Introdução
Embora a incidência do câncer do colo do útero venha caindo no mundo, há diferenças marcantes entre os países; estima-se que 85% dos casos ocorram nos países em desenvolvimento.1,2 As principais justificativas para essas diferenças são a implantação de programas de rastreamento, o acesso ao diagnóstico precoce e ao tratamento em tempo oportuno.2,3
No Brasil, apesar de ainda ser uma doença de importante magnitude - estimando-se mais de 16 mil novos casos para 2017 -,4 já foi observada redução na mortalidade por câncer do colo do útero no país, exceto em alguns municípios das regiões Norte e Nordeste.5,6 Existem diferenças marcantes nas taxas de incidência desse tipo de câncer entre as grandes regiões nacionais, variando de 23,9 por 100 mil mulheres na região Norte a 11,3 por 100 mil mulheres na Sudeste.4 A identificação de diferenças regionais na organização e oferta dos serviços de saúde, comparada às necessidades, é essencial para compreender as desigualdades de acesso a essas ações, bem como a qualidade da assistência a pacientes com câncer.
A Política Nacional para a Prevenção e Controle do Câncer enfatiza a importância do cuidado integral em saúde.7 Em suas diretrizes, destacam-se a necessidade do planejamento, monitoramento e avaliação das ações e serviços para a prevenção e o controle do câncer por meio da utilização, de forma integrada, dos dados e das informações epidemiológicas e assistenciais disponíveis.7
Entre as metas pactuadas pelo Brasil no plano de ações estratégicas para o enfrentamento das doenças crônicas não transmissíveis, estão o aumento da cobertura do exame preventivo e o tratamento de 100% das mulheres com lesões precursoras até 2022.8 Para que se obtenha sucesso nessa estratégia de detecção precoce da doença, é essencial garantir a cobertura e qualidade do exame citopatológico, como também assegurar que todas as mulheres com exames alterados tenham acesso aos procedimentos de investigação diagnóstica e de tratamento, quando indicados. É, portanto, fundamental que a produção dos procedimentos relacionados a essas ações seja monitorada e avaliada.7,9,10
O objetivo deste estudo foi avaliar a produção de procedimentos de rastreamento, investigação diagnóstica e tratamento de lesões precursoras do câncer do colo do útero no Sistema Único de Saúde (SUS).
Métodos
Trata-se de uma avaliação normativa a partir de dados secundários registrados em sistemas de informações em saúde do SUS.
O Ministério da Saúde recomenda a realização do exame citopatológico como método de rastreamento do câncer do colo do útero para mulheres de 25 a 64 anos de idade.10 A escolha da faixa etária utilizada no presente estudo seguiu essa recomendação. O ano de 2015 foi selecionado por ser o mais recente com bases de dados completas, disponíveis no momento da coleta de dados.
Foram utilizadas bases de dados - sem identificação de indivíduos - do Sistema de Informações Ambulatoriais do SUS (SIA/SUS) e do Sistema de Informação do Câncer do Colo do Útero (SISCOLO), além do tabulador de dados da Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS), todos disponíveis na página eletrônica do Departamento de Informática do SUS (Datasus).11 Dados do Sistema de Informação de Câncer (SISCAN) foram extraídos de relatórios produzidos pelo Instituto Nacional de Câncer (INCA). O acesso aos dados foi realizado em fevereiro de 2017. Os dados referentes aos procedimentos foram extraídos do SIA/SUS,11 sistema que não registra os resultados dos exames citopatológicos do colo do útero, razão porque apenas estas informações foram obtidas no SISCOLO e nos relatórios com dados do SISCAN.
Foram incluídos no estudo todos os exames de rastreamento, investigação diagnóstica e tratamento de lesões precursoras realizados em mulheres de 25 a 64 anos de idade, registrados nos sistemas de informações do SUS em 2015.
Foram obtidos os seguintes indicadores: (i) cobertura de saúde suplementar (proporção da população coberta por regiões de residência); e (ii) número de procedimentos realizados pelo SUS (exame citopatológico do colo do útero, exame anatomopatológico de material oriundo de biópsia do colo do útero, exérese da zona de transformação [EZT] e conização).
