Introdução
A concepção da Atenção Primária à Saúde (APS) valoriza as práticas gerenciais e sanitárias democráticas e participativas, o trabalho em equipe e o direcionamento das ações no nível local.1 Nesse contexto, a Estratégia Saúde da Família (ESF) surge como proposta de reorganização dos serviços e de reorientação das práticas profissionais da APS no Brasil. A ESF reforça o processo de trabalho centrado no desenvolvimento de ações multidisciplinares, com foco na promoção da saúde e prevenção de agravos. A ESF também concebe que essas ações devem ser planejadas a partir das necessidades locais e do estabelecimento de vínculos com a população, para garantir a efetividade dos serviços primários de saúde. Sustenta-se, assim, uma transformação do modelo tradicional, centrado no médico e em ações curativistas, para um modelo de assistência com foco na família, de forma integral e contínua.2-4 Segundo este modelo transformador, valorizar a formação dos profissionais com habilidades para atuar na APS é essencial à qualificação da atenção à saúde.2
Resultados de pesquisas têm apontado carência de profissionais com perfil para atuar na ESF e distanciamento entre as práticas recomendadas e aquelas que vêm sendo implementadas.3 Destacam-se fragilidades relacionadas à inter-relação dos profissionais, foco exagerado em questões burocráticas e operacionais de atendimento à demanda, deficiências na completitude e qualificação da equipe e ausência de política trabalhista e de capacitação adequada.3 Estes fatores, sobretudo os referidos à capacitação profissional e ao trabalho em equipe, também influenciam o desenvolvimento das ações de vigilância do crescimento.5 Apesar da importância desses resultados, a literatura nacional registra poucos estudos na área. Assim, estabelece-se a necessidade de melhorar o conhecimento sobre a formação e qualificação dos profissionais que atuam na ESF, bem como compreender o impacto dessas condições na qualidade da assistência.6
As ações de alimentação e nutrição na APS são indispensáveis ao enfrentamento das demandas atuais de saúde da população brasileira, marcadas pelo processo de transição nutricional.7 Como ação básica de saúde, o acompanhamento do crescimento e desenvolvimento destaca-se por oportunizar ao profissional de saúde a análise integrada e preditiva da saúde da criança, com redução da desnutrição, morbidade e mortalidade, e resolutividade da promoção da saúde.5,8 Entretanto, estudos recentes têm constatado a necessidade de avanços na vigilância do crescimento, a exemplo de resultados que indicaram o preenchimento incorreto de 91,1% das curvas de peso e estatura contidas na Caderneta de Saúde da Criança (CSC) em município de São Paulo, no ano de 2013.9 Em Cuiabá, estado de Mato Grosso, no ano de 2011, pesquisadores observaram que 79,6% dos gráficos de peso estavam com preenchimento incompleto ou ausente.10 Estudos desenvolvidos em Maringá, estado do Paraná (2012-2013),11 em município do interior do estado da Paraíba (2008)12 e em Mandaguari, também no Paraná (2010),13 apontaram fragilidades na operacionalização das consultas de puericultura e no registro dos seus procedimentos na CSC. Considera-se que lacunas entre a cobertura e a qualidade dos serviços de saúde, como as expostas, têm limitado os avanços na saúde infantil.14 Assim, este estudo teve como objetivo avaliar aspectos estruturais e processuais das consultas de puericultura na ESF, quanto à vigilância do crescimento.
Métodos
Desenho do estudo
Trata-se de uma pesquisa avaliativa de análise de implantação da vigilância do crescimento, a partir das condições de estrutura das unidades de saúde e do processo de trabalho nas consultas de puericultura na ESF.
