Introdução
A raiva é uma encefalite viral, de caráter zoonótico e com letalidade próxima de 100%,1 causada por um vírus ácido ribonucleico (família Rhabdoviridae, gênero Lyssavirus), sendo os mamíferos os únicos animais susceptíveis à doença.2 Com maior frequência, a infecção do organismo pelo vírus rábico ocorre por mordeduras ou arranhaduras na pele íntegra.3
No estado de São Paulo, o último caso de raiva humana, cuja variante viral isolada foi a canina, aconteceu em 1997. No ano seguinte, foi registrado o último caso de raiva canina ocasionado por essa variante viral e, desde então, os casos diagnosticados em humanos e animais foram ocasionados por variantes virais oriundas de morcegos.4 No município paulista de Campinas, o último caso de raiva humana foi registrado em 1981.5
Atualmente, a doença tem sido transmitida através do “ciclo aéreo”, no qual os morcegos, hematófagos ou não, mantêm a circulação do vírus entre animais domésticos de estimação, como cães e gatos, e animais domésticos de interesse econômico, como bovinos e equinos.6 Por essa razão, realiza-se vigilância passiva de morcegos como uma importante atividade de vigilância desse agravo.7
Em Campinas, no ano de 2014, houve um caso da doença em um gato,8 15 anos após o último registro em animais dessa espécie. Em 2015, foi diagnosticado um cão com raiva. Para animais dessa espécie, a última ocorrência havia sido registrada em 1982.9 Em ambos os casos, de acordo com o Instituto Pasteur, São Paulo-SP, as variantes virais identificadas foram oriundas de morcegos (variante de morcego Nyctinomops, no caso do gato;10 e variante 3, de morcegos hematófagos Desmodus rotundus, no caso do cão).9 Tais fatos alertaram a vigilância local para a possibilidade de transmissão de raiva a humanos, fato já descrito em outro município do estado, Dracena, onde no ano de 2001, uma mulher foi a óbito após ter sido agredida por sua gata infectada por variante viral proveniente de morcego.6
Um dos importantes pilares do programa de vigilância da raiva preconizado pelo Ministério da Saúde é a campanha anual de vacinação contra raiva em cães e gatos, de modo a manter, no curto prazo, parcela significativa dessas populações imunes ao vírus. Essas campanhas foram iniciadas com a criação do Programa Nacional de Profilaxia da Raiva (PNPR) em 1973. O advento do PNPR fez com que o número de casos de raiva em cães e gatos no Brasil sofresse redução significativa. Até os dias de hoje, porém, a distribuição dos casos humanos mantém-se heterogênea, com incidência maior nas regiões Norte e Nordeste do país.4,11 No entanto, municípios das regiões Sul (Capão do Leão, no Rio Grande do Sul), Sudeste (Campinas, Ribeirão Preto e Jaguariúna, em São Paulo) e Centro-Oeste (Goiânia, capital de Goiás; e Corumbá e Ladário, em Mato Grosso do Sul) registraram casos de raiva em cães e/ou em gatos, entre 2014 e 2015.12
Em Campinas, além da vacinação anual, outras atividades de vigilância da raiva são realizadas com o objetivo de evitar casos em humanos e animais domésticos. Entre essas atividades, destacam-se o recolhimento de cães e gatos em áreas de risco, envio de amostras de animais suspeitos de encefalopatias para análise laboratorial, observação clínica de cães e gatos suspeitos e/ou causadores de agravos a humanos durante dez dias, encaminhamento de vítimas de agravos para profilaxia, bloqueio de focos nas áreas onde foram encontrados animais positivos para raiva, vigilância passiva de morcegos recolhidos em situações de risco, observação e vacinação de cães e gatos contactantes de morcegos.13,14
Em 2014, a campanha de vacinação antirrábica em Campinas aconteceu em 327 postos. Essa campanha visa atingir cobertura vacinal mínima de 80% (em cães e gatos), para que haja o controle da raiva.5 Entretanto, ano após ano, nota-se uma diminuição do número de cães vacinados.
O objetivo do presente artigo foi descrever os resultados das campanhas de vacinação antirrábica em cães e gatos realizadas nos períodos de 2004 a 2009 e 2012 a 2014, e a positividade de raiva em morcegos, de 2004 a 2014, no município de Campinas, estado de São Paulo, Brasil.
