Introdução
A falta de saneamento acarreta diversos impactos negativos sobre a saúde da população. Além de prejudicar a saúde individual, eleva os gastos públicos e privados em saúde com o tratamento de doenças. Cairncross e Feachem1 propuseram uma classificação para as doenças infecto-parasitárias que têm o ambiente como potencial determinante, denominando-as ‘doenças relacionadas ao saneamento ambiental inadequado’(DRSAI). O termo deve ser entendido no contexto de falta ou insuficiência de saneamento ambiental e condições de moradia precárias. A classificação das DRSAI divide-as em: (i) doenças de transmissão feco-oral; (ii) doenças transmitidas por inseto vetor; (iii) doenças transmitidas pelo contato com a água; (iv) doenças relacionadas com a higiene; e (v) geo-helmintos e teníases. Esta categorização pode contribuir para a elaboração de programas de proteção da saúde e auxiliar na avaliação e no desenvolvimento de políticas públicas de saneamento ambiental.
As DRSAI englobam diarreias, leptospirose, doença de Chagas, teníases e hepatite A, entre outras.2 Estas doenças não deveriam conduzir a internações, sendo consideradas doenças potencialmente evitáveis por meio do desenvolvimento de ações adequadas de saneamento ambiental.3
A Organização Mundial da Saúde (OMS) menciona o saneamento básico precário como uma grave ameaça à saúde humana. Apesar dos progressos no aumento da cobertura de saneamento pelos países da região das Américas, o deficit desse serviço, até mesmo em grandes centros, ainda é um desafio para a garantia do acesso universal e consequentemente, redução da iniquidade. A baixa cobertura de serviços essenciais está associada à pobreza. A população de baixa renda é mais vulnerável a essas doenças, devido à higiene inadequada e à subnutrição, entre outros riscos.4
As Nações Unidas definiram os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS) como parte de uma nova agenda, lançada em 2015, cujo desafio é estruturar os esforços globais em prol da erradicação da pobreza e da integração efetiva das dimensões econômica, social e ambiental do desenvolvimento sustentável. Trata-se de um conjunto de 17 objetivos e 169 metas universais e transformadoras, abrangente, de longo alcance e centrado nas pessoas, cujo objetivo nº 6 visa assegurar a disponibilidade e gestão sustentável da água e saneamento para todas e todos.5
No Brasil, a diminuição nas taxas de mortalidade por DRSAI, desde a década de 1930, não foi seguida por uma redução - na mesma magnitude - da morbidade por esse grupo de enfermidades.6 Em 2013, foram notificadas no país mais de 340 mil internações por infecções gastrointestinais. Destaca-se que a maior parte dessas internações ocorreu no Norte e Nordeste, áreas com registro de menor acesso ao esgotamento sanitário. De acordo com dados do Sistema Nacional de Informações de Saneamento (SNIS), 93,2% das pessoas na região Norte e 80,5% da região Nordeste não tinham esgoto coletado em 2011.7
A Lei nº 8.080, de 19 de setembro de 1990, que regula em todo país as ações e serviços de saúde, além de consignar o meio ambiente como um dos vários fatores condicionantes para a saúde (art. 3º), prevê uma série de ações integradas, relacionadas à saúde, ao meio ambiente e ao saneamento básico.8
No município de Porto Alegre, observou-se aumento da ocorrência de dengue, no período de 2001 a 2013. A taxa de incidência, que se situava em torno de 2,5 a 3 por 100 mil hab./ano, elevou-se para 15 por 100 mil hab./ano, cerca de cinco vezes maior. A urbanização não planejada foi apontada como fator agravante das desigualdades de saúde nas cidades. No caso das DRSAI, o aumento da morbidade pode, eventualmente, resultar em aumento das internações.9
O objetivo deste estudo foi descrever a ocorrência, as características e os gastos com internações por doenças relacionadas ao saneamento ambiental inadequado (DRSAI) financiadas pelo Sistema Único de Saúde (SUS), entre residentes na região metropolitana de Porto Alegre, capital do estado do Rio Grande do Sul, no período de 2010 a 2014.
Métodos
Foi desenvolvido um estudo descritivo, com dados do Sistema de Informações Hospitalares do Sistema Único de Saúde (SIH/SUS). Foram utilizados os arquivos reduzidos das Autorizações de Internação Hospitalar (AIH) (‘RD’) correspondentes ao período de competência de janeiro de 2010 a dezembro de 2014.
