Introdução
A utilização de serviços de saúde está diretamente associada às necessidades dos indivíduos, à oferta dos serviços, recursos financeiros e profissionais da saúde, e às condições socioeconômicas e culturais.1,2 É importante diferenciar ‘utilização’ de ‘acesso’ - este, por vezes empregado como sinônimo de utilização -, considerando o uso de serviço de saúde pelo indivíduo como uma prova de acesso.3 No entanto, acesso refere-se a oportunidade, enquanto utilização é a manifestação dessa oportunidade.3
No Brasil, a utilização de serviços de saúde depende de três formas de provisão: pública, privada e suplementar. A instância pública é a principal provedora, financiada pelo Estado em seus níveis federal, estadual e municipal.4,5 Além dos serviços oferecidos diretamente pelo sistema público, a rede privada conveniada também realiza atendimentos específicos pelo Sistema Único de Saúde (SUS). As demais formas - planos privados e desembolso direto - são também cofinanciadas pelo Estado, mediante repasse de recursos públicos - e outras formas de repasse - para instituições privadas.4,5
O monitoramento da utilização é essencial para avaliar e comparar as mudanças no estado de saúde, e auxiliar tomadores decisão a promoverem melhorias e reorganização nos serviços de saúde, seja na estruturação física, aquisição de equipamentos e insumos, ou na contratação de recursos humanos.3,4 Estudos sobre o tema têm especial importância, sobretudo em contextos nos quais recursos financeiros são cada vez mais escassos enquanto aumenta a demanda por atendimento.
A mensuração do uso de serviços de saúde é também uma ferramenta de diagnóstico, utilizada como medida indireta do acesso. A Organização Mundial da Saúde (OMS) recomenda aferir o nível geral de saúde, a distribuição da saúde na população, a capacidade de resposta e a destinação financeira.6 No Brasil, tais medidas são realizadas mediante inquéritos de base populacional, desenvolvidos por institutos oficiais ou investigadores individuais.7 As pesquisas institucionais iniciaram-se na década de 1990 e hoje são o principal instrumento norteador na formulação e avaliação de políticas de saúde. Por meio de respostas autorreferidas, é possível mensurar a utilização de serviços de saúde em todas as regiões do Brasil.8
Atualmente, inexistem sínteses desses estudos no país que facilitem a comparação dos achados. Nesse sentido, o emprego de revisão sistemática da literatura é estratégico, por representar o método mais adequado de sumarização dos dados e obtenção de estimativas melhor embasadas, para tomada de decisão em saúde.9
O objetivo da presente pesquisa foi estimar a prevalência da utilização de serviços de saúde no Brasil, por meio de revisão sistemática com metanálise de inquéritos populacionais.
Métodos
Desenho e registro do protocolo
Foi realizada revisão sistemática da literatura, com metanálise de inquéritos populacionais. O protocolo do estudo foi registrado no International Prospective Register of Systematic Reviews (PROSPERO) sob o número CRD42015016648. O relato da presente revisão está em consonância com a recomendação Preferred Reporting Items for Systematic Reviews and Meta-Analyses (PRISMA).10
Critérios de elegibilidade
Foram elegíveis estudos transversais de base populacional realizados no Brasil que descrevessem a prevalência de consulta médica, odontológica e de hospitalização. Não houve restrições quanto a idade, sexo, classe de profissional de saúde e data de utilização do serviço. Também não foi estabelecido limites quanto ao idioma do estudo, tipo ou ano de publicação.
Estudos realizados em grupos populacionais específicos, como pessoas institucionalizadas, indígenas e gestantes, e trabalhos restritos à Atenção Primária, foram excluídos.
Fontes de informação e estratégias de busca
Foram realizadas buscas nas fontes MEDLINE, Scopus, EMBASE, Literatura Latino-Americana e do Caribe em Ciências da Saúde (LILACS) e Scientific Electronic Library Online (SciELO). As listas de referências bibliográficas dos estudos relevantes foram examinadas para identificar estudos elegíveis e contatos com especialistas. Além disso, foram incluídos os dados provenientes de inquéritos nacionais: Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD), Pesquisa Nacional de Saúde (PNS) e Pesquisa Nacional de Saúde Bucal (SB Brasil).
Atualizaram-se as buscas até janeiro de 2017. As estratégias por cada base de dados estão reportadas em arquivo suplementar (Figura Suplementar 1).
