Introdução
A vigilância do óbito infantil (VOI) é reconhecida como uma importante estratégia para o conhecimento da situação de saúde e da assistência prestada pela rede de atenção materno-infantil. Outrossim, trata-se de um instrumento de avaliação da efetividade do sistema de saúde.1-4 A partir de 2010, o Ministério da Saúde do Brasil instituiu a obrigatoriedade da vigilância do óbito infantil e fetal em todo o território nacional.5 Graças a uma normativa definida, publicada mediante Portaria, a investigação dos óbitos passou a ser reconhecida institucionalmente, enquanto ferramenta para a compreensão da cadeia de determinantes das mortes, especialmente as evitáveis.5,6 Contudo, o número de óbitos infantis investigados no país ainda precisa ser ampliado.7-12
Na cidade do Recife, capital do estado de Pernambuco, a VOI foi implantada como instrumento crítico-reflexivo da organização da rede de saúde, diferenciando-se das demais localidades/Unidades da Federação que conduziam essas atividades vinculadas aos Comitês de Prevenção dos Óbitos Municipais, Regionais e Estaduais.2,13 O conhecimento do processo de desenvolvimento da VOI pode contribuir para a efetivação da estratégia, além de fornecer informações relevantes sobre os desafios na operacionalização, e favorecer instituições que todavia não implantaram ou que precisam fortalecer a VOI, ao antever impasses diante da normatização instituída no país e do contexto socioeconômico e organizacional local.
Este artigo teve por objetivo relatar a experiência da vigilância do óbito infantil no Recife, onde a atividade era realizada anteriormente à instituição dessa vigilância pelo Ministério da Saúde. Aborda-se a utilidade dessa estratégia para a gestão da política de saúde da mulher e da criança, a produção de informações relevantes e a formação de consciência crítica dos profissionais da Saúde.
Métodos
Realizou-se pesquisa documental para a reconstituição histórica da intervenção. Foram realizadas consultas a informantes-chave e aos acervos - impresso e digital - da Secretaria de Saúde do Recife.
Recife, capital de Pernambuco, localiza-se na região Nordeste do Brasil. De acordo com o Censo Demográfico de 2010, era a cidade do país com a quarta maior população urbana: 1.537.704 habitantes, dos quais 19.142 (1,24%) crianças menores de um ano de idade.14
Foram revisados os seguintes documentos: projeto de implantação da VOI,15 relatórios, apresentações realizadas para os profissionais dos distritos sanitários, apresentações em congressos,16-19 ofícios, comunicações internas e fichas-síntese dos óbitos infantis investigados e discutidos. A consulta e análise desses documentos teve como eixo a identificação e compreensão dos elementos centrais do processo de implantação, componentes, operacionalização e recomendações da VOI, revelando-se seu conteúdo aparente e latente. Foram selecionados documentos datados de 2002 (ano da proposta de implantação da estratégia) até 2015.
Em seguida, foram realizadas consultas a informantes-chave, participantes da implantação e consolidação dessa vigilância. Descreveu-se o processo de implantação, componentes, operacionalização e recomendações da VOI. Para mensuração da cobertura da estratégia, utilizou-se como fonte de dados o Sistema de Informações sobre Mortalidade (SIM) e as planilhas elaboradas pela Secretaria de Saúde do Recife para o monitoramento da operacionalização da VOI, relacionados ao período de 2003 a 2015. Os bancos de dados foram disponibilizados pela referida secretaria, obtendo-se as frequências absolutas e relativas dos óbitos investigados. No município, as informações do SIM são consideradas consolidadas: historicamente, Recife tem apresentado avanços na cobertura e qualidade dos dados desse sistema, utilizado como fonte de informações dos óbitos para o cálculo direto da mortalidade infantil.20
Este estudo obteve a anuência da Secretaria de Saúde do Recife e foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa do Centro de Pesquisas Aggeu Magalhães/Fundação Instituto Oswaldo Cruz: Protocolo nº 07336313.6.0000.5190, de 3 de abril de 2013.
