação da violência e serve de orientação às ações de prevenção, cuidados e proteção para suas vítimas.12
Apesar das barreiras existentes para o registro das informações,13 os casos notificados são de grande importância. É por meio deles que a violência ganha visibilidade epidemiológica, social e, principalmente, humana. Essas informações permitem, ainda, a criação de políticas públicas voltadas à prevenção e estimulam a capacitação dos profissionais e a formação de serviços articulados de proteção à criança e ao adolescente em situação de violência.14 A análise periódica dos registros pode melhorar a qualidade da informação.
A notificação da violência, além de um procedimento burocrático de coleta, voltado à obtenção de informações epidemiológicas, deve ser entendida como um instrumento de garantia de direitos e de preservação da saúde e da vida, de forma articulada com a rede de proteção social e com os serviços de atenção integral à saúde.15
Este estudo teve como objetivo descrever os casos de violência contra crianças notificados no município de Ribeirão Preto-SP, Brasil.
Métodos
Realizou-se um estudo epidemiológico descritivo com dados secundários do Sistema de Vigilância de Violências e Acidentes (VIVA) da Secretaria Municipal de Saúde de Ribeirão Preto-SP. Esse banco de dados é alimentado a partir das Fichas de Notificação/Investigação Individual de Violência Doméstica, Sexual e/ou outras Violências, oriundas dos registros de violência contra a criança realizados nos vários serviços de saúde, educação e justiça, de organizações não governamentais e da comunidade do município.
O sistema VIVA, que tem como finalidade coletar dados e produzir informações para subsidiar ações públicas intersetoriais e integradas, voltadas à redução da morbimortalidade por causas externas, é constituído por dois componentes:
Vigilância contínua de violência doméstica, sexual e/ou outras violências interpessoais e autoprovocadas (VIVA Contínuo)
Vigilância sentinela de violências e acidentes em emergências hospitalares (VIVA Sentinela)
A partir de 2009, em decorrência de sua especificidade, o componente de vigilância contínua do VIVA foi incorporado ao Sistema de Informação de Agravos de Notificação (Sinan).14,16
Foram incluídos no estudo todos os casos de violência contra crianças de zero a nove anos de idade, notificados no município de Ribeirão Preto-SP no período de janeiro de 2006 e dezembro de 2008. A classificação etária baseou-se na definição de criança utilizada pela OMS e Ministério da Saúde.3,17
Foram estudadas as seguintes variáveis: faixa etária (em anos: 0-1, 2-3, 4-5, 6-7, 8-9); sexo da criança (masculino, feminino); sexo do agressor (masculino, feminino, ignorado); relação do agressor com a vítima (pai, mãe, demais familiares, amigos/vizinhos, desconhecidos, babá/cuidador, pessoa com relação institucional, outros, ignorado); uso de álcool e drogas pelo agressor (sim, não, ignorado); relato anterior de violência (sim, não, ignorado); tipo de violência sofrida pela criança (física, psicológica, sexual, negligências, outras); e local da violência (residência, escola, via pública, outros, ignorado).
Os dados foram descritos por meio de frequências absolutas e percentuais. As análises foram realizadas com auxílio do software SAS versão 9.0.
O projeto de pesquisa foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa em Seres Humanos do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto: Processo nº 7274/2009.
Resultados
Foram registradas 498 notificações de violência contra crianças, no período de 2006 a 2008, em Ribeirão Preto-SP. Verificou-se elevação no número de notificações ao longo dos anos estudados, de 112 (22,5%), em 2006, para 189 (37,9%) em 2007 e 197 (39,6%) em 2008. A procedência dessas notificações mostrou predomínio da área da Saúde (79,3%), seguida da Justiça (19,7%) e da Educação (0,8%) (Tabela 1).
Entre as vítimas de violência, prevaleceram crianças do sexo feminino (56,4%) em quase todas as faixas etárias, exceto entre oito e nove anos de idade, em que predominaram crianças do sexo masculino (52,7%). Na faixa etária de dois a cinco anos, mais de 60% das vítimas eram do sexo masculino (Tabela 2).