A região metropolitana de Porto Alegre (RMPA) é a área mais densamente povoada do Rio Grande do Sul. Em 2010, ela concentrava mais de 4 milhões de habitantes, 37,7% da população total do estado. A densidade demográfica média da região era de 391,8 hab/km². Em 2010, a RMPA apresentava 96,9% da população residindo em área urbana, e um produto interno bruto (PIB) per capita de R$27.026, cerca de 1/3 superior à média nacional (R$20.372). A RMPA configurava-se como a quarta aglomeração urbana brasileira, com 34 municípios, e principal polo econômico do estado do Rio Grande do Sul.10
Inicialmente, foram baixados todos os 1.620 arquivos ‘RD’ correspondentes ao período estudado (27 Unidades da Federação x 12 meses x 5 anos) e extraídas as internações de residentes na RMPA em qualquer local no país, para compor o banco de dados principal.
Assim, obteve-se um arquivo principal unificado, com 1.382.108 registros abrangendo 1.376.828 internações normais e 5.280 prorrogações de internação. A partir desse banco de dados, foram identificadas as internações por DRSAI.
A causa da internação foi aquela informada como o diagnóstico principal, que a motivou. Foram selecionadas como DRSAI aquelas correspondentes ao diagnóstico principal com os seguintes códigos da Classificação Estatística Internacional de Doenças e Problemas Relacionados à Saúde - 10ª Revisão (CID-10):
doenças de transmissão feco-oral (diarreias [A09], febres entéricas [A25] e hepatite A [B15]);
doenças transmitidas por inseto vetor (dengue [A90], febre amarela [A95], leishmanioses [B55], leishmaniose tegumentar [B55.9], leishmaniose visceral [B55.0], filariose linfática [B74], malária [B50] e doença de Chagas [B57]);
doenças transmitidas por contato com a água (leptospirose [A27] e esquistossomose [B65]);
doenças relacionadas à higiene (doenças nos olhos [Z13.5], tracomas [H54.3], conjuntivites [H10], doenças da pele [B08] e micoses superficiais (B36]); e
geo-helmintos e teníases (helmintíases [B82.0] e teníases [83.9])
Para o dimensionamento físico, foram consideradas como “internações” as AIH pagas do tipo normal (AIH-1). Entretanto, para o dimensionamento financeiro, foram incluídas as AIH do tipo de longa permanência (AIH-5), pois o gasto com a internação já computada na AIH-1 prossegue.
O plano de análise abrangeu todas as internações ocorridas entre 2010 e 2014. Na análise de deslocamento, os municípios de residência e os de internação foram identificados em cada AIH, para categorizar se o local da internação foi o mesmo município de residência do paciente, outro município da RMPA ou município fora da RMPA. Apurou-se o volume médio de internações e de óbitos hospitalares anuais para a RMPA, por sexo e em 18 intervalos etários (em anos: menores de 1; 1 a 4; 5 a 9; e de 5 em 5, até a faixa de 80 anos e mais).
Foram calculadas taxas de internações e de mortalidade hospitalar por 10 mil e por 100 mil habitantes com base na média de internações nos cinco anos (2010-2014) dividida pela projeção populacional do ano situado no ponto médio (2012), a partir das estimativas oficiais da Fundação Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística. As taxas foram calculadas para cada município, padronizadas pelo método direto, considerando-se a projeção da população da RMPA para 2012 como população-padrão, dividida em 18 faixas etárias (em anos: <1; 1-4; e de 5 em 5, até a faixa de 80 e mais). A letalidade hospitalar foi expressa pela divisão entre a quantidade de óbitos hospitalares e a de internações de cada faixa etária por sexo. A média de dias de permanência foi calculada dividindo-se o número total de dias de internação pelo número de internações.
Os gastos foram calculados a partir dos valores pagos registrados diretamente em cada AIH. Correspondem àqueles com enfermaria (serviços hospitalares, profissionais e exames) e incluem os gastos em unidade de tratamento intensivo (UTI). Os valores são históricos originais em reais (R$) sem atualização monetária.
