Introdução
As populações indígenas e nativas, em diferentes países, apresentam taxas de mortalidade por suicídio mais elevadas do que as das respectivas populações gerais.1-4 No Brasil, são escassos os trabalhos que investigam o suicídio nesses grupos, de expressiva diversidade, embora representem apenas 0,4% da população nacional.5
No período 2006-2010, a taxa de mortalidade por suicídio entre indígenas no país foi estimada em 12,6/100 mil habitantes, 2,3 vezes superior àquela entre os não indígenas. Os estados do Amazonas, Mato Grosso do Sul e Roraima foram aqueles que apresentaram explícita sobremortalidade indígena por suicídio.6 Para os dois primeiros, existem estudos que investigaram, de modo comparativo, a mortalidade por suicídio entre indígenas e não indígenas.7,8 Entretanto, não foram encontrados estudos sobre Roraima, estado brasileiro com maior proporção de pessoas autodeclaradas indígenas. Com o interesse de ampliar o conhecimento a respeito das especificidades étnico-raciais da mortalidade por essa causa específica de óbito no Brasil, o objetivo deste trabalho foi descrever características e taxas da mortalidade por suicídio entre indígenas e não indígenas no estado de Roraima.
Métodos
Estudo descritivo, compreendendo o período de 2009 a 2013.
Roraima, estado localizado na região Norte do Brasil, possuía 450.479 habitantes em 2010, dos quais 11,2% se autodeclaram indígenas, e cerca de 63% residiam em sua capital, Boa Vista.5
Os dados de mortalidade foram obtidos no Sistema de Informações sobre Mortalidade (SIM) do Ministério da Saúde.9 Foram selecionados todos os óbitos cuja causa básica foi classificada como ‘Lesões autoprovocadas voluntariamente’ (códigos X60-X84 da Classificação Estatística Internacional de Doenças e Problemas Relacionados à Saúde - CID-10),10 entre residentes em Roraima com 10 anos ou mais de idade, conforme recomendação da literatura.4,11
As variáveis investigadas foram:
raça/cor da pele (indígenas e não indígenas, nesta última incluídos brancos, pretos, pardos e amarelos);
sexo (masculino; feminino);
estado civil (solteiro; casado/união estável; viúvo; divorciado; ignorado);
idade (em anos: 10-14; 15-24; 25-39; 40-59; ≥60; e medianas);
local de ocorrência (hospital; domicílio; via pública; outros; ignorado);
método utilizado para cometer o suicídio (enforcamento; afogamento; disparo por arma de fogo; intoxicação; outros); e
município de residência.
Foram calculadas taxas de mortalidade por suicídio por 100 mil habitantes. Como denominadores, foram utilizados dados dos censos demográficos de 2000 e 2010;12 utilizou-se a progressão geométrica anual para calcular as populações dos períodos inter e pós-censitários. As taxas foram ajustadas por idade, pelo método direto de padronização, tomando-se a população-padrão da Organização Mundial da Saúde (OMS)13 como referência. A apresentação das taxas municipais segue categorização aplicada em estudo anterior:14 nulas; baixas (0,1 a 4,9/100 mil); médias (5,0 a 14,9/100 mil); altas (15,0 a 29,9/100 mil); e muito altas (superiores a 30,0/100 mil). Mapas temáticos com as taxas municipais de mortalidade entre indígenas e não indígenas foram elaborados aplicando-se o programa de geoprocessamento QGIS 2.16.
Foram utilizados exclusivamente dados secundários de livre acesso, de modo que o projeto do estudo foi dispensado de apreciação ética, em conformidade com a Resolução do Conselho Nacional de Saúde (CNS) no 510/2016.15
Resultados
Foram registrados 170 óbitos por suicídio: 29 (17,1%) em indígenas e 141 (82,9%) em não indígenas. Em ambos grupos, houve predomínio de mortes em indivíduos solteiros e naqueles do sexo masculino. Os óbitos ocorreram, em sua maioria, por enforcamento e no domicílio. Nos indígenas, não houve registro de suicídios em hospital ou via pública, tampouco por intoxicação (Tabela 1). Entre os não indígenas, a mediana das idades foi de 29 anos, enquanto nos indígenas, de 24. Em ambos grupos, a idade mínima foi de 12 anos, enquanto a idade máxima foi de 80 anos para não indígenas e de 41 anos para indígenas.