Entre os agressores, predominaram homens (53,6%), enquanto 8,2% das agressões referiram participação conjunta de homens e mulheres. Chama a atenção o elevado percentual de casos nos quais o sexo do agressor era ignorado (17,3%). Em 43,4% dos casos, a violência foi perpetrada pelos pais ou por outros familiares, com destaque para a participação paterna (22,7%). Como categoria isolada, a violência mais frequente foi aquela com envolvimento de pessoas próximas ao núcleo familiar, embora não diretamente inseridas nele, como namorado, ex-namorado, irmão do namorado(a) ou outro contato dos pais ou responsáveis pela vítima, além de padrinho-madrinha (24,7%). Cuidadores como agentes de agressão foram mencionados com baixa frequência (2,0%). Não havia informação sobre a relação do agente da violência com a vítima em 16,5% dos casos. Em 40,0% dos registros, não havia suspeita de agressores alcoolizados e/ou drogados, enquanto 10,8% eram suspeitos de uso de álcool e/ou drogas; 49,2% não tinham registro dessa informação. Em 24,9% dos casos notificados, a violência foi reincidente; em 36,7%, não havia relato de violência anterior e em 38,4%, a informação permaneceu ignorada (Tabela 3).
Os tipos de violências mais frequentemente referidos foram os de natureza física (59,2%), seguidos de violência psicológica (38,6%), sexual (36,7%) e negligências (19,7%) (Tabela 4). A comparação entre sexo e idade das vítimas mostrou amplo predomínio de violências sexuais contra meninas, particularmente aquelas situadas na faixa etária de quatro a cinco anos. Para todos os tipos de agressão, o local de ocorrência mais frequente foi a própria residência da vítima (75,5%), sendo o sexo masculino predominante entre os agressores, especialmente nas situações em que a violência foi de natureza sexual.
Discussão
A análise das 498 notificações de violência contra crianças de zero a nove anos de idade observou elevação no número de notificações ao longo dos anos investigados, com maior procedência de registros da área da Saúde (79,3%). Predominaram vítimas do sexo feminino, na idade entre dois e cinco anos (mais de 60%). A maioria dos agressores era do sexo masculino (53,6%), destacando-se a figura paterna (22,7%). Agressões físicas foram as mais praticadas e, para todos o tipos de agressões, o local de maior ocorrência foi a casa da família.
O aumento gradual do número de registros de violências no período do estudo parece indicar uma maior responsabilidade assumida pelos agentes notificadores frente aos direitos e às necessidades das crianças e adolescentes, além do reconhecimento da notificação como elemento essencial no combate a essa prática.16-18 O crescimento do número de notificações não implica, necessariamente, aumento do número de casos de violência contra crianças, conforme observado em outros estudos.12,17,19
Como principal limitação deste estudo, cabe destacar a elevada subnotificação dos casos de violência contra crianças e sua possível influência nos resultados.19,20 Em estudos conduzidos a partir de dados secundários, como neste caso, não é possível manter-se um controle estrito sobre a qualidade das informações trabalhadas, uma vez que elas são coletadas como parte da rotina de serviços, por diferentes pessoas e em épocas diversas, na maioria das vezes desvinculadas de um projeto específico de investigação. Certamente, as fragilidades intrínsecas a essa opção metodológica contribuíram para reduzir a qualidade de algumas informações, evidente, de modo inequívoco, nos elevados percentuais de ausência de preenchimento de certas variáveis. Tal limitação, aliada à subnotificação de casos de violência, dificulta uma caracterização mais precisa da situação da violência contra crianças no município.
O fato de a maioria das notificações ter se originado na área da Saúde reforça o entendimento desse setor como um ponto de convergência do maior contingente das vítimas de violência,13,21 sobretudo quando comparada a outras áreas como a Justiça e a Educação. Esta última, particularmente, pode se constituir em área de grande importância para a identificação dos casos de violência e proteção infantil, haja vista o protagonismo privilegiado dos professores e da escola na formação e seu contato diário com as crianças. Contudo, os dados gerados pela Saúde ainda tendem a ser mais completos do que os provenientes de outros setores públicos.21,22
Por se apresentarem como locais propícios à revelação dos casos de violência familiar, os serviços de saúde podem desempenhar um papel de grande importância na implementação das políticas públicas de enfrentamento da violência, contribuindo não apenas com a identificação dos casos que requerem atuação imediata ou mediata, como também para um conhecimento mais próximo da magnitude do problema.23 Nem por isso deve-se deixar de destacar a relevância da intersetorialidade no enfrentamento da violência doméstica, promovendo uma integração entre diferentes setores da sociedade envolvidos e interessados na identificação, assistência e prevenção da violência doméstica.23,24
A distribuição de violências de diferentes naturezas, entre todas as faixas etárias consideradas neste estudo, demonstra a grande fragilidade das crianças em relação a agressões, corroborando diversos achados da literatura que apontam para o fato de que, quanto mais nova a criança, mais vulnerável a situações de maus-tratos ela se encontra, dada sua incapacidade para reagir, física e emocionalmente, a situações adversas de negligência, abusos e maus-tratos físicos e sexuais.21,24,25
O predomínio de agressores do sexo masculino confirma outras observações referentes à participação mais elevada de homens nos atos de violência doméstica.25 Com expressiva frequência, ressurge a figura paterna e de outras pessoas que, mesmo não pertencentes ao círculo familiar mais imediato, dele se aproximam em virtude de algum relacionamento com um membro da casa. A literatura relata ser o agressor, na maioria dos casos, o pai biológico; ou não familiares, pessoas que habitam na circunvizinhança, conhecidos e amigos da família, com certo acesso ao interior das residências.25,26 Ao contrário de outras observações, que situam as mães como importante agente de agressão pelo contato mais constante e prolongado com os filhos, na presente investigação, elas não assumiram relevância maior do que os demais familiares. Babás e cuidadores tiveram participação reduzida no total das agressões notificadas, muito embora tal informação possa ser enviesada pelo fato de o contato dessa categoria com as crianças, muitas vezes, acontecer na ausência de outras pessoas, impedindo a observação e registro de eventuais atitudes agressivas.