Resultados
Processo de implantação da vigilância do óbito infantil - VOI
Em 2002, após a análise da situação da mortalidade infantil no Recife, elaborou-se uma proposta para a VOI, construída coletivamente, com a participação de gestores, gerentes e trabalhadores da assistência e vigilância. A estratégia tinha como propósitos (i) identificar as falhas na atenção à saúde materno-infantil que contribuíam para as mortes, definindo sua evitabilidade, (ii) melhorar a qualidade dos sistemas de informações e (iii) utilizá-los para a reflexão, planejamento e adoção de medidas voltadas à redução da mortalidade infantil.15
A operacionalização da VOI aconteceu de forma gradativa, nos seis distritos sanitários (DS) do Recife, condicionada pela disponibilidade de recursos humanos e pela magnitude do problema, sendo concluída em 2006. Essa estratégia foi implantada no Recife, antes mesmo do Ministério da Saúde tornar obrigatória sua realização,5 a exemplo de outras experiências em municípios2,8,10,11 e estados do país.9,13
Em cada distrito sanitário, assim como no nível central municipal, pelo menos um técnico de nível superior ficou responsável pela VOI e foi capacitado para desenvolver as atividades previstas. Entre os requisitos desejados, esse profissional deve ter uma visão global do Sistema Único de Saúde (SUS), especialmente do modelo de atenção à saúde, saber ouvir e estimular a reflexão, sistematizar a investigação e conduzir as discussões sobre os óbitos, demonstrando habilidade para agregar o grupo e mediar conflitos. Suas atribuições relacionam-se à execução e organização das ações de investigação, promoção de contatos interinstitucionais, coordenação das discussões e elaboração de relatórios.
Componentes, objetivos e operacionalização
A VOI constitui-se de quatro componentes:
Identificação dos óbitos infantis
Investigação epidemiológica
Discussão dos óbitos
Encaminhamento das propostas de promoção, atenção à saúde e correção das estatísticas vitais.
A Figura 1 representa uma síntese do processo de trabalho desenvolvido na VOI, com destaque para as diferentes atuações do nível central municipal e do DS.

Figura 1 - Componentes e atividades da vigilância do óbito infantil na cidade do Recife, Pernambuco, 2015
O primeiro componente (identificação dos óbitos infantis) tem como objetivo captar - via setor responsável da Secretaria Municipal de Saúde - todos os óbitos registrados por meio das Declarações de Óbito (DO), nos estabelecimentos de saúde, Serviço de Verificação de Óbito (SVO), Instituto de Medicina Legal (IML) e cartórios. Em seguida, procede-se a triagem dos óbitos de residentes no Recife e seleção dos elegíveis para investigação (excluídas as malformações congênitas). Cada um desses óbitos é direcionado para a equipe da VOI, encarregada da localização da respectiva Declaração de Nascido Vivo (DN) no banco de dados do Sistema de Informações sobre Nascidos Vivos (Sinasc). Considerando-se o endereço de residência da mãe, as cópias das DO e DN são encaminhadas semanalmente aos distritos sanitários, responsáveis pelo processo de investigação em seu território.
A validação de endereço da mãe é realizada mediante visita domiciliar, utilizando-se formulário específico, sob responsabilidade das equipes da Estratégia Saúde da Família (ESF) e do Programa de Agentes Comunitários de Saúde (PACS) nas áreas cobertas. Nas áreas sem cobertura, essa atividade é realizada pela equipe da VOI do DS. Graças a esse procedimento, cerca de 10% dos registros dos endereços de residência das mães referentes aos óbitos infantis necessitam ser retificados para outro município.17
O segundo componente (investigação epidemiológica) objetiva identificar os eventos que levaram ao óbito, e sua atividade consiste da investigação domiciliar, nos estabelecimentos de atenção à saúde da mulher e da criança (desde a sua gestação) e nos serviços de necropsia, conforme o caso. Para essa etapa, utiliza-se uma ficha confidencial própria, composta de variáveis relacionadas com a (i) identificação da criança e da mãe, (ii) características da família, (iii) dados da gestação, (iv) do pré-natal, (v) do nascimento, (vi) da puericultura, (vii) do atendimento ambulatorial e hospitalar à gestante e à criança, e (viii) a ocorrência do óbito. A ficha utilizada no Recife contempla todas as variáveis recomendadas pelo Ministério.6
Os profissionais da atenção primária e/ou da VOI do DS realizam consultas aos prontuários ambulatoriais e entrevistas domiciliares. As investigações hospitalares são conduzidas pela equipe da VOI do distrito sanitário e pelos Núcleos de Epidemiologia Hospitalar; e nos serviços de necropsia, pela equipe da VOI do nível central municipal.