Características | Indígena (N=29) | Não indígena (N=141) | Total (N=170) | ||
---|---|---|---|---|---|
n | n | % | n | % | |
Sexo | |||||
Masculino | 19 | 107 | 75,9 | 126 | 74,1 |
Feminino | 10 | 34 | 24,1 | 44 | 25,9 |
Faixa etária (em anos) | |||||
10-14 | 2 | 4 | 2,8 | 6 | 3,5 |
15-24 | 13 | 46 | 32,6 | 59 | 34,7 |
25-39 | 11 | 49 | 34,8 | 60 | 35,3 |
40-59 | 3 | 30 | 21,3 | 33 | 19,4 |
≥60 | - | 12 | 8,5 | 12 | 7,1 |
Estado civil | |||||
Solteiro | 21 | 104 | 73,8 | 125 | 73,5 |
Casado/União estável | 3 | 24 | 17,0 | 27 | 15,9 |
Viúvo | - | 3 | 2,1 | 3 | 1,8 |
Divorciado | - | 3 | 2,1 | 3 | 1,8 |
Ignorado | 5 | 7 | 5,0 | 12 | 7,1 |
Local de ocorrência | |||||
Hospital | - | 8 | 5,7 | 8 | 4,7 |
Domicílio | 21 | 103 | 73,0 | 124 | 72,9 |
Via pública | - | 04 | 2,8 | 4 | 2,4 |
Outros | 7 | 26 | 18,4 | 33 | 19,4 |
Ignorado | 1 | - | - | 1 | 0,6 |
Método utilizado | |||||
Enforcamento | 26 | 121 | 85,8 | 147 | 86,5 |
Afogamento | - | 4 | 2,8 | 6 | 3,5 |
Disparo por arma de fogo | 1 | 5 | 3,5 | 6 | 3,5 |
Intoxicação | - | 8 | 5,7 | 8 | 5,7 |
Outros | - | 3 | 2,1 | 3 | 1,8 |
Em Roraima, as taxas ajustadas de mortalidade por suicídio foram de 15,0/100 mil indígenas e de 8,6/100 mil não indígenas. Entre indígenas, essas taxas foram de 20,3/100 mil no sexo masculino e de 9,3/100 mil no feminino; e entre não indígenas, de 12,9 e 4,2/100 mil, respectivamente.
As taxas entre indígenas foram nulas em 8/15 municípios, e altas ou muito altas em quatro: Cantá (84,2/100 mil), Amajari (29,8/100 mil), Bonfim (20,4/100 mil) e Boa Vista (17,7/100 mil). Nestes quatro municípios, ocorreram 25/29 dos casos de suicídios entre indígenas (Figura 1). Taxas nulas de mortalidade por suicídio entre não indígenas foram encontradas em 3/15 municípios. Boa Vista apresentou 67,6% dos suicídios não indígenas, correspondendo a uma taxa de 7,4/100 mil. Em Bonfim, essa taxa foi de 25/100 mil não indígenas (Figura 2).
Discussão
Evidenciaram-se algumas especificidades étnico-raciais sobre a mortalidade por suicídio em Roraima: menor idade dos indígenas; não ocorrência, nesse grupo, de óbitos em hospital ou via pública, nem por intoxicação; concentração dos casos indígenas em menos da metade dos municípios; e taxa de mortalidade por suicídio entre indígenas 1,7 vez maior do que em não indígenas.
Como limitações do estudo, destacam-se aquelas inerentes ao uso de dados secundários do SIM. A incompletude de campos impossibilitou o estudo de variáveis importantes, como escolaridade e ocupação. Outrossim, não obstante os avanços, o SIM apresenta problemas na cobertura de registros de casos, especialmente na região Norte do país.16,17 A literatura aponta que as mortes por suicídio são correntemente subnotificadas, especialmente entre indígenas.18 É possível supor que as taxas de mortalidade entre indígenas aqui apresentadas possam ser ainda mais elevadas.
