Introdução
A odontologia foi regulamentada como profissão no Brasil em 1884,1 testemunhando a emergência de um novo sistema de ocupação. Em 1966, foi introduzida a regulamentação do exercício legal da odontologia, propiciando um rápido crescimento da profissão, caracterizado pela abertura de inúmeros cursos de graduação e pós-graduação, bem como sua evolução científica e tecnológica.2
Durante o Século XX, a odontologia constituiu-se em uma prática essencialmente privada, direcionada às demandas estéticas e de reposição dentária das camadas mais ricas da população.2 A atuação no serviço público era incipiente, mediante prestação de serviços vinculados a programas assistenciais, restritos a determinados grupos populacionais ou ainda, por meio de convênios entre o Estado e o setor privado, destinando-se aos contribuintes do Instituto Nacional de Assistência Médica da Previdência Social (INAMPS).3
A partir de 1988, com a instituição do Sistema Único de Saúde (SUS) pela Constituição Federal, o acesso universal da população aos serviços de saúde, incluindo os serviços odontológicos, passou a ser um direito de cidadania garantido pelo Estado.4 Os investimentos na ampliação da oferta dos serviços odontológicos intensificaram-se com o lançamento da Política Nacional de Saúde Bucal em 2004, impulsionando o número de cirurgiões-dentistas atuantes no setor público.5
Estudos publicados buscaram avaliar a força de trabalho dos cirurgiões-dentistas no Brasil. Pinto,6 ao utilizar os dados do Conselho Federal de Odontologia (CFO), encontrou que o número de cirurgiões-dentistas aumentou no período de 1960 a 1980, em ritmo superior ao da população geral. Ele estimou que, em mantendo-se o crescimento observado, haveria no país um cirurgião-dentista para cada 954 habitantes no ano de 2010. Morita et al.7 descreveram, para o ano de 2008, o número e o perfil socioeconômico e demográfico de cirurgiões-dentistas por capitais e regiões do país. Paranhos et al., em uma série de publicações de análises a partir dos dados do CFO, descreveram o número de habitantes por cirurgião-dentista nos estados do Brasil entre os anos de 2003 e 2007.8-12 Arouca et al.13 conduziram um censo demográfico da força de trabalho nas especialidades odontológicas no país, com base em dados do CFO até março de 2012, em que analisaram as características dos profissionais e sua correlação com indicadores populacionais, geográficos e econômicos dos municípios.
Os estudos até então publicados utilizaram dados disponibilizados pelo CFO. Outra fonte de dados com registro periódico sobre as ocupações e que vem sendo utilizada para analisar a força de trabalho no setor Saúde é o Cadastro Nacional de Estabelecimentos de Saúde (CNES).14
Diante da ausência de publicações recentes sobre a força de trabalho dos cirurgiões-dentistas no Brasil, o presente estudo, com base nos dados do CNES, teve como objetivo analisar as tendências na força de trabalho dos cirurgiões-dentistas no período de 2007 a 2014, descrevendo-as segundo macrorregião do país e municípios, setor de atuação (público ou privado) e tipo de profissional (clínico geral ou especialista).
Métodos
O presente estudo de séries temporais utilizou dados secundários, obtidos nas bases de dados do CNES e da Fundação Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), resgatados a partir do sítio eletrônico do Departamento de Informática do SUS (Datasus). Os dados, acessados no mês de janeiro de 2015, referem-se ao período de dezembro de 2007 a dezembro de 2014.
O CNES foi instituído pela Portaria n° 376, de 3 de outubro de 2000,15 que normatiza o processo de cadastramento dos estabelecimentos de saúde em todo o território nacional. O cadastro compreende o conhecimento dos estabelecimentos de saúde nos aspectos de área física, recursos humanos, equipamentos e serviços ambulatoriais e hospitalares, além dos profissionais que executam ações e ou serviços de saúde no país, vinculados ou não ao SUS. Trata-se de uma importante fonte de dados, haja vista ser o único cadastro de saúde a abranger consultórios particulares, profissionais vinculados a cooperativas e profissionais estrangeiros, constituindo-se em uma ferramenta para traçar o perfil dos profissionais que atuam nos serviços de saúde.14 Os dados do CNES estão disponíveis, em acesso aberto (http://cnes.datasus.gov.br/).