Os procedimentos utilizados estão descritos na Tabela de Procedimentos, Medicamentos, Órteses, Próteses e Materiais Especiais do SUS,12 com os seguintes códigos:
a) Exame de rastreamento - exame citopatológico cervico-vaginal/microflora (020301001-9); exame citopatológico cervico-vaginal/microflora rastreamento (020301008-6) -;
b) Exames de investigação diagnóstica - colposcopia (021104002-9) e exame anatomopatológico do colo uterino, biópsia (0203020081) -; e
c) Tratamento de lesões precursoras - exérese da zona de transformação (EZT) (0409060089) e conização (0409060038).
Foi utilizada como referência a população feminina brasileira de 25 a 64 anos de idade, por região de residência, projetada para o ano de 2015 pela Fundação Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE).11 A cobertura de saúde suplementar empregada para o cálculo da população-alvo atendida por planos de saúde foi a divulgada pela Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS) para a população feminina de 20 a 69 anos, segundo a região de residência em 2015.11 Essa faixa etária foi escolhida por ser a mais próxima disponível, da faixa etária-alvo do rastreamento.
Para a estimativa de mulheres usuárias do SUS, subtraiu-se da população total na faixa-etária-alvo o número correspondente à proporção de mulheres cobertas por planos de saúde (Tabela 1).
Região | População feminina de 25 a 64 anos (N) a | Cobertura da saúde suplementar (%) b | População feminina usuária do SUS (N) |
---|---|---|---|
Norte | 3.984.897 | 14,2 | 3.419.042 |
Nordeste | 14.448.717 | 15,1 | 12.266.961 |
Centro-Oeste | 4.133.744 | 25,9 | 3.063.104 |
Sudeste | 23.681.008 | 41,8 | 13.782.347 |
Sul | 7.981.068 | 29,3 | 5.642.615 |
Brasil | 54.229.434 | 29,7 | 38.123.292 |
a) População feminina da projeção populacional para o ano de 2015 realizada pela Fundação Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE).
b) Cobertura de saúde suplementar para mulheres de 20 a 69 anos de idade em 2015.
A Figura 1 apresenta todas as fontes de informações utilizadas, bem como os códigos empregados para as seleções realizadas.
Foram calculados indicadores de necessidades anuais considerando-se dois cenários distintos: o primeiro fictício, em que o rastreamento seria organizado, com cobertura de 100% da população-alvo usuária do SUS; e o segundo, o cenário real do país, em que o rastreamento é oportunístico e demanda ações de continuidade do cuidado. Tais cenários podem ser descritos da seguinte forma:
Cenário 1 - Engloba as necessidades de exames de rastreamento para (i) atingir cobertura de rastreamento de 100% da população-alvo que utiliza os serviços de saúde do SUS (população não coberta pela saúde suplementar) e (ii) atender às demandas de confirmação diagnóstica e tratamento de lesões precursoras geradas.
Cenário 2 - Engloba as necessidades de exames de investigação diagnóstica e tratamento de lesões precursoras a partir dos exames de rastreamento efetivamente realizados pelo SUS em um cenário de rastreamento oportunístico.
Os critérios adotados para o cálculo das necessidades de procedimentos consideraram as (i) condutas preconizadas pelo Ministério da Saúde - definidas nas diretrizes nacionais para o rastreamento do câncer do colo do útero no Brasil -, indicadas para investigação diagnóstica a partir das alterações no rastreamento,10 os (ii) resultados de exames de rastreamento e investigação diagnóstica registrados nos sistemas de informações do SUS, (iii) dados da literatura nacional, e (iv) dados da literatura internacional, quando não foram encontrados nos sistemas de informações ou na literatura nacional.
Cálculo dos indicadores no cenário 1
A necessidade de exames citopatológicos do colo do útero foi calculada somando-se:
a) 1/3 da população feminina de 25 a 64 anos usuária do SUS, dada a periodicidade trienal do exame de rastreamento recomendada pelo Ministério da Saúde;10
b) número esperado de exames de repetição, considerando-se a proporção de resultados cuja recomendação seria a repetição imediata (exames insatisfatórios e rejeitados) ou após seis meses (células atípicas escamosas de significado indeterminado, possivelmente não neoplásicas, e lesão de baixo grau);
c) o número esperado de exames de seguimento, para os casos em que o resultado do exame foi anormal (células atípicas escamosas de significado indeterminado, em que não se pode afastar lesão de alto grau ou atipias em células glandulares) mas a colposcopia foi normal; como não há sistema de informações que registre o resultado da colposcopia, foram utilizadas as proporções de colposcopias normais para cada diagnóstico citológico encontradas em estudo realizado em uma unidade de referência para investigação diagnóstica de um município brasileiro durante o período de um ano (21,3% para células escamosas de significado indeterminado, em que não se pode afastar lesão de alto grau e 58,3% para atipias em células glandulares);13 e
d) o número esperado de conizações e EZT, considerando-se a indicação de seguimento citológico das mulheres submetidas a esses procedimentos.