Métodos
Trata-se de um estudo descritivo sobre campanhas de vacinação antirrábica em cães e gatos e a positividade de raiva em morcegos, no período de 2004 a 2014. Os dados foram obtidos a partir da análise de dados secundários coletados e tabulados pela Unidade de Vigilância de Zoonoses de Campinas. Destaca-se que, em 2010, a campanha de vacinação foi suspensa em todo o país, após a ocorrência de reações adversas associadas à administração do imunobiológico.15 Em Campinas, a campanha foi retomada em 2012.16 Dessa forma, não foram analisadas as coberturas vacinais no período de 2010 a 2011.
Campinas é uma cidade situada no Nordeste do estado de São Paulo, possuía a população de 1.173.370 habitantes em 201617 e ocupa uma área de 796,4km².18
As variáveis selecionadas para compor o estudo foram: (i) número absoluto de cães e gatos vacinados em campanhas de vacinação contra a raiva; e (ii) proporção estimada de animais vacinados, considerando-se a população canina e felina estimada.
As estimativas populacionais de cães e gatos ao longo do período estudado foram determinadas pela Coordenação Estadual do Programa de Controle da Raiva de São Paulo (CEPCR/SP) e disponibilizadas aos municípios nos anos de campanha de vacinação. A partir desses dados, foram calculados os percentuais de coberturas vacinais para cães e gatos em cada ano da série histórica, obtidos da razão entre o número de cães e de gatos vacinados em cada ano e a população estimada de cada espécie para o mesmo ano, vezes 100.19
Foi também considerado o número absoluto de morcegos recolhidos anualmente, por meio de vigilância passiva, ou seja, em situações suspeitas para raiva, encontrados em locais e/ou horários não habituais. Esses morcegos, recolhidos pela Unidade de Vigilância de Zoonoses do município, foram encaminhados ao Instituto Pasteur de São Paulo-SP para diagnóstico laboratorial de raiva. A positividade de raiva na população de morcegos correspondeu ao quociente entre o número de morcegos positivos e o número total de animais examinados, multiplicado por 100.
Os dados foram analisados utilizando-se o programa Microsoft® Office Excel® 2010.
O projeto do estudo, realizado com dados secundários da Unidade de Vigilância de Zoonoses, foi dispensado de aprovação por Comitê de Ética em Pesquisa, conforme a Resolução do Conselho Nacional de Saúde (CNS) nº 510, de 7 de abril de 2016.
Resultados
Em 2004, a população canina estimada para o município foi de 128.979 animais. Nos anos seguintes, as estimativas oscilaram entre 129.624 (2005) e 153.628 cães (2012). Em 2013 e 2014, foi estimado o mesmo quantitativo de 111.092 cães para cada ano. Já a população de gatos estimada oscilou ao longo dos anos 2004-2012, com valores superiores a 18.000 animais; em 2013 e 2014 (como aconteceu para os caninos), foi estimado o mesmo quantitativo de 10.815 felinos para cada ano (Tabela 1).
Tabela 1 - Populações estimadas de cães e de gatos e frequência de cães e gatos vacinados nas campanhas de vacinação contra raiva realizadas no município de Campinas-SP, 2004-2009 e 2012-2014

a) Estimativas disponibilizadas aos municípios pela Coordenação Estadual do Programa de Controle da Raiva de São Paulo (CEPCR/SP)
b) Dados secundários da Unidade de Vigilância de Zoonoses de Campinas, obtidos da razão entre o número de cães e de gatos vacinados em cada ano e a população estimada de cada espécie para o mesmo ano, vezes 100.
Nas Figuras 1 e 2 , são apresentados os quantitativos de cães e de gatos vacinados em Campinas e respectivas coberturas vacinais, referentes aos períodos de 2004-2009 e 2012-2014.

Figura 1 - Número absoluto de cães vacinados e coberturas vacinais antirrábicas (%) no município de Campinas-SP, 2004-2009 e 2012-2014

Figura 2 - Número absoluto de gatos vacinados e coberturas vacinais antirrábicas (%) no município de Campinas-SP, 2004-2009 e 2012-2014
Em relação aos cães, o ano em que se vacinou o maior número de animais foi 2004: 105.764 cães vacinados. Naquele ano, foi atingida a maior cobertura vacinal da série avaliada (82%). A partir de 2006, a vacinação já não atingiu 100 mil cães em cada ano, sendo o pior resultado o de 2013, quando 62.122 animais foram vacinados, e a pior cobertura vacinal a de 2012 (49,6%) (Figura 1).