A perspectiva econômica adotada foi a do financiador público universal, o Sistema Único de Saúde brasileiro - SUS. Assim, os valores corresponderam ao gasto governamental, não representando necessariamente ‘custo’, na acepção técnica do termo. Referem-se aos valores pagos aos prestadores públicos e privados de serviços hospitalares, conforme tabela estabelecida pela direção nacional do SUS.11
O estudo foi realizado exclusivamente com dados secundários de acesso público, não sendo possível identificar os indivíduos e respeitando-se os princípios éticos constantes nas Resoluções do Conselho Nacional de Saúde (CNS) nº 466, de 12 de dezembro de 2012 e 510/2016. O projeto foi aprovado pela Comissão de Pesquisa da Faculdade de Medicina da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS): Protocolo de Pesquisa nº 30.009, de 31 de outubro de 2015.
Resultados
Foram identificadas 13.929 internações no SUS por doenças relacionadas ao saneamento ambiental inadequado, entre residentes na região metropolitana de Porto Alegre, no período de 2010 a 2014. O maior número (2.848, ou 20,4%) de internações correspondeu a crianças de 1 a 4 anos de idade (28,1 internações/10 mil hab./ano) (Tabela 1). Contudo, a maior taxa de DRSAI por 10 mil hab./ano situou-se na faixa etária menor de 1 ano (59,7/10 mil hab./ano). Do total de 13.929 internações, 7.256 (52,1%; 7,4/10 mil hab./ano) foram do sexo masculino e 6.673 (47,9%; 6,3/10 mil hab./ano) do sexo feminino. A partir dos 60 anos de idade, houve maior número de internações de indivíduos do sexo feminino, embora a taxa neste sexo somente tenha superado o masculino na faixa etária a partir dos 80 anos de idade (23,0 versus 19,4).
Faixa etária (em anos) | Masculino | Feminino | Total | |||
---|---|---|---|---|---|---|
N | Taxa | N | Taxa | N | Taxa | |
<1 | 899 | 67,5 | 673 | 51,8 | 1.572 | 59,7 |
1-4 | 1.519 | 29,5 | 1.329 | 26,6 | 2.848 | 28,1 |
5-9 | 669 | 9,3 | 616 | 8,9 | 1.285 | 9,1 |
10-14 | 320 | 3,8 | 262 | 3,2 | 582 | 3,5 |
15-19 | 181 | 2,2 | 161 | 2,0 | 342 | 2,1 |
20-24 | 254 | 3,0 | 175 | 2,0 | 429 | 2,5 |
25-29 | 291 | 3,2 | 181 | 2,0 | 472 | 2,6 |
30-34 | 292 | 3,6 | 184 | 2,2 | 476 | 2,9 |
35-39 | 289 | 4,1 | 232 | 3,1 | 521 | 3,6 |
40-44 | 337 | 5,0 | 210 | 2,8 | 547 | 3,9 |
45-49 | 394 | 5,8 | 279 | 3,6 | 673 | 4,7 |
50-54 | 344 | 5,7 | 295 | 4,3 | 639 | 4,9 |
55-59 | 351 | 7,2 | 309 | 5,3 | 660 | 6,2 |
60-64 | 293 | 8,0 | 308 | 6,7 | 601 | 7,3 |
65-69 | 229 | 9,1 | 295 | 8,8 | 524 | 8,9 |
70-74 | 208 | 11,9 | 304 | 11,7 | 512 | 11,7 |
75-79 | 185 | 16,1 | 314 | 15,9 | 499 | 16,0 |
≥80 | 201 | 19,4 | 546 | 23,0 | 747 | 21,9 |
Total | 7.256 | 7,4 | 6.673 | 6,3 | 13.929 | 6,8 |
Em relação à frequência das internações por município de residência, destacaram-se as 6.114 (43,8%; 8,6/10 mil hab./ano) internações dos residentes em Porto Alegre, 797 (5,7%; 7,6/10 mil hab./ano) de Alvorada, 698 (5,0%; 5,8/10 mil hab./ano) de Viamão, 658 (4,7%; 4,1/10 mil hab./ano) de Canoas e 547 (3,9%; 4,6/10 mil hab./ano) de Novo Hamburgo. As internações por 10 mil hab./ano variaram de 1,4 em Glorinha a 26,1, em Triunfo (Tabela 2).