A necessidade de colposcopias foi calculada somando-se:
a) o número de exames citopatológicos alterados em que a conduta recomendada é a realização de colposcopia imediata (células atípicas de significado indeterminado, escamosas, em que não se pode afastar lesão de alto grau; células atípicas de significado indeterminado glandulares; lesão de alto grau; carcinoma epidermoide invasor; e adenocarcinoma); e
b) o número de colposcopias para avaliação de mulheres que mantiveram a alteração citológica na repetição do exame após o primeiro diagnóstico citológico de células atípicas de significado indeterminado, escamosas, em que não se pode afastar lesão de alto grau ou lesão intraepitelial de baixo grau. Esta informação não está disponível nos sistemas de informações e não foram encontrados estudos nacionais que fornecessem esse parâmetro, razão porque se utilizou o valor encontrado em estudo realizado em 2013 na Noruega, onde 27,9% das mulheres com esses diagnósticos tiveram um resultado alterado ao repetir a citologia.14
Para o cálculo da necessidade de biópsias, considerou-se o número de colposcopias alteradas, as quais demandam prosseguimento na investigação diagnóstica. Como não há registro do resultado das colposcopias nos sistemas de informações, aplicou-se a proporção de colposcopias alteradas segundo diagnósticos originais, encontradas pelo estudo supracitado, realizado em uma unidade de referência para investigação diagnóstica durante um ano (43% para lesões de baixo grau e células escamosas atípicas de significado indeterminado, possivelmente não neoplásicas; 59% para lesões de alto grau e células escamosas atípicas de significado indeterminado, em que não se pode afastar lesões de alto grau; e 16,7% para alterações em células glandulares ou adenocarcinoma).13
A necessidade de tratamentos de lesões precursoras (EZT e conização) foi calculada considerando-se a indicação de realização de EZT ou conizações para biópsias com resultado de neoplasia intraepitelial cervical moderada ou acentuada ou de carcinoma in situ. Aplicou-se, portanto, a proporção desses resultados ao número estimado de biópsias.
Cálculo dos indicadores no cenário 2
No cenário 2, foram estimadas as necessidades de procedimentos para investigação diagnóstica e tratamento de lesões precursoras nas mulheres que de fato foram rastreadas pelo SUS. Sendo assim, a necessidade de exames citopatológicos não foi calculada.
Os critérios utilizados foram os mesmos do cenário 1. Contudo, a base do cálculo não se constituiu das mulheres na faixa etária-alvo do rastreamento e sim do número de exames citopatológicos registrados no SIA/SUS em 2015.
Para estimar os percentuais de deficit ou excesso de procedimentos para rastreamento, investigação diagnóstica e tratamento de lesões precursoras do câncer do colo do útero, foi calculada a diferença entre o número de procedimentos realizados e os necessários, dividida pelo número de procedimentos necessários e multiplicada por 100. Os resultados foram apresentados em frequências absolutas e relativas.
O projeto do estudo recebeu dispensa de análise ético-científica pelo Comitê de Ética em Pesquisa do Instituto Nacional de Câncer José Alencar Gomes da Silva (CEP/INCA) em 11 de maio de 2017, por utilizar exclusivamente dados secundários, sem identificação dos indivíduos, em conformidade com as diretrizes da Resolução do Conselho Nacional de Saúde (CNS) nº 466, de 12 de dezembro de 2012.
Resultados
Em 2015, estimou-se que mais de 54 milhões de mulheres se encontrariam na faixa etária-alvo para rastreamento do câncer do colo do útero (25 a 64 anos) e mais de 38 milhões delas deveriam realizar o exame pelo SUS (Tabela 1).
Considerando-se o cenário 1, a produção de exames de rastreamento (-46,9%) e biópsias (-44,9%) foi inferior à estimada como necessária para atender às demandas dessa população em todas as grandes regiões do país. As produções de colposcopias, exéreses da zona de transformação e conizações foram superiores ao necessário, exceto no Norte e no Centro-Oeste (Tabela 2).