Contexto
Foram selecionados dois municípios do estado da Paraíba, considerando-se suas semelhanças em aspectos como posição geográfica (localização na região metropolitana da capital do estado da Paraíba, com acesso à rede de serviços nela disponibilizados), indicadores demográfico-sociais (índice de desenvolvimento humano [IDH] de nível médio: 0,748 no Município 1 e 0,649 no Município 2) e cobertura populacional da ESF superior a 80%. O Município 1 conta com uma população de 57.944 habitantes, dos quais 4.596 são crianças menores de cinco anos, e possui sistema de saúde composto por 19 equipes da ESF. O Município 2 tem população de 99.716 habitantes, dos quais 7.862 são crianças menores de cinco anos, e possui sistema de saúde composto por 28 equipes da ESF. Os dois municípios diferem quanto à composição das equipes de saúde: no Município 1, desde 2001, o nutricionista atua na equipe da ESF no desenvolvimento dessas ações; no Município 2, o nutricionista atua exclusivamente em Núcleos de Apoio à Saúde da Família (NASF), auxiliando médicos e enfermeiros das equipes de saúde no desenvolvimento das ações de alimentação e nutrição. Em ambos municípios, os enfermeiros são os responsáveis pelas consultas de puericultura.
Participantes
O estudo foi realizado nas unidades de Saúde da Família dos dois municípios, entre julho e dezembro de 2014. A amostra foi selecionada por conglomerados, em dois estágios. No primeiro estágio, foram sorteadas aleatoriamente, em cada município, nove equipes de Saúde da Família (representando cerca da metade das equipes do Município 1 e 1/3 das equipes do Município 2). Em cada equipe de saúde sorteada, foram incluídos todos os profissionais encarregados das consultas de puericultura (tipicamente a enfermeira, em todas as equipes) e todas as crianças menores de cinco anos (0-60 meses) por eles consultadas durante a consulta de puericultura realizada no dia da coleta de dados, em um dia típico de trabalho. Propôs-se, assim, entre outros objetivos, obter parâmetros locais para planejar uma avaliação maior, em amostra representativa dos municípios da Paraíba.
Fontes de dados
Foram obtidas informações sobre a estrutura das unidades de saúde. Utilizou-se, para esse fim, questionário padronizado com perguntas fechadas, a ser respondido com a participação de todos os membros da equipe de saúde, sob a liderança do enfermeiro.
As informações sobre as práticas no contexto da vigilância do crescimento foram obtidas por observação das consultas de puericultura realizadas pelos enfermeiros. A observação foi encarregada a uma dupla de entrevistadores, os quais, com antecedência, explicaram o objetivo da atividade e permaneceram no fundo da sala de consulta, sem manifestar qualquer tipo de opinião ou comportamento. Utilizou-se formulário específico para anotar os procedimentos adotados, com alternativas de resposta ‘sim’ e ‘não’. As práticas foram definidas com base nas recomendações do Ministério da Saúde para a organização do processo de trabalho de acompanhamento do crescimento e do desenvolvimento da criança pela APS.15 Todas as análises levaram em conta a idade da criança no momento do estudo. Considerando-se a importância do trabalho em equipe, para as medidas antropométricas tomadas por outros profissionais que não o enfermeiro (por exemplo, o nutricionista no Município 1), como parte das consultas, utilizou-se alternativa de resposta ‘sim’.
Medidas adotadas para evitar vieses
A equipe de campo do estudo constituiu-se de profissionais e estudantes da área da Saúde, com experiência prévia em trabalho de campo, o qual foi supervisionado por profissional capacitado. O controle de qualidade do estudo incluiu treinamento e padronização dos entrevistadores, construção de Manual de Instruções e realização de estudo-piloto no município de Campina Grande, no mesmo estado da Paraíba.
Variáveis de estudo
Para análise da estrutura, contemplaram-se informações sobre os recursos humanos e a disponibilidade de materiais, insumos e equipamentos. Quanto aos recursos humanos, foram incluídas informações relacionadas à completude da equipe mínima, tempo do enfermeiro com vínculo estável e sua capacitação para trabalhar em APS. Já a disponibilidade de itens incluiu a existência de equipamento para pesar e medir a criança, prontuário, CSC e material de apoio para a atenção à saúde da criança (protocolos/normas/manuais, documentos técnicos do Ministério da Saúde).
Em relação ao processo de trabalho, foram observadas as seguintes práticas:
a) mensuração do peso, estatura e perímetro cefálico;
b) registro do peso, estatura e perímetro cefálico no prontuário;
c) registro do peso, estatura e perímetro cefálico no gráfico da CSC; e
d) orientações gerais sobre
- crescimento,
- peso com base no peso/idade atual,
- estatura com base na estatura/idade atual,
- perímetro cefálico com base no perímetro cefálico/idade atual,
- importância da vigilância do crescimento,
- peso com base na trajetória do peso/idade,
- estatura com base na trajetória da estatura/idade e
- perímetro cefálico com base na trajetória do perímetro cefálico/idade.