O número de gatos vacinados oscilou entre 8.297 (2008) e 10.833 (2012). As coberturas vacinais de felinos, até 2012, estiveram abaixo dos 60%. A menor cobertura vacinal desses animais ocorreu em 2007 (32,4%), e a maior em 2014 (88,0%) (Figura 2).
Entre 2004 e 2014, foram recolhidos pela Unidade de Vigilância de Zoonoses 4.464 morcegos (média anual de 405 morcegos), dos quais 97 apresentaram diagnóstico positivo para raiva (média de 8,8 por ano; desvio-padrão = 4,0;13,2). A positividade para raiva foi de 2,17%, variando de 5,66% (2004) a 1,14% (2011) (Tabela 2).
Discussão
Verificou-se um queda acentuada do número de cães vacinados em Campinas, entre 2004 e 2014. Para animais dessa espécie, as coberturas vacinais só foram superiores a 80% em 2004. Em relação aos gatos do município, houve pouca oscilação do número de animais vacinados nesse período. As coberturas vacinais permaneceram baixas até 2012, porém aumentaram drasticamente em 2013 e 2014, à medida que as estimativas populacionais felinas diminuíram.
Em relação às ações de vigilância da raiva transmitida por morcegos, percebem-se avanços na última década, com aumento de recolhimentos de animais encontrados em situações de risco e enviados para análise laboratorial, sobretudo a partir de 2012. Uma vez que o vírus rábico está presente no “ciclo aéreo”,6 a vigilância sistemática de morcegos encontrados em situações suspeitas é fundamental.
Em Campinas, a positividade média para raiva verificada em morcegos se assemelha à encontrada em outro estudo, realizado em 235 municípios do Norte e Noroeste do estado de São Paulo, sobre o período de 1997 a 2002, para o qual foram avaliados 7.393 morcegos, com positividade de 1,3%.20 Outro estudo, feito em 60 municípios de São Paulo, sobre o período de 1996 a 2004, mostrou que essa positividade superou 2% em raras ocasiões: por exemplo, em 2002, na região de Presidente Prudente, após a ocorrência de um caso humano da doença.21 A positividade observada em Campinas foi influenciada pelo número de morcegos diagnosticados em 2004 (3 casos, entre 53 animais recolhidos) e em 2010 (19 casos, entre 488 animais recolhidos).5
As reduções sucessivas do número de cães vacinados ao longo do período avaliado provocam uma reflexão acerca das possíveis causas que as justifiquem. Uma das hipóteses seria o fato de não ter havido raiva em cães por décadas, no município, levando à falsa percepção, por parte da população, de que a vacina não seria mais importante para a manutenção do quadro epidemiológico vigente. Outra hipótese a ser considerada é de que a não realização de campanhas de vacinação em 2010 e 2011 teria desestimulado a população a levar seus animais às campanhas subsequentes, ou deixado a população receosa, uma vez que em algumas cidades que realizaram campanha em 2010, foram vinculadas pela imprensa notícias de efeitos adversos graves e de óbitos de cães e gatos pós-vacinação.
A partir de 2012, com a retomada das campanhas de vacinação no município, observam-se reduções ainda mais acentuadas do número de cães vacinados. Uma possível explicação dessa diminuição estaria no fato de, a partir daquele ano, as campanhas passarem a ser realizadas sem padrão temporal, ou seja, em meses diferentes a cada ano, em consonância às recomendações da CEPCR/SP, que, por sua vez, dependia dos repasses do imunobiológico pelo Ministério da Saúde. Assim, a campanha foi realizada em maio de 2012, setembro de 2013 e outubro de 2014.16,22 Em 2015, não houve campanha de vacinação contra raiva no município. Essa falta de padronização nas datas pode ter colaborado para a menor adesão da população, porque em Campinas, tradicionalmente, essas campanhas de vacinação ocorriam no mês de setembro.
Na última década, durante as campanhas de vacinação no município, muitas estratégias de trabalho foram implementadas: equipes volantes realizaram vacinação domiciliar em residências com muitos animais; aumentou-se o número de postos de vacinação; equipes de vacinadores foram qualificadas; foram destacadas equipes com médicos veterinários, para atendimento das reações adversas; e utilizou-se a internet para divulgação dos postos de vacinação. Essas estratégias procuraram qualificar a campanha e aumentar as coberturas vacinais antirrábicas.