Município de internação | ||||||||
---|---|---|---|---|---|---|---|---|
Município de residência | No próprio município de residência | Em outro município da RMPA a | Em município fora da RMPA a | Total | Taxa padronizada b | |||
N | % | N | % | N | % | |||
Alvorada | 330 | 41,4 | 460 | 57,7 | 7 | 0,9 | 797 | 7,6 |
Araricá | - | - | 12 | 100,0 | - | - | 12 | 4,5 |
Arroio dos Ratos | 60 | 64,5 | 33 | 35,5 | - | - | 93 | 13,3 |
Cachoeirinha | 300 | 74,3 | 102 | 25,2 | 2 | 0,5 | 404 | 6,9 |
Campo Bom | 186 | 91,2 | 16 | 7,8 | 2 | 1,0 | 204 | 7,3 |
Canoas | 537 | 81,6 | 117 | 17,8 | 4 | 0,6 | 658 | 4,1 |
Capela de Santana | - | - | 25 | 100,0 | - | - | 25 | 4,2 |
Charqueadas | - | - | 98 | 100,0 | - | - | 98 | 5,5 |
Dois Irmãos | 183 | 96,8 | 3 | 1,6 | 3 | 1,6 | 189 | 14,7 |
Eldorado do Sul | - | - | 71 | 100,0 | - | - | 71 | 3,7 |
Estância Velha | 159 | 87,4 | 21 | 11,5 | 2 | 1,1 | 182 | 8,9 |
Esteio | 326 | 90,5 | 32 | 8,9 | 2 | 0,6 | 360 | 9,0 |
Glorinha | - | - | 5 | 100,0 | - | - | 5 | 1,4 |
Gravataí | 143 | 33,7 | 274 | 64,6 | 7 | 1,7 | 424 | 3,3 |
Guaíba | 96 | 46,4 | 110 | 53,1 | 1 | 0,5 | 207 | 4,5 |
Igrejinha | 114 | 80,3 | 23 | 16,2 | 5 | 3,5 | 142 | 9,2 |
Ivoti | 78 | 78,0 | 22 | 22,0 | - | - | 100 | 10,4 |
Montenegro | 100 | 87,7 | 11 | 9,7 | 3 | 2,6 | 114 | 3,7 |
Nova Hartz | - | - | 28 | 100,0 | - | - | 28 | 3,6 |
Nova Santa Rita | - | - | 16 | 94,1 | 1 | 5,9 | 17 | 1,5 |
Novo Hamburgo | 502 | 91,8 | 41 | 7,5 | 4 | 0,7 | 547 | 4,6 |
Parobé | 440 | 95,0 | 18 | 3,9 | 5 | 1,1 | 463 | 18,0 |
Portão | 75 | 75,8 | 23 | 23,2 | 1 | 1,0 | 99 | 6,2 |
Porto Alegre | 6.054 | 99,0 | 45 | 0,7 | 15 | 0,3 | 6.114 | 8,6 |
Rolante | 108 | 93,9 | 7 | 6,1 | - | - | 115 | 11,4 |
Sto. Antônio da Patrulha | 81 | 78,6 | 8 | 7,8 | 14 | 13,6 | 103 | 5,0 |
São Jerônimo | 118 | 92,9 | 9 | 7,1 | - | - | 127 | 10,9 |
São Leopoldo | 418 | 84,6 | 70 | 14,2 | 6 | 1,2 | 494 | 4,6 |
São Sebastião do Caí | 19 | 26,8 | 51 | 71,8 | 1 | 1,4 | 71 | 6,5 |
Sapiranga | 127 | 86,4 | 18 | 12,2 | 2 | 1,4 | 147 | 4,2 |
Sapucaia do Sul | 160 | 69,9 | 68 | 29,7 | 1 | 0,4 | 229 | 3,5 |
Taquara | 188 | 82,1 | 39 | 17,0 | 2 | 0,9 | 229 | 8,1 |
Triunfo | 359 | 98,9 | 4 | 1,1 | - | - | 363 | 26,1 |
Viamão | 160 | 22,9 | 534 | 76,5 | 4 | 0,6 | 698 | 5,8 |
Total | 11.421 | 82,0 | 2.414 | 17,3 | 94 | 0,7 | 13.929 | 6,8 |
a) RMPA: Região Metropolitana de Porto Alegre.
b) Padronizada por idade.
A letalidade hospitalar foi maior entre residentes do município de Santo Antônio da Patrulha (7,8%; com mortalidade de 3,1/100 mil hab./ano), seguida por Nova Santa Rita (5,9%; 1,1/100 mil hab./ano), Taquara (5,7%; 4,5/100 mil hab./ano), Canoas (5,6%; 2,5/100 mil hab./ano) e Campo Bom (5,4%; 4,8/100 mil hab./ano).