Região | Exames citopatológicos | Colposcopias | Biópsias | EZT a e conizações | ||||
---|---|---|---|---|---|---|---|---|
Necessários | Realizados (diferença em %) | Necessários | Realizados (diferença em %) | Necessários | Realizados (diferença em %) | Necessários | Realizados (diferença em %) | |
Norte | 1.193.741 | 403.059 (-66,2) | 18.398 | 9.436 (-48,7) | 8.654 | 1.631 (-81,2) | 2.602 | 1.835 (-29,5) |
Nordeste | 4.240.969 | 1.717.084 (-59,5) | 40.758 | 96.807 (137,5) | 19.078 | 7.415 (-61,1) | 3.372 | 4.009 (18,9) |
Centro-Oeste | 1.059.187 | 462.209 (-56,4) | 15.692 | 8.814 (-43,8) | 7.520 | 2.777(-63,1) | 2.049 | 997 (-51,3) |
Sudeste | 4.736.365 | 3.096.968 (-34,6) | 61.679 | 112.641 (82,6) | 27.986 | 22.893 (-18,2) | 4.319 | 8.011 (85,5) |
Sul | 1.928.176 | 1.295.567 (-32,8) | 20.439 | 24.864 (21,7) | 9.572 | 5.317 (-44,5) | 2.672 | 4.262 (59,5) |
Brasil | 13.125.078 | 6.974.887 (-46,9) | 156.568 | 252.562 (61,3) | 72.670 | 40.033 (-44,9) | 13.912 | 19.114 (37,4) |
a) EZT: exérese da zona de transformação.
Ao considerar um cenário mais próximo da realidade, em que o rastreamento é oportunístico e não há cobertura de toda a população-alvo, foi observado excesso de colposcopias em todas as regiões do Brasil, com uma produção cerca de três vezes superior ao necessário. Já a biópsia foi insuficiente (-48,5%), chegando a um deficit de 70% na região Norte. Em relação aos procedimentos de tratamento das lesões precursoras, somente a região Centro-Oeste apresentou deficit (-40,2%) (Tabela 3).
Região | Exames citopatológicos | Colposcopias | Biópsias | EZT a e conizações | ||||
---|---|---|---|---|---|---|---|---|
Realizados | Necessárias | Realizadas (diferença em %) | Necessárias | Realizadas (diferença em %) | Necessárias | Realizadas (diferença em %) | ||
Norte | 403.059 | 6.507 | 9.436 (45,0) | 5.429 | 1.631 (-70,0) | 1.633 | 1.835 (12,4) | |
Nordeste | 1.717.084 | 17.115 | 96.807 (465,6) | 15.179 | 7.415 (-51,1) | 2.683 | 4.009 (49,4) | |
Centro-Oeste | 462.209 | 7.104 | 8.814 (24,1) | 6.121 | 2.777 (-54,6) | 1.668 | 997 (-40,2) | |
Sudeste | 3.096.968 | 41.579 | 112.641 (170,9) | 39.480 | 22.893 (-42,0) | 6.092 | 8.011 (31,5) | |
Sul | 1.295.567 | 14.079 | 24.864 (76,6) | 12.557 | 5.317 (-57,7) | 3.505 | 4.262 (21,6) | |
Brasil | 6.974.887 | 85.935 | 252.562 (193,9) | 77.786 | 40.033 (-48,5) | 14.892 | 19.114 (28,4) |
a) EZT: exérese da zona de transformação.
Discussão
A produção de exames citopatológicos foi cerca da metade da estimada como necessária para rastrear 100% da população-alvo no SUS em 2015. O número de biópsias foi inferior ao necessário, enquanto os de colposcopias e tratamentos de lesões precursoras foram superiores, tanto em um cenário de rastreamento organizado como para atender às demandas de continuidade do cuidado das mulheres que, de fato, foram rastreadas.
A principal limitação do estudo consiste no fato de terem sido utilizados dados secundários, oriundos de sistemas de informações que contabilizam procedimentos para fins de faturamento. A falta de algumas informações nos sistemas levou à utilização de dados da literatura para o cálculo das estimativas utilizadas, o que constituiu uma outra limitação para este trabalho.