As informações relacionadas ao perímetro cefálico referiram-se às crianças menores de dois anos. Quando o profissional dizia apenas que o peso, estatura ou perímetro cefálico estava dentro do normal e não dava nenhuma orientação nutricional, o observador codificava a resposta como ‘não’. As orientações baseadas na trajetória foram codificadas como ‘sim’ nos casos de primeira consulta da criança, e como ‘não’ quando não havia nenhum outro registro.
Métodos estatísticos
Os dados foram organizados em planilhas eletrônicas e digitados em dupla entrada. O aplicativo Validate do software Epi Info versão 3.3.2 foi utilizado para analisar a consistência dos dados. Diferenças entre os municípios para as variáveis de estrutura foram analisadas utilizando-se o teste exato de Fisher. Para as variáveis relacionadas às práticas dos enfermeiros, aplicou-se o teste de qui-quadrado ou o teste exato de Fisher. O nível de significância admitido foi de 5%. Utilizou-se o software Stata versão 12.0.
Considerações éticas
O projeto de pesquisa foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa da Universidade Estadual da Paraíba (Protocolo no 19689613.3.0000.5187) em 17 de dezembro de 2013. Todos os participantes da pesquisa assinaram o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido, condição necessária à participação no estudo.
Resultados
Foram observadas 119 consultas, 53 do Município 1 e 66 do Município 2, desenvolvidas por 18 enfermeiros (um profissional por equipe). A Tabela 1 mostra as características da estrutura das unidades de saúde estudadas. Apenas 38,9% dos enfermeiros tinha vínculo estável mínimo de dois anos e cinco relataram não ter participado de capacitações para atuar em APS. Quanto à disponibilidade de materiais, insumos e equipamentos, observou-se menor existência de instrumentos de apoio profissional à atenção à saúde da criança, relatado por nove das equipes para o caso de protocolos/normas/manuais, e por 11 em se tratando de documentos específicos do Ministério da Saúde. Os municípios não apresentaram diferenças quanto aos itens de estrutura.
Características | Total (N=18) | Município 1 (N=9) | Município 2 (N=9) | p-valor a |
---|---|---|---|---|
n | n | n | ||
Recursos humanos | ||||
Completitude da equipe mínima | 0,576 | |||
Sim | 14 | 8 | 6 | |
Enfermeiro com vínculo estável mínimo de dois anos | 0,335 | |||
Sim | 7 | 5 | 2 | |
Enfermeiro com capacitação para trabalhar em Atenção Primária à Saúde | 0,998 | |||
Sim | 13 | 7 | 6 | |
Disponibilidade de materiais, insumos e equipamentos | ||||
Equipamento para pesar a criança | 0,576 | |||
Sim | 14 | 8 | 6 | |
Equipamento para medir a criança | 1,000 | |||
Sim | 18 | 9 | 9 | |
Prontuário | 1,000 | |||
Sim | 18 | 9 | 9 | |
Caderneta de Saúde da Criança | 0,471 | |||
Sim | 16 | 7 | 9 | |
Número de protocolos/normas/manuais para a atenção à saúde da criança | 0,347 | |||
≥3 | 9 | 6 | 3 | |
Documentos técnicos do Ministério da Saúde para a atenção à saúde da criança atualizados | 0,998 | |||
Sim | 11 | 6 | 5 |
a) Teste exato de Fisher.
A Tabela 2 mostra os principais resultados do estudo relativos às práticas dos enfermeiros no contexto da vigilância do crescimento durante as consultas de puericultura. Na amostra total, as medições de peso, estatura e perímetro cefálico foram realizadas em mais de 80% das consultas. Porém, as frequências dos registros dessas medidas nos prontuários ou nas CSC foram inferiores a 70%. As orientações baseadas nos registros das medidas realizadas no dia da observação oscilaram de 11,8% (estatura/idade) a 29,4% (peso/idade). Considerando-se a trajetória, apenas 1,9% das mães foram orientadas com base no perímetro cefálico/idade, 2,5% com base na estatura/idade e 11,8% com base no peso/idade. Perceberam-se maiores frequências de práticas relacionadas ao peso, em detrimento daquelas relacionadas à estatura e ao perímetro cefálico.