Ao se avaliar os óbitos segundo sexo, foram encontrados 49,1% do sexo masculino e 50,8% feminino. Entre as causas de óbito, segundo a CID-10, as mais frequentes referiram os grupos de outras infecções intestinais bacterianas (41,7%) e de diarreia e gastroenterite de origem infecciosa presumível (21,6%) (Tabela 3).
Diagnóstico - CID-10 a | Masculino | Feminino | Total |
---|---|---|---|
A00 Cólera | 11 | 15 | 26 |
A01 Febres tifoide e paratifoide | 1 | 2 | 3 |
A02 Outras infecções por salmonella | 5 | 4 | 9 |
A04 Outras infecções intestinais bacterianas | 64 | 65 | 129 |
A06 Amebíase | - | 2 | 2 |
A07 Outras doenças intestinais por protozoários | 2 | - | 2 |
A08 Infecções intestinais virais, outras e as não especificadas | 18 | 25 | 43 |
A09 Diarreia e gastroenterite de origem infecciosa presumível | 27 | 40 | 67 |
A27 Leptospirose | 20 | 1 | 21 |
B35 Dermatofitose | 2 | - | 2 |
B36 Outras micoses superficiais | 1 | - | 1 |
B53 Outras formas de malária confirmadas por exames parasitológicos | 1 | - | 1 |
B57 Doença de Chagas | - | 3 | 3 |
Total | 152 | 157 | 309 |
a) CID-10: Classificação Estatística Internacional de Doenças e Problemas Relacionados à Saúde - Décima Revisão.
Na Tabela 2, também é possível verificar onde se internaram os residentes na região metropolitana. Nota-se que 82% das internações por DRSAI ocorreram no próprio município de residência, ainda que 17,3% tivessem se deslocado para outros municípios da RMPA e 0,7% para municípios fora da RMPA. Em quase sua totalidade, Porto Alegre teve 6.054, ou 99% de seus residentes internados por DRSAI no próprio município (Tabela 2). Entretanto, 22,7% das internações na capital por DRSAI foram de residentes provenientes de outros municípios da RMPA (dado não mostrado). Dos 34 municípios, em cinco (Viamão, São Sebastião do Caí, Gravataí, Alvorada e Guaíba), menos da metade das internações por DRSAI foi realizada na própria cidade de origem. Sete municípios (Araricá, Capela de Santana, Charqueadas, Eldorado do Sul, Glorinha, Nova Hartz e Nova Santa Rita) não tiveram internação alguma no próprio município de residência, porque não dispunham de hospital (Tabela 2).
A utilização de UTI atingiu 2,0%, com destaque para as internações por leptospirose, com uso de UTI em 13,2%. A faixa etária com maior utilização absoluta (61 internações) e relativa (3,9%) de UTI concentrou-se nas crianças menores de 1 ano, seguida pelos idosos de 60 a 64 anos com utilização absoluta (27) e relativa (4,5%). Do total de internações, 309 (2,2%) resultaram em óbitos, dos quais em 78 (25,2%) houve utilização de UTI (Tabela 4). As taxas mais elevadas de uso de UTI concentraram-se nos idosos a partir de 75 anos; porém, nas 3 internações de menores de 1 ano e uso de UTI, o desfecho foi o óbito.
Faixa etária (em anos) | Óbitos | Taxa | Utilização de UTI a | (%) |
---|---|---|---|---|
<1 | 3 | 1,1 | 3 | 100,0 |
1-4 | 1 | 0,1 | - | - |
5-9 | - | - | - | - |
10-14 | 1 | 0,1 | - | - |
15-19 | 2 | 0,1 | - | - |
20-24 | 3 | 0,2 | 2 | 66,7 |
25-29 | 5 | 0,3 | 2 | 40,0 |
30-34 | 7 | 0,4 | 1 | 14,3 |
35-39 | 9 | 0,6 | 4 | 44,4 |
40-44 | 6 | 0,4 | 1 | 16,7 |
45-49 | 16 | 1,1 | 5 | 31,3 |
50-54 | 14 | 1,1 | 5 | 35,7 |
55-59 | 23 | 2,2 | 6 | 26,1 |
60-64 | 20 | 2,4 | 8 | 40,0 |
65-69 | 23 | 3,9 | 7 | 30,4 |
70-74 | 33 | 7,6 | 7 | 21,2 |
75-79 | 50 | 16,0 | 10 | 20,0 |
≥80 | 93 | 27,3 | 17 | 18,3 |
Total | 309 | 1,5 | 78 | 25,2 |
a) UTI: Unidade de Terapia Intensiva.