A discussão dos óbitos, terceiro componente, tem por objetivo avaliar o papel do setor Saúde na ocorrência das mortes. Para tanto, elabora-se um resumo das informações obtidas pela investigação, destinado à discussão do óbito pelo Grupo Técnico-Gestor da VOI. Este grupo é composto pelo coordenador da vigilância do óbito do distrito sanitário, equipe da ESF e do PACS, profissionais dos hospitais envolvidos na atenção à gestante e à criança, gestores/técnicos dos DS e do nível central da vigilância e atenção à saúde (políticas específicas para a criança e a mulher, e atenção primária). A discussão dos óbitos com os envolvidos na assistência é uma característica marcante da VOI no Recife, diferenciando-a de outras iniciativas em que essa discussão acontece apenas no âmbito dos comitês de investigação do óbito infantil municipais, regionais ou estaduais.2,13
As discussões são realizadas nos DS ou nos hospitais onde ocorreram os óbitos, com finalidade educativa, reflexiva e propositiva, não coercitiva ou punitiva, e enfoque na busca dos determinantes e fatores de evitabilidade, para avaliação da atenção à saúde e proposição de medidas de intervenção.21 Recomendação recente do Ministério da Saúde5 estabelece que, finda essa discussão, seja preenchida a ficha-síntese do óbito infantil, documento cuja finalidade é registrar a análise ou fechamento do caso investigado e discutido pelo Grupo Técnico-Gestor.
O quarto e último componente da VOI refere-se ao encaminhamento de propostas de promoção e atenção à saúde para as áreas responsáveis e correção das estatísticas oficiais de mortalidade infantil. As atividades desse componente estão relacionadas à elaboração e envio de relatório com as proposições destinadas ao setor Saúde e suas áreas responsáveis, para as devidas providências. As correções necessárias são realizadas no SIM e no Sinasc.21 A partir de 2010, iniciou-se a digitação dos dados da ficha-síntese no módulo ‘Investigação do óbito infantil e fetal’ do SIM-Web, conforme indicação do Ministério.5
Situação e contribuições
No primeiro ano da implantação da vigilância do óbito infantil, 2003, 27,5% dos óbitos sem malformação congênita foram investigados e discutidos. Essa proporção alcançou 98,5% em 2006, com a conclusão do processo de implantação em todos os DS, mantendo-se no mesmo patamar até o último ano da série analisada, 2015 (Tabela 1).
Tabela 1 - Situação da vigilância do óbito infantil na cidade do Recife, Pernambuco, 2003-2015

a) Todos os óbitos infantis, exceto aqueles com malformação congênita como causa básica.
Com mais de dez anos de implantação da VOI, entre as várias recomendações do Grupo Técnico-Gestor para evitar novas mortes, foram pontuadas, com maior destaque, a ampliação do acesso e da cobertura, e melhoria da qualidade da atenção primária, secundária e terciária. Todas essas ações estão relacionadas ao planejamento reprodutivo, acompanhamento pré-natal, atenção ao parto e ao nascimento, e cuidados com a criança no primeiro ano de vida.
Discussão
Todos os componentes da VOI no Recife, ao buscar a integralidade da atenção e o envolvimento dos profissionais responsáveis pelo cuidado à mulher e à criança (nos diversos pontos assistenciais da linha de cuidado, particularizada a cada evento avaliado), promovem a reflexão sobre redes assistenciais de gestão interfederativa, articulando dimensões clínicas e organizacionais em sua operacionalização. Acredita-se que esse procedimento tem favorecido o reconhecimento de que nenhuma organização ou profissional, isoladamente, reúne competências suficientes para resolver problemas de saúde de complexa determinação.22
Conforme resultados de estudos realizados no Paraná (nos períodos de 2000-2001 e 2007-2008, 2005 e 2005 a 2008),2,8,10 Rio Grande do Sul (2005 a 2008),11 São Paulo (2006),13 Minas Gerais (2014),12 Alagoas (outubro de 2009 a dezembro de 2010)7 e Bahia (2008),9 o número de óbitos infantis investigados no país era reduzido. No Recife, desde 2006, a quase totalidade dos óbitos infantis - exceto aqueles por malformação congênita - vêm sendo investigados e discutidos.
A VOI, ao tentar eliminar barreiras do diálogo entre profissionais com diferentes saberes e competências, inseridos em diversos serviços de saúde, promove o conhecimento social e técnico-assistencial das situações de seus territórios e a coesão na busca dos melhores caminhos para o enfrentamento de situações complexas, vivenciadas no cotidiano dos serviços.3,4,10,11,22,23
No Recife a VOI, ao agregar - na discussão - os envolvidos na assistência ao caso, configura-se como uma experiência inovadora, capaz de subsidiar mudanças nas práticas assistenciais, na formação de trabalhadores e gestores da Saúde, no planejamento e na organização da rede de atenção materno-infantil.