Ações desenvolvidas | Total (N=119) | Município 1 (N=53) | Município 2 (N=66) | p-valor a | |||
---|---|---|---|---|---|---|---|
n | % | n | % | n | % | ||
Medição | |||||||
Peso | 101 | 84,9 | 50 | 94,3 | 51 | 77,3 | 0,010 |
Estatura | 100 | 84,0 | 46 | 86,8 | 54 | 81,8 | 0,462 |
Perímetro cefálicob | 86 | 82,7 | 45 | 88,2 | 41 | 77,4 | 0,143 |
Registro no prontuário | |||||||
Peso | 55 | 46,2 | 38 | 71,7 | 17 | 25,8 | <0,001 |
Estatura | 55 | 46,2 | 36 | 67,9 | 19 | 28,8 | <0,001 |
Perímetro cefálicob | 50 | 48,1 | 35 | 68,6 | 15 | 28,3 | <0,001 |
Registro na caderneta de saúde da criança | |||||||
Peso | 81 | 68,1 | 46 | 86,8 | 35 | 53,0 | <0,001 |
Estatura | 67 | 56,3 | 39 | 73,6 | 28 | 42,4 | 0,001 |
Perímetro cefálico | 62 | 59,6 | 40 | 78,4 | 22 | 41,5 | <0,001 |
Orientações gerais | |||||||
Sobre o crescimento | 44 | 37,0 | 27 | 50,9 | 17 | 25,8 | 0,005 |
Sobre a importância da vigilância do crescimento | 32 | 26,9 | 17 | 32,1 | 15 | 22,7 | 0,253 |
Orientações sobre o peso | |||||||
Baseadas no peso/idade atual | 35 | 29,4 | 22 | 41,5 | 13 | 19,7 | 0,009 |
Baseadas na trajetória do peso/idade | 14 | 11,8 | 7 | 13,2 | 7 | 10,6 | 0,662 |
Orientações sobre a estatura | |||||||
Baseadas na estatura/idade atual | 14 | 11,8 | 12 | 22,6 | 2 | 3,0 | 0,001 |
Baseadas na trajetória da estatura/idade | 3 | 2,5 | 2 | 3,8 | 1 | 1,5 | 0,435 |
Orientações sobre o perímetro cefálico | |||||||
Baseadas no perímetro cefálico/idade atualb | 13 | 12,5 | 8 | 15,7 | 5 | 9,4 | 0,335 |
Baseadas na trajetória do perímetro cefálico/idadeb | 2 | 1,9 | 1 | 2,0 | 1 | 1,9 | 0,978 |
a) Teste de qui-quadrado ou teste exato de Fischer (para casos com frequência menor que cinco).
b) Valores referidos às crianças menores de dois anos.
Quando comparados os municípios, percebe-se que os enfermeiros do Município 1 realizaram com maior frequência a aferição do peso, os registros das medidas (tanto no prontuário quanto na CSC) e as orientações com base no peso e estatura registrados no dia da observação. Os enfermeiros do Município 1 deixaram de registrar nos prontuários o peso de cerca de 1/4 das crianças, e a estatura e perímetro cefálico de cerca de 1/3 das crianças atendidas. Os enfermeiros do Município 2 deixaram de registrar esses parâmetros para a maioria das crianças (em cerca de 3/4 das consultas). Em ambos os municípios, os enfermeiros registraram suas aferições mais frequentemente na CSC do que nos prontuários de consulta: quase 90% de registros de peso, cerca de 74% de registros de estatura e de 79% de registros de perímetro cefálico no Município 1; e 53%, 42,4% e 41,5%, respectivamente, no Município 2. Os registros nos prontuários e nas CSC foram mais frequentes no Município 1 do que no Município 2.