O gasto total com as internações por DRSAI entre residentes da RMPA no período de 2010 a 2014 foi de cerca de R$6,1 milhões. Destaca-se o gasto mais elevado, por faixa etária, das internações de crianças de 1 até 4 anos, representando 27,2% (Tabela 5). Internações com desfecho em óbito apresentaram valores médios mais elevados (R$1.049,61) do que aquelas que não resultaram em óbito (R$423,99).
Faixa etária (em anos) | Masculino | Feminino | ||||
---|---|---|---|---|---|---|
Valor total | Valor médio por internação | Valor total | Valor médio por internação | Total | Valor médio por dia de internação | |
<1 | 396.348,43 | 440,88 | 293.620,57 | 436,29 | 689.969,00 | 96,14 |
1-4 | 522.996,23 | 344,30 | 448.498,35 | 337,47 | 971.494,58 | 99,77 |
5-9 | 230.188,02 | 344,08 | 208.056,67 | 337,75 | 438.244,69 | 106,94 |
10-14 | 135.085,08 | 422,14 | 106.671,11 | 407,11 | 241.756,19 | 115,45 |
15-19 | 96.639,32 | 533,92 | 75.336,88 | 467,93 | 171.976,20 | 116,36 |
20-24 | 104.015,29 | 409,51 | 59.785,33 | 341,63 | 163.800,62 | 93,28 |
25-29 | 134.641,56 | 462,69 | 74.294,53 | 410,47 | 208.936,09 | 94,20 |
30-34 | 143.684,99 | 492,07 | 73.871,68 | 401,48 | 217.556,67 | 92,34 |
35-39 | 131.708,48 | 455,74 | 99.693,62 | 429,71 | 231.402,10 | 91,03 |
40-44 | 151.419,66 | 449,32 | 89.033,63 | 423,97 | 240.453,29 | 80,58 |
45-49 | 182.500,80 | 463,20 | 131.813,29 | 472,45 | 314.314,09 | 83,44 |
50-54 | 177.859,33 | 517,03 | 119.236,35 | 404,19 | 297.095,68 | 84,62 |
55-59 | 166.939,76 | 475,61 | 157.145,92 | 508,56 | 324.085,68 | 84,49 |
60-64 | 186.164,59 | 635,37 | 173.934,62 | 564,72 | 360.099,21 | 100,03 |
65-69 | 137.094,64 | 598,67 | 140.359,26 | 475,79 | 277.453,90 | 86,84 |
70-74 | 103.032,69 | 495,35 | 158.040,82 | 519,87 | 261.073,51 | 85,79 |
75-79 | 95.784,48 | 517,75 | 167.904,54 | 534,73 | 263.689,02 | 87,93 |
≥80 | 104.316,66 | 518,98 | 321.289,52 | 588,44 | 425.606,18 | 90,11 |
Total | 3.200.420,01 | 441,07 | 2.898.586,69 | 434,38 | 6.099.006,70 | 93,67 |
Discussão
Essa pesquisa revelou que as internações por DRSAI se concentraram em crianças e idosos e tiveram como diagnóstico principal mais frequente as doenças de transmissão feco-oral. Observou-se diferença expressiva nas taxas de internações por DRSAI, entre os municípios que compõem a região metropolitana de Porto Alegre. Dos cinco municípios com as maiores taxas de letalidade hospitalar, cabe ressaltar que somente Nova Santa Rita não possuía unidade hospitalar. Ocorreram quantidades expressivas de deslocamentos - mesmo de residentes da capital Porto Alegre, concentradora do maior número de serviços de saúde e hospitais - para outros municípios da RMPA. Houve diferença entre os sexos quanto ao diagnóstico principal das internações. O uso de UTI concentrou-se nos extremos etários. As DRSAI foram causa de óbito e implicaram gastos consideráveis para o SUS.