A utilização da cobertura de planos privados de saúde em faixa etária mais ampla que a do rastreamento, para o cálculo da população usuária do SUS, consiste em mais uma limitação embora, possivelmente, não tenha alterado os resultados esperados por ser uma faixa etária muito próxima da estudada. Dados da Pesquisa Nacional de Saúde (PNS), inquérito realizado em 2013, estimaram que a cobertura de saúde suplementar foi bem próxima entre essas faixas etárias: 30,9% (IC95% 30,1%;31,9%) em mulheres de 20 a 69 anos de idade; e 31,9% (IC95% 30,9%;32,8%) nas de 25 a 64 anos.11
O deficit na produção de exames citopatológicos no Brasil já foi apontado em outros estudos locais e nacionais.15-17 De acordo com a PNS de 2013, a cobertura autorrelatada do exame Papanicolaou em mulheres de 25-69 anos foi de 78,8%.18 No entanto, a chance de mulheres cobertas por planos privados de saúde terem realizado exame Papanicolaou foi três vezes maior se comparada à daquelas que dependiam exclusivamente do SUS.18
Segundo levantamento do Instituto Nacional de Câncer, em 2013, apenas 11% dos exames foram realizados na periodicidade recomendada,19 É possível que o deficit encontrado no presente estudo esteja subestimado, uma vez que entre os exames realizados, muitos podem ser repetição de testes nas mesmas mulheres.
A colposcopia foi o procedimento de maior excesso de produção nos dois cenários avaliados, o que pode ser reflexo de condutas em desacordo com recomendações do Ministério da Saúde. Estudos que avaliaram o seguimento de mulheres com alterações no rastreamento identificaram excesso de encaminhamento, para outros níveis de atenção, de mulheres com diagnósticos citológicos cuja recomendação é apenas a de repetir o exame após seis meses.20,21
Neste estudo, a biópsia foi o procedimento com maior deficit, em todas as regiões do país. Em estudo transversal realizado em Mato Grosso do Sul, o acesso aos exames de maior complexidade foi relatado como uma dificuldade importante no SUS.20 A necessidade de biópsias pode estar superestimada neste estudo, levando-se em consideração que em alguns casos, quando a alteração colposcópica é compatível com o resultado citológico de lesão de alto grau, pode-se realizar o tratamento excisional pelo método ‘ver e tratar’, dispensando a realização da biópsia.22,23 Contudo, mesmo em se considerando que todos os casos de lesão de alto grau foram tratados por esse método, a produção de biópsias ainda seria inferior à necessidade.
A produção de procedimentos para o tratamento de lesões precursoras (EZT e conização) foi superior às necessidades estimadas para o Brasil. Possíveis explicações para esse achado são: (i) realização do tratamento pelo método ‘ver e tratar’ (que não foi considerada neste estudo); (ii) realização desses procedimentos em desacordo com as recomendações ministeriais; (iii) falhas no registro desses procedimentos; e (iv) utilização dos serviços por mulheres clientes de modalidades de planos privados de saúde que oferecem apenas cobertura para procedimentos ambulatoriais, que buscam pelos serviços do SUS para realizar procedimentos mais complexos.24,25 Outro aspecto a ser considerado é o fato de a conização poder ser indicada no tratamento de câncer invasivo em estágio inicial, em mulheres sem prole definida, com o objetivo de preservar sua fertilidade.26 Entretanto essa hipótese, provavelmente, não explica a diferença encontrada, haja vista essa situação não ser frequente.
O rastreamento organizado do câncer do colo do útero é, reconhecidamente, capaz de reduzir a incidência e a mortalidade pela doença.27 O caráter oportunístico do rastreamento no Brasil, somado a problemas na qualidade dos registros nos sistemas de informações e à baixa adesão aos protocolos nacionais, dificultam o monitoramento, avaliação e organização das ações de detecção precoce da doença.15,28
Os maiores deficits de procedimentos foram encontrados nas regiões Norte, Centro-Oeste e Nordeste, onde são observadas as maiores taxas de incidência e mortalidade por câncer do colo do útero,4 sugerindo que as dificuldades na organização da rede assistencial têm importantes implicações no controle efetivo da doença.
Em conclusão, há deficit de exames de rastreamento e biópsias, o que pode representar um importante entrave na linha de cuidado do câncer do colo do útero. Esse deficit merece ser avaliado e corrigido, devendo ser dada prioridade ao conhecimento sobre os motivos do excesso de alguns procedimentos - destacando-se a colposcopia -, para que melhores resultados do rastreamento desse tipo de câncer sejam possíveis.