Em ambos municípios, as orientações baseadas nas medidas antropométricas tomadas no dia da consulta foram muito escassas. No Município 1, menos de 50% das mães foram orientadas sobre o peso e pouco mais de 1/5 (22,6%) foram orientadas sobre a estatura da criança. No Município 2, as frequências foram ainda menores: 19,7% e 3%, respectivamente. As orientações com base nas trajetórias de peso, estatura e perímetro cefálico foram práticas raras dos enfermeiros em ambos municípios, sem diferença significativa entre eles.
Discussão
Os resultados deste estudo revelam três aspectos importantes inter-relacionados. Em relação à estrutura das unidades de saúde, a falta de capacitação dos profissionais para atuar na APS e a carência de documentos técnicos para o exercício da função chamam a atenção, especialmente quando se observa a quantidade e variedade de opções disponíveis para ambas situações. Quanto ao processo de trabalho, destaca-se o comprometimento da longitudinalidade do cuidado à criança durante as consultas de puericultura, pautadas no diagnóstico sem os devidos registros e orientações de saúde relacionadas, possivelmente explicados pela forma como se desenvolvem as práticas de colaboração interprofissional. Cabe destacar, outrossim, a importância desses achados para a compreensão do processo de trabalho do enfermeiro.16
Estudo recente, que sistematizou a produção científica sobre a vigilância do crescimento no contexto da rede básica de saúde do Brasil, entre 2006 e maio de 2015, identificou importantes deficiências no que concerne à estrutura (falta de capacitação dos profissionais e carência de materiais de apoio para o desenvolvimento das funções profissionais) e ao processo de trabalho (pouco registro das medidas antropométricas, insuficiência de orientações com base nos registros realizados e subutilização da CSC).5
Os resultados do presente estudo são muito semelhantes. A revisão citada5 também mostrou a predominância de pesquisas desenvolvidas em apenas um município, baseadas na aplicação de questionários aos profissionais ou na avaliação do preenchimento dos instrumentos de vigilância à saúde da criança. Esses aspectos redundam em limitações: profissionais de saúde tendem a autoavaliar mais positivamente suas ações;17 e diferenças no desempenho da ESF devem ser compreendidas a partir da comparação de várias realidades.18 Nesse sentido, este estudo apresenta avanços metodológicos, considerando que as informações foram obtidas da observação das consultas de puericultura em dois municípios, conduzindo a resultados relevantes nos dois aspectos avaliados.
Quanto à estrutura, os achados mostraram que todas as 18 equipes participantes dispunham dos equipamentos antropométricos necessários para medir e apenas quatro não tinham balança para pesar crianças. Nas consultas observadas, todas as crianças tinham prontuário e apresentaram a CSC. Assim, tendo-se verificado que não pesar a criança foi menos recorrente que não a medir, depreende-se que o baixo desempenho não foi decorrente de deficiências de equipamentos e sim de falhas no processo de trabalho, possivelmente circunstanciadas por deficiências em aspectos indispensáveis ao desenvolvimento profissional, como capacitação para trabalhar em APS, experiência/vínculo satisfatória e disponibilidade de documentos técnicos de apoio.