As DRSAI continuam presentes em áreas metropolitanas do Brasil, apesar do aumento da prevalência das doenças crônicas não transmissíveis. Os números das internações e dos custos gerados representam recursos gastos com doenças potencialmente evitáveis, isto é, não deveriam onerar o SUS e a sociedade com tratamento hospitalar.
Essas doenças, que se manifestam principalmente sob a forma de diarreias, estão entre as principais causas de morbimortalidade nos países de economias em desenvolvimento. Sabe-se que a prevalência dessas enfermidades constitui indicativo de um sistema de saneamento frágil e deficiente. No período de 2001 a 2009, a diarreia e a dengue foram responsáveis por mais de 93% das internações por DRSAI no país.12 No município de Guarulhos, região metropolitana de São Paulo, entre 2005 e 2006, o risco de diarreia foi 15 vezes maior para crianças que viviam em ambientes sem condições adequadas de habitação e saneamento.13
Desse modo, a morbidade por diarreia é um indicador importante para a Saúde Pública, pela capacidade de resposta a diversas alterações nas condições de saneamento, qualidade dos alimentos, hábitos e comportamentos de um indivíduo e de toda uma comunidade.14 O modelo de utilização do solo urbano relaciona-se diretamente com esses reflexos na saúde urbana. Tem-se uma realidade marcada por transformações epidemiológicas e demográficas, e por desigualdades sociais com expressões próprias segundo diferentes áreas geográficas.
Apesar das disparidades, destacam-se taxas de internações mais elevadas nas extremidades do ciclo vital, ou seja, crianças e idosos. Esse resultado é corroborado por outros estudos, demonstrando que os extremos etários, principalmente os menores de 2 anos e os idosos, foram os grupos com maior número de internações e de permanência hospitalar.15 Esses achados reforçam a importância de políticas públicas em saúde com ênfase nesses grupos.
Estudo realizado em dois hospitais gerais secundários do município de São Paulo, em 2010, revelou que adultos idosos, do sexo masculino, brancos, em piores condições de saúde e com menor renda tiveram chances maiores de internação quando comparados às mulheres. Provavelmente, esses resultados indicam situações mais graves, conforme o reconhecido maior cuidado das mulheres com a saúde.16 O maior número de internações de pessoas do sexo feminino também pode estar relacionado ao fato de as mulheres procurarem mais frequentemente os serviços de saúde.17
Canoas, segunda cidade mais populosa do Rio Grande do Sul, depois da capital Porto Alegre, quarto município em número absoluto de internações e segundo em número absoluto de óbitos hospitalares, apresentou alta letalidade hospitalar, apesar de contar com vários serviços de saúde instalados e infraestrutura disponível. Esse dado, provavelmente, reflete a gravidade da condição de saúde dos indivíduos internados. Além do que, pode abrir espaço à proposição e desenvolvimento de novos estudos sobre a qualidade dos serviços prestados, como também sobre a cobertura e efetividade da Estratégia Saúde da Família. É razoável suspeitar que o acesso limitado à atenção primária e, consequentemente, a internação tardia sejam possíveis causas de taxas de letalidade tão elevadas.
Ampliando-se a análise desse indicador, a letalidade hospitalar por DRSAI nos residentes da RMPA, considerados os 34 municípios, pode ser avaliada como baixa: a cada 100 internações ocorreram 2,2 óbitos. Contudo, se esse tipo de doença é evitável e não deveria gerar internação, o valor encontrado é sobretudo expressivo. Ademais, os resultados apresentados levam a concordar que, entre as principais causas de internações pelo SUS relacionadas às DRSAI, as doenças de transmissão feco-oral foram responsáveis pelas maiores taxas de mortalidade hospitalar.
Apesar de ser a capital do estado e ter a maior concentração de serviços, ocorreram deslocamentos de residentes de Porto Alegre para outros municípios, inclusive de fora da região metropolitana. Esse resultado revela um município com possíveis problemas de gestão de rede e/ou uma atenção primária insuficiente. Quando 34,2% do total de internações foram de pessoas não residentes do município e 22,3% de seus residentes internaram-se fora do próprio município (lembre-se, por doenças evitáveis), é possível que problemas tenham levado a essa realidade, a qual merece ser estudada com o objetivo de corrigir os erros e qualificar a gestão dos serviços/recursos.