Segundo dados de literatura, coberturas vacinais dos cães variando entre 60 e 80% poderiam prevenir a transmissão de raiva entre esses animais.23 De acordo com Coleman e Dye, uma cobertura vacinal de 70% evitaria uma epidemia de raiva em 96,5% das situações por eles analisadas.24
Entretanto, restam dúvidas sobre a real cobertura vacinal no município durante o período avaliado, haja vista essa cobertura depender das estimativas populacionais de cães e gatos,19 que oscilaram consideravelmente ao longo da última década e podem ter influenciado as análises das coberturas vacinais.
Os percentuais de cobertura vacinal são inversamente proporcionais às estimativas populacionais de cães e gatos. A partir de 2013, houve readequação dos cálculos das estimativas populacionais de animais, uma vez que alguns municípios as consideravam superestimadas.25 Diante disso, o resultado foi uma maior cobertura vacinal, ainda que se tenha vacinado um número menor de animais se comparado ao da campanha de 2012. É possível verificar essa diferença quando o ano de 2012 (antes dessa readequação) é confrontado com 2013 e 2014. Para cães, se fosse mantida a estimativa populacional de 2012, as coberturas vacinais seriam de 40,4% (2013) e 42,6% (2014), ante 55,9% e 59,0% verificados para os respectivos anos; ainda que tenha havido queda da estimativa populacional, as coberturas vacinais continuaram abaixo dos 80% recomendáveis. Para gatos, se mantida a estimativa de 2012, as coberturas seriam de 36,2% (2013) e 40,5% (2014), abaixo dos 80% recomendáveis, ante os 78,7% e 88,0% verificados para estes dois últimos anos.
Dois estudos realizados no estado de São Paulo procuraram dimensionar a população de cães e gatos. Alves et al., ao realizarem um dimensionamento da população de cães e gatos do estado, obtiveram os seguintes resultados: razão cão:habitante = 4,0; e razão gato:habitante = 16,4.26 No município de São Paulo-SP, Canatto et al. encontraram razão cão:habitante = 4,34 e razão gato:habitante = 19,33.27 Se for considerado o método de obtenção das informação dos estudos supracitados, utilizando-se como fonte de dados populacionais as estimativas da Fundação Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) para Campinas em 2016,17 os resultados mínimos obtidos para esse município seriam de 270.361 cães e 60.702 gatos, quantidades muito acima das populações de cães e gatos estimadas em 2014.
O conhecimento do número de cães e gatos vacinados pela rede privada do município também é de fundamental importância. Esse quantitativo, somado ao número de doses aplicadas durante a campanha, permitiria ao município conhecer - realmente - o total de animais vacinados. Esse mesmo conhecimento seria essencial para o planejamento dos recursos a serem obtidos pelo município, destinados à execução da campanha. O conhecimento acerca do número de postos de vacinação necessários, por área no município, permite dimensionar os recursos (equipes e insumos) de forma proporcional à necessidade da população e seus animais. Até o momento, não existem informações a respeito do montante de vacinas administradas pela rede privada.
Sugere-se que esforços sejam dirigidos a uma eficiente estimativa populacional de cães e gatos no município, gerando informações seguras de cobertura vacinal desses animais contra raiva. Também seria importante determinar a cobertura vacinal mínima a ser atingida para que o município minimizasse a chance de ocorrência de casos de raiva em cães e gatos, diante do atual cenário epidemiológico (ausência de casos pela variante canina), bem como se a campanha vacinal continua sendo uma estratégia efetiva.
Dada a situação epidemiológica da raiva no município, parece mais cabível a intensificação de outras estratégias de vigilância e controle desse agravo, tanto em seu âmbito profilático humano - considerando-se a observação de cães e gatos causadores de agravos e a indicação oportuna de condutas de profilaxia - como no aspecto ambiental, com a implementação de ações de vacinação e monitoramento de cães e gatos contactantes de morcegos, além da ampliação da vigilância passiva dos próprios morcegos.
Os casos de raiva felina e canina registrados em 201410 e 20159 indicam que a doença está presente e pode acometer humanos e animais domésticos em Campinas. O município deve estar preparado para prever situações de risco e realizar ações de vigilância adequadas, com o objetivo de minimizar os riscos da infecção em humanos e animais domésticos.