O número absoluto de cirurgiões-dentistas foi obtido na base de dados do CNES, a partir das opções Recursos Humanos - Ocupações - Segundo CBO 2002 - Brasil. Foram incluídas todas as 23 ocupações de cirurgiões-dentistas, a saber: Auditor, Clínico geral, Dentística, Disfunção temporomandibular, Endodontista, Epidemiologista, Estomatologista, Implantodontista, Odontogeriatra, Odontologia do trabalho, Odontologia para pacientes com necessidades especiais, Odontologista legal, Odontopediatra, Ortopedista e ortodontista, Patologista bucal, Periodontista, Protesista, Protesiólogo bucomaxilofacial, Radiologista, Reabilitador oral, Traumatologista bucomaxilofacial, Saúde Coletiva e Estratégia Saúde da Família.
Os cirurgiões-dentistas foram classificados segundo a atuação profissional como clínico geral ou especialista. A categoria de cirurgião-dentista especialista agrupou todas as categorias, exceto a de clínico geral. Embora quatro ocupações listadas no CNES (Auditor, Epidemiologista, Odontogeriatra e Reabilitador oral) não sejam consideradas especialidades, segundo o CFO, optou-se por categorizar esses profissionais como especialistas, uma vez que de alguma forma, a ocupação exercida por esses profissionais remete a um serviço especializado, distinto de uma atuação como clínico geral. A exclusão dessas ocupações decorreria em subestimação da força de trabalho disponível.
O setor de atuação foi classificado conforme o registro o CNES: ‘Atende Sistema Único de Saúde’; ou ‘Não atende Sistema Único de Saúde’, este utilizado como proxy da atuação no setor privado.
Para calcular a relação de habitantes por cirurgiões-dentistas, dividiu-se o número de habitantes pelo número de cirurgiões-dentistas. Neste cálculo, considerou-se a média da população do Brasil, suas macrorregiões e municípios para o período de 2007 a 2012, obtida do IBGE. O ano de 2012 era o último ano com estimativa populacional disponível em janeiro de 2015. Estima-se que 80% da população do Brasil seja usuária do SUS,16 razão porque a população de referência utilizada na relação habitantes/cirurgião-dentista no setor público foi de 80%, e no setor privado, foi de 20% da população geral do país. O parâmetro adotado para as comparações dessa relação baseou-se na recomendação do Ministério da Saúde do Brasil para dentistas que atuam na atenção primária: um cirurgião-dentista para cada 3.000 habitantes, em média.17
Os dados foram reunidos em planilhas do aplicativo Excel e transportados para análise pelo programa estatístico Stata 11.0 (StataCorp., College St., TX, 2009). Primeiramente, descreveu-se o número de cirurgiões-dentistas no período analisado, no Brasil e segundo macrorregiões do país e municípios, setor de atuação e tipo de atuação (clínico geral ou especialista). Para facilitar a visualização de dados, foram apresentados apenas os valores referentes aos anos de 2007 e 2014. Posteriormente, regressões lineares generalizadas, realizadas pelo método de estimação de Prais-Winstein, foram utilizadas para estimar as tendências no período de sete anos e calcular a variação percentual anual (VPA) com o respectivo intervalo de confiança de 95% (IC95%) do número de cirurgiões-dentistas e da relação de habitantes por cirurgião-dentista, segundo as características investigadas. As seguintes fórmulas foram calculadas para obtenção dos valores de
O estudo foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa com Seres Humanos da Faculdade de Odontologia da Universidade Federal de Pelotas em 26 de junho de 2015 (Parecer no 1.127.177).
Resultados
No ano de 2007, estavam cadastrados na base de dados do CNES 112.283 cirurgiões-dentistas, e em 2014, registravam-se 173.261. Em 2007, 70.748 (63%) cirurgiões-dentistas atuavam no setor público e, embora em números absolutos tenha aumentado (86.380), em termos percentuais reduziu-se para 49,9% a proporção de profissionais atuando nesse setor em 2014. No período de 2007 a 2014, houve aumento do número e proporção de especialistas, tanto no setor público como no privado. A região Sudeste concentrou o maior número de cirurgiões-dentistas atuando como clínicos gerais, em ambos setores - público e privado. O maior número de especialistas atuando no setor público foi encontrado na região Nordeste, enquanto no setor privado, esse número foi maior na região Sudeste (Tabela 1).