Os dados sobre o local de residência e o local de internação podem evidenciar limitações de acesso aos serviços de saúde, este que é um importante indicador de qualidade e capacidade de um sistema de saúde para atender às necessidades de uma população. No entanto, há significativas desigualdades no acesso aos serviços de saúde em diferentes regiões,18 e garantir o acesso universal e equitativo ainda é um desafio, haja vista o cenário nacional, marcado por transformações epidemiológicas, demográficas e geográficas, e acentuadas desigualdades sociais.
Percebe-se uma diferença considerável no gasto de internação para o SUS. Esse valor variou bastante, entre os municípios da uma mesma região metropolitana. Em 2001 e 2009, o gasto médio anual com internações por DRSAI no país foi responsável por 3,3% do gasto total do SUS com internações hospitalares, e entre 2010 e 2014, período da pesquisa, os valores absolutos pagos cresceram 141,4%.12 A avaliação dos serviços prestados nos hospitais é fator fundamental para a promoção de um maior conhecimento sobre a efetividade dos cuidados oferecidos e o alcance de maior eficiência nas despesas, evitando-se gastos desnecessários.
É mister desenvolver mecanismos de avaliação dos serviços de saúde, sua qualidade e custos, para o planejamento de investimentos dos recursos disponíveis com o intuito de evitar desperdício e atender às reais necessidades dos usuários, sem sobrecarregar o sistema de saúde hospitalar.19 A Organização Mundial da Saúde - OMS - afirmou que, para cada dólar investido em água tratada e esgotamento sanitário, economiza-se 4,3 dólares em custos de saúde no mundo. Em 2014, 2,5 bilhões de pessoas careciam de acesso a serviços de saneamento básico, e 1 bilhão praticava a defecação ao ar livre, segundo a OMS.20
A Lei do Saneamento Básico (Lei Federal nº 11.445/2007)21 estabelece para o Brasil as diretrizes nacionais do saneamento básico e define saneamento como ‘o conjunto de serviços, infraestruturas e instalações de abastecimento de água, esgotamento sanitário, limpeza urbana, manejo de resíduos sólidos e drenagem de águas pluviais urbanas’. Trata-se de um setor de ampla magnitude, que produz externalidades positivas na área da Saúde Pública, no meio ambiente e no desenvolvimento e crescimento econômico do país. Entretanto, estudo qualiquantitativo sobre os investimentos do Governo Federal no período de 2004 a 2009 revelou que esses investimentos não dialogaram com o perfil dos deficits dos serviços.22 De forma semelhante, a avaliação de 18 planos municipais de saneamento básico mostrou que, na maioria dos casos, havia fragilidade na instituição da política, e a incorporação dos princípios nos planos ocorria de forma incipiente.23
Algumas limitações deste trabalho devem ser mencionadas. A primeira decorre da utilização de dados do Sistema de Informações Hospitalares do SUS - SIH/SUS -, originalmente concebido para funções administrativas. Há possibilidade de reinternações e/ou manipulações, tendo em vista, também, a finalidade administrativa e financeira do sistema. Erros de codificação ou de diagnóstico são igualmente possíveis. Chama a atenção o registro de casos de óbito hospitalar no SIH/SUS por cólera, provavelmente resultantes de erro de codificação: inexiste registro de morte por cólera no Sistema de Informações sobre Mortalidade (SIM), no período estudado, no país. As taxas foram calculadas tendo como denominador a população total; entretanto, cerca de 25% da população da região metropolitana de Porto Alegre possuía plano de saúde com cobertura hospitalar registrado na Agência Nacional de Saúde Suplementar, em 2010.24
O estudo mostra que ainda hoje, as DRSAI significam uma importante questão de Saúde Pública para uma das principais regiões metropolitanas do país, Porto Alegre, tradicionalmente considerada com bons indicadores de desenvolvimento. Ele traz um panorama recente da situação de saúde da maior área metropolitana do Sul do país, aponta segmentos populacionais de prioridade, como crianças e idosos, e revela um custo elevado para o sistema público de saúde, seja em valor ou ocupação de leitos - inclusive de UTI.
Outras investigações locais sobre doenças relacionadas ao saneamento ambiental inadequado - DRSAI - poderiam dimensionar, mais adequadamente, a realidade e a diversidade dos municípios gaúchos, mais heterogêneos do que uma análise preliminar sugeriria, mesmo na região metropolitana de Porto Alegre. Trabalhos como este possibilitam um melhor delineamento da situação e, por conseguinte, a promoção de ações e melhor alocação de recursos para seu devido enfrentamento.