Seleção dos estudos e extração dos dados
Para a seleção dos estudos e extração dos dados, utilizou-se o sistema Covidence.11 Após remoção dos registros duplicados, duas pesquisadoras independentes (Araújo MEA e Andrade KRC) selecionaram os artigos por título e resumo, obedecendo aos critérios de inclusão e exclusão pré-definidos. Os casos em desacordo foram resolvidos por consenso ou decisão de um terceiro pesquisador (Silva MT).
Em seguida, os textos completos foram reunidos para avaliação. Referências que relataram resultados de um mesmo inquérito foram avaliadas, de modo a incluir a publicação que apresentou o dado de forma mais detalhada e excluir as demais.
Os seguintes dados foram extraídos dos estudos: autor; ano; local; tamanho da amostra; sexo; faixa etária; uso de serviços de saúde; e período recordatórios. Nos casos de discordância, a decisão foi tomada por consenso. Quando houve acesso a microdados, selecionou-se a faixa etária de 18 anos ou mais e excluíram-se os proxy-respondentes. Entrou-se em contato com os autores correspondentes dos estudos incluídos apenas nos casos em que os dados não estavam disponíveis.
Avaliação da qualidade metodológica dos estudos incluídos
A qualidade metodológica foi analisada de maneira individual e independente, pelas duas pesquisadoras referidas. Oito critérios foram avaliados, com base em uma ferramenta previamente elaborada:12 (i) amostragem aleatória ou censitária; (ii) lista da amostragem proveniente do censo demográfico; (iii) tamanho da amostra, previamente calculado; (iv) mensuração do desfecho por instrumento validado; (v) aferição imparcial por entrevistadores treinados; (vi) taxa de resposta igual ou superior a 70%; (vii) relato do intervalo de confiança de 95% (IC95%) e análise dos subgrupos; e (viii) descrição dos sujeitos do estudo. O atendimento a cada item proporcionou uma pontuação entre 0 e 8. Na presente revisão, os inquéritos foram considerados de alta qualidade quando obtiveram pontuação ≥6.
Análise dos dados
Como desfecho primário, definiu-se a utilização dos serviços de saúde: consulta médica, consulta odontológica e hospitalização. Calculou-se a prevalência da utilização em cada serviço, com intervalo de confiança de 95% (IC95%), por região do país, atendendo aos períodos recordatórios correspondentes a cada estudo incluído. Não foi considerada a variável relacionada ao uso de qualquer serviço de saúde mensurado nas PNAD 2003 e 2008 e na PNS 2013.
Estudos individuais foram agrupados em metanálise de efeitos aleatórios, pelo método proposto por DerSimonian e Laird.13 A heterogeneidade entre os estudos foi analisada pelo modelo de efeito fixo do inverso da variância; e a magnitude da inconsistência, estimada pela estatística do I-quadrado (I²).14 Investigaram-se as causas da heterogeneidade por metarregressões, pelo teste de Knapp e Hartung, sendo avaliado o efeito das seguintes variáveis: proporção de mulheres; tempo recordatório; ano da coleta dos dados; e região do estudo. Avaliou-se, ainda, a existência do efeito de estudos pequenos (small-study effect) mediante a inspeção visual do gráfico de funil e o teste de Egger.15
Todas as análises foram executadas sobre a plataforma Stata (versão 14.0). Utilizaram-se os pacotes ‘metaprop’ e ‘metareg’.16
Resultados
Seleção dos estudos
A estratégia da pesquisa recuperou 1.979 registros, dos quais 270 estavam duplicados. Após triagem do título e resumo, selecionaram-se 54 artigos para leitura de texto completo. Destes, 21 estudos atenderam aos critérios de elegibilidade17-37 e seis inquéritos institucionais foram identificados e incluídos: PNAD 1998, 2003 e 2008; PNS 2013; e SB Brasil 2003 e 2010.38-43 Assim, resultaram 27 pesquisas para a metanálise.17-43 Os detalhes do processo de seleção estão ilustrados na Figura 1.