Tabela 1 - Distribuição do número absoluto, taxa de variação anual e tendências da força de trabalho de cirurgiões-dentistas atuando como clínicos gerais e especialistas, total e por setor de atuação, Brasil e regiões, 2007-2014
Regiões e Brasil | Cirurgião-dentista clínico geral | Cirurgião-dentista especialista | ||||||
---|---|---|---|---|---|---|---|---|
2007 N | 2014 N | % de variação (IC 95% ) a anual no período de 2007 a 2014 | Valor p b | 2007 N | 2014 N | % de variação (IC 95% ) a anual no período de 2007 a 2014 | Valor p b | |
Total | ||||||||
Norte | 2.454 | 4.414 | 18,3 (15,0;21,8) | <0,001 | 2.342 | 4.526 | 23,3 (17,3;29,7) | <0,001 |
Nordeste | 11.153 | 14.587 | 8,4 (4,6;12,4) | 0,001 | 14.786 | 21.639 | 12,8 (9,1;16,6) | <0,001 |
Sudeste | 34.358 | 51.049 | 13,2 (7,0;19,6) | 0,002 | 16.606 | 30.701 | 21,2 (12,7;30,3) | 0,001 |
Sul | 13.011 | 18.880 | 12,5 (8,1;17,0) | <0,001 | 7.783 | 11.749 | 14,2 (11,9;16,5) | <0,001 |
Centro-Oeste | 5.436 | 8.423 | 14,5 (5,2; 24,7) | 0,008 | 4.354 | 7.293 | 18,0 (12,7;23,6) | <0,001 |
Brasil | 66.412 | 97.353 | 12,7 (7,1;18,6) | 0,001 | 45.871 | 75.908 | 17,3 (11,8;23,0) | <0,001 |
Setor público | ||||||||
Norte | 1.812 | 2.151 | 3,4 (0,5;6,4) | 0,03 | 2.028 | 3.388 | 17,7 (12,9;22,8) | <0,001 |
Nordeste | 6.426 | 6.272 | -1,5 (-2,0;-1,1) | <0,001 | 13.011 | 17,692 | 10,0 (7,5;12,6) | <0,001 |
Sudeste | 20.084 | 20.422 | -0,2 (-2,5;2,1) | 0,818 | 10.819 | 16.245 | 13,6 (8,6;18,8) | <0,001 |
Sul | 6.216 | 6.735 | 2,0 (0,5;3,5) | 0,016 | 5.161 | 6.695 | 8,8 (8,2;9,4) | <0,001 |
Centro-Oeste | 2.377 | 2.802 | 5,0 (-0,1;10,5) | 0,055 | 2.814 | 3.978 | 11,2 (9,5;12,8) | <0,001 |
Brasil | 36.915 | 38.382 | 0,5 (-1,3;2,4) | 0,515 | 33.833 | 47.998 | 11,6 (8,7;14,6) | <0,001 |
Setor privado | ||||||||
Norte | 642 | 2.263 | 47,1 (29,1;67,8) | <0,001 | 314 | 1.138 | 50,6 (34,4;68,9) | <0,001 |
Nordeste | 4.727 | 8.315 | 19,4 (9,9;29,7) | 0,002 | 1.775 | 3.947 | 28,6 (15,1;43,6) | 0,001 |
Sudeste | 14.274 | 30.627 | 27,3 (15,0;40,9) | 0,001 | 5.787 | 14.456 | 33,0 (18,2;49,6) | 0,001 |
Sul | 6.795 | 12.145 | 20,3 (12,7;28,4) | <0,001 | 2.622 | 5.054 | 23,5 (16,7;30,7) | <0,001 |
Centro-Oeste | 3.059 | 5.621 | 20,8 (8,1;34,9) | 0,006 | 1.540 | 3.315 | 28,0 (16,1;41,1) | 0,001 |
Brasil | 29.497 | 58.971 | 24,5 (13,5;36,5) | 0,001 | 12.038 | 27.910 | 30,3 (17,8;44,2) | 0,001 |
a) IC95%: intervalo de confiança de 95%.
b) Regressão de Prais-Winsten.