O primeiro aspecto relevante sobre o processo de trabalho relaciona-se à prática mais generalizada do ato de pesar e medir - em comparação ao registro dessas medidas - e do registro das aferições - em comparação à adoção de orientações relacionadas a elas -, distanciando-se da promoção e prevenção. Essa forma de trabalho impossibilita vivenciar o processo de crescimento, limita as possibilidades de identificar situações de risco, prejudica a adesão e valorização da CSC, inibe o compartilhamento de dados entre os profissionais e obstaculiza o diálogo entre esses profissionais e os usuários do serviço.5,19 Esses resultados são análogos aos de outros estudos que reforçaram a visão biologista da saúde e a adoção de práticas curativistas - segundo revisão integrativa8 -, o que pode prejudicar a integralidade da assistência na ESF.8,20 São achados que se somam aos de pesquisas qualitativas com abordagem na percepção de enfermeiros sobre as consultas de puericultura, conduzidas em Maringá entre 2012 e 2013,11 em município do interior da Paraíba em 2008,12 e em Mandaguari no ano de 2010. Eles confirmam a importância de investimentos na formação de recursos humanos que privilegiem a qualificação e capacitação como aspectos críticos do processo de transformação do modelo assistencial.2,5,13,18,19
As condutas profissionais dos enfermeiros observados no presente estudo também permitiram revelar diferenças entre os dois municípios, em relação aos registros de peso, estatura e perímetro cefálico, bem como às orientações prestadas com base nas anotações atuais do peso e da estatura. Cabe lembrar que as deficiências foram detectadas em ambos municípios, representando a realidade já evidenciada por estudos anteriores demonstrativos das dificuldades da rede básica de saúde do Brasil na vigilância do crescimento.5,8,19,20 Essas falhas relacionam-se a uma ampla gama de fatores, incluindo o despreparo dos profissionais, seu desconhecimento sobre as curvas de crescimento e os conceitos nelas implícitos, insuficiência de tempo e não utilização da CSC por todos os membros da equipe.5,8,19 Neste estudo, o melhor registro dos dados antropométricos no Município 1 pôde ser favorecido pela atuação de outros profissionais - a exemplo do nutricionista - na tomada das medidas; o que não aconteceu com as orientações às mães, baseadas no monitoramento (trajetórias), muito escassas em ambos municípios. É possível que a visão hospitalocêntrica e o despreparo dos profissionais contribuam negativamente na adoção de práticas, sob a perspectiva da vigilância em saúde.
Os problemas detectados neste estudo relativos ao registro da estatura e do perímetro cefálico, tanto no prontuário como na CSC, devem ser enfrentados. São parâmetros que refletem condições importantes da situação de saúde e do estado de desenvolvimento neuropsicomotor da criança.15 Conotação similar há de se destacar para o peso, uma vez que o sobrepeso é uma realidade preocupante a atingir as crianças brasileiras.21 Sob essa perspectiva, também é imprescindível que o índice de massa corporal (IMC) seja incorporado à rotina dos serviços de saúde, aspecto não contemplado no atual estudo e a ser incluído em futuras pesquisas.19
Cabe ressaltar que a ação de acompanhamento do crescimento envolve, além dos aspectos considerados neste trabalho, outros como o envolvimento das famílias e o vínculo entre profissionais e mães. É necessário que condições estruturais, corresponsabilidade e empoderamento das famílias sejam de fato garantidos, para a efetivação da vigilância do crescimento e o estímulo à continuidade do cuidado.8,19,22,23 A vigilância do crescimento constitui um método simples e de baixo custo, passível de ser promovido mediante a interação dos profissionais na APS, não se justificando sua precariedade nos serviços de saúde no Brasil.6,23 Além disso, o acompanhamento do crescimento e desenvolvimento é considerado o eixo norteador da atenção integral à saúde da criança, o que legitima sua priorização para a efetividade do sistema de saúde.24
Devido ao estudo limitar-se a uma amostra intencional das crianças que tiveram consulta de puericultura no momento da coleta, os resultados não permitem traçar um panorama do que ocorre com a vigilância do crescimento do total de crianças cadastradas nas unidades de saúde, tampouco sua generalização. Outra limitação do estudo relaciona-se à impossibilidade de explicações relacionadas aos fatores envolvidos nas condutas segundo a perspectiva dos profissionais. Não obstante, o estudo de vários casos de duas realidades diferentes e o uso da técnica da observação devem ser sinalizados como precursores de informações confiáveis, de generalização analítica.
Apesar de a vigilância do crescimento ser um dos pilares da atenção básica à saúde da criança no Brasil e importante indicador de qualidade, conclui-se que a ação é uma prática não consolidada nas consultas de puericultura da ESF dos municípios estudados, com importantes deficiências no processo de trabalho. A superação desses problemas inclui esforços conjuntos, de gestores e profissionais, no sentido de reorganizar os serviços a partir das diretrizes do Sistema Único de Saúde (SUS), sob uma visão integrada da Saúde. A importância social e de promoção da saúde das crianças faz da puericultura objeto prioritário de investigação, sensibilização e qualificação profissional permanente, para que as práticas de vigilância do crescimento estejam consoantes com os atributos da Atenção Primária à Saúde.