A maioria dos inquéritos teve seus dados coletados entre os anos 2000 e 2010, sendo que 11 deles foram publicados entre 2011 e 2014.17,28,29,31-36,42,43 Sete pesquisas foram de abrangência nacional,31,38-43 dez investigaram dados da região Nordeste,18,22,23, 27,28,35,38,39,41,43 15 da Sul,17,20,21 24-26,29,30,33,34,37-39,41,43 seis da Sudeste,19,32,38,39,41,43 cinco da Centro-Oeste36,38,39,41,43 e quatro da região Norte.38,39,41,43
A maior parte das 702.878 pessoas incluídas nas 27 pesquisas eram mulheres (58%). Três estudos não forneceram dados por sexo.18,28,42 A maioria das pesquisas investigou a saúde dos adultos, enquanto outras restringiram sua população-alvo a idosos19,20,32,34 e crianças.22
O período recordatório para avaliação da prevalência de utilização de serviços de saúde nos estudos brasileiros variou entre 15 a 360 dias. Outras características dos estudos estão apresentadas na Tabela 1.
Qualidade metodológica dos estudos
Todos os estudos empregaram amostragem probabilística e procedimento complexo de amostragem, com base em cálculo do tamanho amostral. A avaliação dos desfechos - utilização de serviços - foi aferida por entrevistadores treinados. Todas as pesquisas colheram informação autorreferida sobre a utilização de serviços de saúde. Proporções de taxa de resposta superiores a 70% foram informadas em 17 das 27 investigações. Cinco inquéritos individuais não informaram recusas ou perdas.18,27,28,35,37 Vinte estudos foram considerados de alta qualidade metodológica, com média global de escore de 6,6. Nenhum estudo foi excluído pela qualidade metodológica. A avaliação crítica da qualidade individual encontra-se na Tabela Suplementar 1.
Prevalência de utilização de serviços de saúde
A Figura 2 apresenta as prevalências de consulta médica encontradas nos 18 estudos,17-20,22-25,27,29-34,36,37,44 nas três PNAD e na PNS,38,39,41,43 estratificadas por região, abrangendo 549.999 entrevistados. Quarenta e oito por cento (IC95% = 39; 57; I2=99%) dos entrevistados relataram ter consultado um médico nos últimos 90 dias. Esses estudos foram de abrangência local, sendo que dois deles avaliaram a frequência em idosos, reportando maior prevalência de atendimento médico (59 a 70%). Considerando-se estudos que verificaram a utilização de consulta médica no período de um ano anterior à entrevista, a frequência de utilização foi de 71% (IC95% = 69; 73%; I2=99%), sendo a maior parte dessas pesquisas de âmbito nacional. Quatro estudos individuais, ambos realizados na região Sul, apresentaram prevalências compatíveis com os inquéritos nacionais para essa região. Em aproximadamente uma década (2010 a 2013), observou-se redução na prevalência de consulta médica de dois pontos percentuais na região Norte, e aumento nas demais regiões. A região Sul apresentou o maior crescimento no período.

Figura 2 - Prevalência de consulta médica por período recordatório e estratificada por região do Brasil
No único estudo que focou a faixa etária infantil de 5 a 9 anos, realizado em Sobral, estado do Ceará, foi avaliada a utilização de consulta médica nos últimos 15 dias, sendo observada prevalência de 18% (IC95% = 17; 20%).22 Os estudos restritos à população idosa mensuraram consulta médica em duas semanas (Campinas, 23% [IC95% = 21; 25%]),32 três meses (cidade do Rio de Janeiro, 59% [IC95% = 56; 63%];19 e Florianópolis, 70% [IC95% = 68; 73%])34 e seis meses (Rio Grande do Sul, 71% [IC95% = 70; 73%]).20
Com respeito à consulta odontológica, 659.043 indivíduos foram entrevistados em seis inquéritos nacionais (PNAD 1998, 2003 e 2008; PNS 2013; e SB Brasil 2003 e 2010)38-43 e quatro estudos individuais (Pelotas 2005;26 Maranhão 2006;28 Campinas 2008;32 e Bahia 201135). No total, 37% (IC95% = 32; 42%; I2=100%) da população consultou dentista no último ano. De 2003 a 2013, houve crescimento de oito pontos percentuais para consultas odontológicas nas regiões Nordeste e Sul, e diminuição de dois pontos percentuais na região Norte (Figura 3).

Figura 3 - Prevalência de consulta odontológica por período recordatório e estratificada por região do Brasil
Onze inquéritos mensuraram hospitalização, com a participação de 520.261 indivíduos.20,23,24,32,33,36-39,41,43 Observou-se que 10% (IC95% = 9 a 11%; I2=98%) dos entrevistados estiveram internados no período de um ano anterior à entrevista. Houve redução da prevalência de hospitalização em todas as regiões - maior na região Norte, com quatro pontos percentuais, e menor na Sul, com um ponto percentual -, no período de 2003 a 2013 (Figura 4).