Apesar dessas limitações, a comparação dos achados deste trabalho com os de pesquisas realizadas nos estados do Amazonas7 e Mato Grosso do Sul8 pode ampliar o conhecimento das especificidades étnico-raciais da mortalidade por suicídio no Brasil. Tal comparação pode fornecer uma aproximação da situação da mortalidade por essa causa específica e nesse grupo vulnerável, na medida em que 80% dos suicídios entre indígenas ocorreram nesses estados.11
Em Roraima, tal como o observado no Amazonas7 em 2006-2010, e em Mato Grosso do Sul8 no transcurso de 2009-2011, os suicídios foram registrados principalmente entre pessoas do sexo masculino e solteiros, tendo como principal meio o enforcamento, ocorrência majoritariamente no domicilio, tanto entre indígenas como não indígenas. Esse perfil, semelhante ao da população geral brasileira em 2000-2012,18 não evidencia qualquer especificidade étnico-racial da mortalidade por suicídio.
Os indígenas de Roraima morreram menos em ambiente hospitalar, e eram mais jovens, algo observado no Amazonas7 e em Mato Grosso do Sul.8 Em Roraima, não se registrou suicídios por intoxicação, diferentemente do ocorrido naqueles dois estados.
A menor ocorrência de mortes no ambiente hospitalar entre indígenas, observada nos três estados, pode estar associada à maior dificuldade de acesso, por parte dessa população, aos serviços de saúde, bem como - eventualmente - à maior letalidade dos meios por eles empregados para cometer o suicídio.8
Em Roraima, não se encontrou um caso sequer de indígena que tenha morrido por suicídio após os 45 anos. Nos estados do Amazonas7 e Mato Grosso do Sul,8 as taxas de mortalidade mais elevadas foram encontradas entre jovens de 15 a 24 anos. Estes resultados são consistentes com o fato de, entre indígenas, o suicídio de jovens e jovens adultos ser maior numericamente, na comparação com outras faixas etárias, em outros países.1
O suicídio ocorre de modo desigual, mais elevado entre os indígenas, conforme observado em Roraima. A taxa de mortalidade por suicídio entre indígenas foi maior do que na população do Brasil em 2012 (6,4/100 mil).19 O valor, entretanto, é mais baixo do que o observado entre populações indígenas do Amazonas7 e de Mato Grosso do Sul,8 como também do encontrado entre populações nativas do noroeste da Rússia (79,8/100 mil)4 e da região de Kimberley, Austrália (74/100 mil);2 todavia, é mais próximo do observado entre os Sami da Noruega (cerca de 20/100 mil).3 Diferenças na qualidade dos registros de óbitos entre países devem ser consideradas, na análise comparativa.
Outro aspecto a destacar é o de que em Roraima, embora as taxas de mortalidade por suicídio sejam mais elevadas nos homens, a razão de taxas indígena/não indígena é maior entre mulheres. Tal achado, previamente evidenciado no Amazonas7 e em Mato Grosso do Sul,8 indicativo de maior participação relativa das mulheres na mortalidade por suicídio em contextos indígenas, caracteriza uma especificidade de gênero recorrente nesses grupos étnicos, inclusive noutros países.3,4
Outra distinção sobre a ocorrência do suicídio entre indígenas e não indígenas é a distribuição desse evento por municípios. Em Roraima, tal como no Amazonas7 e em Mato Grosso do Sul,8 os suicídios em indígenas concentram-se em determinados municípios, enquanto os de não indígenas são mais dispersos. Em Roraima, os casos em indígenas ficaram concentrados na capital, Boa Vista, e três cidades vizinhas, que se caracterizaram por apresentar taxas elevadas. Esses municípios presenciaram a maioria dos casos de suicídios entre indígenas. O próprio desenho deste estudo e a escassez de literatura específica sobre o suicídio indígena em Roraima limitam a capacidade de elaborar uma hipótese explicativa para esse achado. Propõe-se a realização de estudos mais refinados, inclusive etnográficos, aptos a investigar a associação entre o suicídio e o processo de urbanização da população indígena do estado.
Foram evidenciadas especificidades na mortalidade por suicídio entre indígenas de Roraima. Essas especificidades, ao que parece extensivas a outros contextos indígenas brasileiros, estão relacionadas a características peculiares dos sujeitos que se matam, a taxas mais elevadas, e à existência de municípios que concentram parte importante dos casos. A compreensão em profundidade dessas especificidades, a serem levadas em consideração na elaboração de políticas específicas de enfrentamento da questão, demanda estudos adicionais.