De 2007 a 2014, houve tendência significativa de crescimento do número de profissionais no país e regiões. Essas tendências foram mais expressivas no setor privado, se comparadas às do setor público. Por exemplo, no setor privado, o número de cirurgiões-dentistas clínicos gerais e especialistas cresceu em média 24,5% e 30,3% ao ano, respectivamente, enquanto no setor público, esses valores foram de 0,5% e 11,6%. Apenas as tendências do número de clínicos gerais atuando no setor público, para o total do Brasil, regiões Sudeste e Centro-Oeste, foram estáveis (p>0,05). As tendências do número de especialistas foram de crescimento, mais expressivo nas regiões Norte e Sudeste, tanto para o setor público como para o privado (Tabela 1).
Em 2007, havia no Brasil um cirurgião-dentista atuando como clínico-geral para cada 2.880 habitantes e um especialista para cada 4.169 habitantes; estes números se reduziram em 2014, passando para 1:1.965 habitantes e 1:2.520 habitantes, respectivamente. No país, a relação de habitantes por cirurgião-dentista no setor privado foi menor do que no setor público, tanto para clínico geral como para especialista. Houve tendência significativa de decréscimo dessa relação, mais expressiva no setor privado se comparada à do setor público. Permaneceram estáveis (p>0,05) as relações de habitantes por cirurgião-dentista para o perfil de clínico geral atuando no setor público, no Brasil e nas regiões Sudeste e Centro-Oeste. As maiores reduções na relação de habitantes por cirurgião-dentista foram observadas nas regiões Norte e Sudeste, tanto para o setor público como para o privado, acordes com o maior aumento de profissionais nessas regiões (Tabela 2).
Tabela 2 - Distribuição do número absoluto, taxa de variação anual e tendência da relação de habitantes por cirurgiões-dentistas atuando como clínicos gerais e especialistas, total e por setor de atuação, Brasil e regiões, 2007-2014
Regiões e Brasil | Habitantes por cirurgião-dentista clínico geral | Habitantes por cirurgião-dentista especialista | ||||||
---|---|---|---|---|---|---|---|---|
2007 N | 2014 N | % de variação anual no período (IC 95% ) a de 2007 a 2014 | Valor p b | 2007 N | 2014 N | % de variação anual no período (IC 95% ) a de 2007 a 2014 | Valor p b | |
Geral | ||||||||
Norte | 6.394 | 3.555 | -15,5 (-17,9;-13,0) | <0,001 | 6.700 | 3.467 | -18,9 (-22,9;-14,7) | <0,001 |
Nordeste | 4.772 | 3.649 | -7,8 (-11,0;-4,4) | 0,001 | 3.600 | 2.460 | -11,4 (-14,3;-8,4) | <0,001 |
Sudeste | 2.351 | 1.582 | -11,6 (-16,4;-6,6) | 0,002 | 4.864 | 2.631 | -17,5 (-23,3;-11,3) | 0,001 |
Sul | 2.121 | 1.461 | -11,1 (-14,5;-7,5) | <0,001 | 3.545 | 2.348 | -12,4 (-14,1;-10,7) | <0,001 |
Centro-Oeste | 2.570 | 1.659 | -12,7 (-19,8;-4,9) | 0,008 | 3.209 | 1.916 | -15,3 (-19,1;-11,3) | <0,001 |
Brasil | 2.880 | 1.965 | -11,2 (-15,7;-6,6) | 0,001 | 4.169 | 2.520 | -14,7 (-18,7;-10,6) | <0,001 |
Setor público | ||||||||
Norte | 6.928 | 5.836 | -3,3 (-6,0;-0,5) | 0,03 | 6.190 | 3.705 | -15,1 (-18,6;-11,4) | <0,001 |
Nordeste | 6.627 | 6.789 | 1,5 (1,1;2,0) | <0,001 | 3.273 | 2.407 | -9,1 (-11,2;-7,0) | <0,001 |