Achados da literatura, condizentes com o perfil dos agressores mais frequentes, mostram a residência como o local onde mais ocorrem as violências contra crianças, no espaço privado, familiar, contribuindo para preservar relações de poder e hierarquia de um sobre outro morador na mesma residência.22,25,27 Essa situação, também observada neste estudo, é bastante preocupante e contraditória: um espaço que deveria, simbolicamente, representar proteção e segurança, em vez disso, produz-reproduz, entre seus membros, singularidades e subjetividades da gravidade da violência doméstica e familiar.
A literatura é bastante controversa no que diz respeito ao sexo da criança vitimada. Alguns autores indicam maior ocorrência de violência contra meninos, enquanto outros afirmam o contrário;12,15,27,28 já para um terceiro grupo, o sexo da vítima não parece ser determinante na manifestação de violência contra crianças e adolescentes.28,29
Na presente investigação, observou-se que a maioria das crianças que sofreram violência eram do sexo feminino, em quase todas as faixas etárias, exceto entre os oito e os nove anos, fato esse também relatado em outros trabalhos.26,29,30 Chama a atenção o amplo predomínio do sexo feminino entre as vítimas de violência sexual, endossando inúmeras observações de diversos autores.7,27 A OMS estima que, no ano de 2002, as vítimas de algum tipo de violência sexual contra menores de 18 anos de idade somaram 150 milhões de meninas e 73 milhões de meninos, revelando a dimensão mundial desse tipo de agressão. Como seria de se esperar, são os homens os principais envolvidos nesse tipo de violência, por conta das relações sociais baseadas nas diferenças entre sexos e na relação de poder presente na construção dos gêneros.30
Ainda com relação à maior incidência de violência sexual contra o sexo feminino, uma provável explicação é a de que a sociedade brasileira vive marcada por uma ideologia machista, que tende a condenar a própria vítima. O Sistema de Vigilância de Violências e Acidentes - VIVA - apontou a violência sexual contra meninas de zero a nove como forma de violência mais frequente (45,5%), seguida da negligência (30,1%).11,24
A referência ao uso de bebidas alcoólicas e de drogas ilícitas pelo agressor não se revelou expressiva, no presente estudo. Todavia, esse dado deve ser visto com cuidado, em função da pouca completude de preenchimento do campo relativo a essas variáveis no protocolo de coleta de informações.
O relato anterior de violência foi observado em um quarto dos casos estudados, proporção inferior àquela apresentada em outras investigações que chegam a referir valores da ordem de 50 ou até mesmo 60%.1,27 Frente à invisibilidade que envolve o fenômeno da violência contra menores, é possível que a detecção de recidiva apenas nos casos mais graves possa ter contribuído para os achados deste estudo.
Esta investigação permitiu a descrição e a caracterização da violência praticada contra crianças na cidade de Ribeirão Preto-SP, no período de 2006 a 2008. Apesar das limitações apontadas, trabalhos desenvolvidos a partir de dados secundários são capazes de gerar informações que, se pouco divulgadas ou valorizadas, tendem a permanecer à margem das preocupações sociais; do contrário, se tornadas conhecidas, essas informações podem servir de apoio à implementação de medidas preventivas visando reduzir o impacto de agravos. Se o fenômeno relatado aqui ainda é pouco investigado em nosso meio, futuros estudos com enfoque similar podem ser de grande utilidade para o maior conhecimento da situação e melhor orientação de políticas públicas destinadas às crianças sob situação de violência.