Avaliação da heterogeneidade e efeito de estudos pequenos
Todas as metanálises apresentaram elevada heterogeneidade. Com relação à consulta médica, as variáveis ‘proporção de mulheres’ (p=0,001; R2=25%) (Figura Suplementar 2) e ‘tempo recordatório’ (p>0,001; R2=72%) Figura Suplementar 3) contribuíram para maior variabilidade entre as prevalências.
Quanto às consultas odontológicas, as regiões Centro-Oeste (p=0,012), Sudeste (p=0,031) e Sul (p=0,001) contribuíram para maior heterogeneidade, sendo 45% dessa variabilidade explicada pelas regiões. O ano de coleta de dados dos inquéritos foi relacionado a maior variação nas prevalências de internação hospitalar (p=0,001; R2=36%) Figura Suplementar 4).
A inspeção visual do gráfico de funil sobre prevalência de consulta médica no último ano revelou assimetria na distribuição dos estudos Figura Suplementar 5); porém, o efeito de estudos pequenos foi descartado pelo teste de Egger (p=0,841). Para o grupo dos estudos com os demais períodos recordatórios, não foi possível estimar a presença desse efeito devido à necessidade de pelo menos dez estudos para realizar o teste. Por sua vez, a presença desse efeito, provavelmente, influenciou o resultado de consulta odontológica (p>0,001) e hospitalização (p=0,007 Figuras Suplementares 6 e 7).
Discussão
Os resultados apontam que a cada 100 brasileiros, 71 consultaram o médico, 37 foram ao dentista e dez hospitalizaram-se no período de um ano anterior à entrevista, a partir dos resultados de 27 pesquisas cujos dados foram coletados entre 1992 e 2013. Com exceção da região Norte, no intervalo de dez anos de pesquisas (2003-2013), observou-se crescimento na utilização de consulta médica e de consulta odontológica. A prevalência de internação reduziu-se em todas as regiões do país, no mesmo período. A maior parte dos inquéritos locais foi realizada nas regiões Sul e Sudeste do Brasil.
Apesar da busca ampla e abrangente, é possível que não se tenham identificado inquéritos como aqueles que mensuraram a utilização de serviços de saúde em desfecho secundário, tanto na estratégia de busca como na etapa de rastreamento do título e resumo.
O efeito de estudos pequenos (viés de publicação) foi afastado pelo teste de Egger para consulta médica no último ano, embora confirmado para consulta odontológica e hospitalização. Assim, estudos menores, de maior imprecisão, influenciaram os resultados.45
Os estudos identificados limitaram-se à abordagem autorreferida para mensurar a utilização de serviços de saúde, ou seja, não foi utilizado instrumento válido para conferir se os atendimentos tinham sido de fato realizados. Em outros contextos, é possível mapear esse uso a partir de um identificador único (como o Social Security Number, nos Estados Unidos.46 No Brasil, a veracidade dessa informação na esfera pública poderá ser rastreada com a adoção do Cartão Nacional de Saúde.47
Outra importante limitação do presente estudo é a diferença de duas décadas entre alguns dos inquéritos incluídos. Durante esse período, ocorreram mudanças demográficas e econômicas que proporcionaram melhores condições de vida aos brasileiros, maior oferta de serviços de saúde e, por conseguinte, maior longevidade da população.48 A idade avançada aumenta a procura por serviços de saúde,49 os quais são preteridos pelos jovens.50
A maior parte dos estudos, entretanto, apresentam características que lhes conferem maior confiabilidade. Os inquéritos utilizaram informações censitárias como fontes de amostragem, calcularam o tamanho de amostra e obtiveram boa taxa de resposta. Nesta revisão, a seleção e extração foram realizadas por dois pesquisadores, de maneira independente, e um roteiro de avaliação crítica foi utilizado para julgar a qualidade dos estudos.12
Alguns parâmetros analisados na metarregressão destacaram-se como potenciais fontes de heterogeneidade: proporção de mulheres, período recordatório e ano de coleta dos dados. Maiores prevalências são observadas em períodos recordatórios mais longos,51 o que também resulta em maior probabilidade de os indivíduos esquecerem de referir a utilização de serviço de saúde. A elevada heterogeneidade limita a validade externa dos resultados.52,53
Inexiste consenso na literatura sobre validade e precisão de dados autorreferidos na utilização de serviço de saúde. O autorrelato depende de fatores cognitivos; por exemplo, doenças como demência e retardo mental influenciam a capacidade de uma pessoa recuperar dados da memória.54
Uma revisão que incluiu 42 artigos sobre a validade do autorrelato da utilização de serviços de saúde aponta estratégias para melhorar a acurácia da aferição:55 sondagens com datas comemorativas; e inclusão de dois intervalos recordatórios (um longo, outro mais recente). A partir da análise de resultados de estudos que compararam o autorrelato com registros, esta revisão apontou que o autorrelato de consulta médica tem maior imprecisão em períodos recordatórios longos, na comparação com períodos curtos (a precisão foi de 60% para recordar consulta médica em três meses, contra 20% em 12 meses).55
O viés de recordatório reduz a acurácia na resposta dos entrevistados, e é atribuído a fatores individuais como idade, educação e situação socioeconômica.56 Eventos importantes, como internação hospitalar, são mensurados com maior precisão que ocorrências rotineiras, como prescrição médica, procura por especialista, consulta ao dentista ou médico.57 Um estudo de coorte realizado na Austrália encontrou subestimação de consulta médica autorreferida no último ano, frente às informações registradas pela seguradora de saúde, indicando a presença de viés de recordação;58 os sujeitos desse estudo eram indivíduos com mais de 74 anos, o que pode ter gerado confundimento, uma vez que idosos podem apresentar maior frequência de esquecimento que indivíduos jovens.
O período recordatório tem sido objeto de análise e padronização em inquéritos internacionais. Para garantir comparabilidade entre países membros, a União Europeia definiu esse período em 360 dias.3 Paralelamente, um estudo da OMS adotou o período de 30 dias para inquéritos realizados em países de baixa renda.59 No Brasil, a maior parte dos estudos locais, realizado por pesquisadores individuais utilizou 90 dias como período recordatório, enquanto as pesquisas com cobertura nacional (PNAD, PNS e SB-Brasil) utilizaram 360 dias.
Um estudo alemão comparou resultados de inquéritos realizados entre os anos de 1991 e 2009, envolvendo todas as faixas etárias, e, ao considerar o período recordatório de 12 meses, encontrou prevalências entre 70 e 86% de consulta médica: nos últimos 90 dias, entre 67 e 66%; e em 30 dias, uma proporção superior a 29%.60 No Reino Unido, em 2012, a frequência de consulta ao médico nos últimos 15 dias foi de 45%.61
Outros estudos transversais, envolvendo grupos específicos, foram realizados em diferentes contextos. No Irã, em 2012, observou-se que 61% das mulheres utilizaram serviço de saúde nos últimos 12 meses.62 Uma análise de quatro inquéritos realizados na Espanha, entre 2001 e 2009, apontou crescimento no uso de consulta médica por idosos nos últimos 30 dias, de 40 para 53% entre as mulheres, e de 32 para 48% entre os homens.49 Dos idosos que utilizaram o serviço de seguridade social mexicano em 2003, 88% realizaram consulta médica de forma curativa, e 70% preventiva, nos últimos 360 dias.63 Em Cuba, no ano de 2010, entre os indivíduos que apresentaram problema de saúde nos últimos 30 dias, 54% se consultaram com um clínico geral.64 Inquérito de 2003, envolvendo canadenses e americanos maiores de 18 anos de idade que possuíam algum tipo de deficiência, apresentou uma frequência autorreferida de consulta médica nos últimos 12 meses superior a 80%.65
Cerca de um terço da população brasileira visitou o dentista no ano anterior à entrevista, no período de 2003 a 2013. Apesar de não haver evidência sobre qual a periodicidade adequada para consulta a esse profissional de saúde,66 a fração revelada mostra que a maior parte da população não vai ao dentista a cada seis meses, conforme é tradicionalmente recomendado. A menor utilização de consultas odontológicas pela população brasileira, possivelmente, impacta em desfechos negativos de saúde bucal. Dados de usuários de plano de saúde no estado de Michigan, EUA, mostrou que a taxa de perda de dente foi significativamente maior entre os que consultaram o dentista uma só vez no último ano, se comparados aos que realizaram pelo menos duas consultas odontológicas no mesmo período.67
Análise de dados secundários referentes a um inquérito de base populacional realizado no Canadá entre 2007 e 2009, com 5.600 indivíduos entre 6 e 79 anos de idade, observou que 75% tinham consultado dentista no ano anterior; mesmo com essa elevada utilização, 34% necessitavam de tratamento odontológico, 6% deles com urgência.68 Dados do National Health Interview Survey (NHIS) dos EUA, de 2015, apontaram prevalência de 62% de consulta ao dentista no último ano.69 Em 2012, no Reino Unido, um inquérito investigou o uso regular e ocasional de consulta ao dentista: 38% compareceram regularmente ao dentista, 44% destes por motivos sintomáticos.61
No período de 1995 a 2013, cerca de 10% dos brasileiros estiveram hospitalizados no último ano. Em países de alta renda e maior expectativa de vida, como a Alemanha, essa prevalência variou de 9 a 15% nos últimos 12 meses, segundo uma comparabilidade entre inquéritos.60 Em Cuba, dados de 2010 sugerem que entre os indivíduos que apresentaram problemas de saúde, 29% se hospitalizaram nos últimos 30 dias.64 Como se pode verificar, as prevalências de consulta médica e de hospitalização no Brasil no último ano foram equivalentes às de países como a Alemanha e o México.60,63 Já a prevalência de consultas odontológicas foi cerca da metade da observada em países de alta renda, como o Canadá e os EUA.68,69
Quando observado o período recordatório de 360 dias, no intervalo de 2003 a 2013, os inquéritos nacionais apontaram menores frequências de consulta médica e odontológica na região Norte (68% e 33%, respectivamente) e maiores na região Sul (86% e 52%, respectivamente).
Houve um acentuado crescimento na utilização de consultas médicas nas regiões Sul, Sudeste e Centro-Oeste, onde se encontram os maiores índices de desenvolvimento humano (IDH) do país.70 Com relação às consultas odontológicas, a exceção - positiva - foi o Nordeste, com um crescimento semelhante ao das regiões de melhor IDH.
Outro fator a considerar é a disponibilidade dos profissionais de saúde. Em 2013, a região Norte contava com uma densidade de 1 médico por 1.000 habitantes, enquanto na Sul eram 2,1 e na Sudeste, 2,7 desses profissionais por 1.000 hab.71 Levantamento da Word Dental Federation de 2015 apresenta densidade de 1 dentista/1.000 habitantes, esse dado coloca o Brasil em posição privilegiada se comparado a países de alta renda como Canadá e EUA,72 a despeito das desigualdades regionais brasileiras.73 Tais diferenças, provavelmente, são observadas em nível local, com menor densidade de profissionais em contextos de maior vulnerabilidade social.
As diferenças entre as prevalências de consulta médica, odontológica e de hospitalização encontradas pela PNS e PNAD podem ser justificadas por diferenças metodológicas. A PNS, embora seja parte do Sistema Integrado de Pesquisas Domiciliares, é uma amostra independente, com maior espaçamento geográfico, incluindo mais municípios. Na PNS, ademais, entrevistou-se um morador por domicílio e obteve-se maior ganho de precisão nas estimativas, evitando-se proxy-respondentes,74,75 enquanto na PNAD, o indivíduo entrevistado respondia por todos os moradores do domicílio.
Não obstante a redução observada na prevalência de internações hospitalares, o impacto econômico nos gastos com o nível terciário ainda é grande. Em 2010, esses gastos representaram 52% de todos os gastos com a Saúde.4 Por sua vez, a atenção primária foi responsável por cerca de 80 a 90% de todos os atendimentos, contando com apenas 14% dos recursos empregados na Saúde.4
Conclui-se que a consulta médica foi o atendimento mais procurado, utilizada por mais de 70% da população brasileira no último ano. Pouco mais de um terço desses brasileiros foram ao dentista no período. Com exceção das regiões Norte e Nordeste, houve aumento da utilização de consultas médicas nos cenários de melhor situação socioeconômica, ao mesmo tempo houve maior redução na prevalência de hospitalização na região Norte, apontando desigualdades geográficas no uso desses serviços de saúde no País. Há heterogeneidade metodológica importante entre os estudos avaliados, influenciados pela amplitude do período recordatório, proporção de mulheres e variação regional. Foram identificadas como preocupações prioritárias para futuras pesquisas a validação dos instrumentos de aferição de utilização de serviços de saúde, a padronização do período recordatório e a realização de mais estudos sobre o tema nas regiões Centro-Oeste e Norte do Brasil.