Sudeste | 3.217 | 3.164 | 0,2 (-2,1;2,6) | 0,815 | 5.973 | 3.978 | -12,0 (-15,8;-7,9) | <0,001 |
Sul | 3.551 | 3.277 | -2,0 (-3,4;-0,5) | 0,016 | 4.277 | 3.297 | -8,1 (-8,6;-7,6) | <0,001 |
Centro-Oeste | 4.703 | 3.989 | -4,8 (-9,5;0,2) | 0,055 | 3.972 | 2.810 | -10,0 (-11,4;-8,7) | <0,001 |
>Brasil | 4.145 | 3.986 | -0,5 (-2,3;1,3) | 0,516 | 4.522 | 3.188 | -10,4 (-12,8;-8,0) | <0,001 |
Setor privado | ||||||||
Norte | 4.888 | 1.387 | -32,0 (-40,4;-22,5) | <0,001 | 9.995 | 2.758 | -33,6 (-40,8;-25,6) | <0,001 |
Nordeste | 2.252 | 1.280 | -16,2 (-22,9;-9,0) | 0,002 | 5.997 | 2.697 | -22,2 (-30,4;-13,1) | 0,001 |
Sudeste | 1.132 | 527 | -21,4 (-29,1;-13,0) | 0,001 | 2.792 | 1.118 | -24,8 (-33,1;-15,4) | 0,001 |
Sul | 812 | 454 | -16,8 (-22,1;-11,2) | <0,001 | 2.104 | 1.092 | -19,0 (-23,5;-14,3) | <0,001 |
Centro-Oeste | 914 | 497 | -17,2 (-25,9;-7,5) | 0,006 | 1.815 | 843 | -21,9 (-29,1;-13,9) | 0,001 |
Brasil | 1.297 | 649 | -19,7 (-26,7;-11,9) | 0,001 | 3.178 | 1.371 | -23,3 (-30,6;-15,1) | 0,001 |
a) IC95%: intervalo de confiança de 95%.
b) Regressão de Prais-Winsten.
Notas:
- População de referência do setor público equivalente a 80% da população geral do Brasil.
- População de referência do setor privado equivalente a 20% da população geral do Brasil.
Segundo os registros, 15% dos municípios apresentam densidade da relação de habitantes por cirurgião-dentista inferior à média recomendada pelo Ministério da Saúde do Brasil (um cirurgião-dentista para cada 3.000 habitantes, em média). Além de visualizar áreas de maior redução dessa relação, destaca-se uma maior densidade de profissionais nas regiões Sul e Sudeste e cidades litorâneas do Nordeste, tanto no início como no final do período analisado (Figura 1).
Discussão
O presente estudo utilizou dados secundários de bases de dados nacionais e de domínio público, valorizando informações disponíveis e produzindo novos conhecimentos sobre a realidade do país. O CNES é a base para operacionalizar os sistemas de informações em saúde, propiciando aos gestores o conhecimento da realidade da rede assistencial, auxiliando no planejamento em saúde em todos os níveis do governo, além de dar visibilidade ao controle social da população. O CNES é um cadastro amplo, em termos de informações sobre todos os procedimentos executados pelos prestadores de serviços de saúde, conveniados ou não ao SUS.14
Algumas limitações do estudo, decorrentes da fonte de dados CNES, devem ser apontadas. O CNES não apresenta os mesmos números que os registros do CFO. Por exemplo, o número de cirurgiões-dentistas cadastrados no CFO em 2014 era de 272.090 (disponível em: http://www.cfo.org.br), enquanto no CNES era de 173.261. Ou seja, um terço dos dentistas registrados no CFO não possui cadastro no CNES. Embora, o cadastro no CNES seja obrigatório em todo o território nacional, esses profissionais podem estar a atuar sem o devido cadastro do estabelecimento de saúde, desempenharem outras funções não vinculadas à assistência odontológica, ou não estarem a exercer a profissão, mas manterem o registro no CFO. O código numérico obtido pelo estabelecimento de saúde a partir do cadastro no CNES é utilizado para confecção de contratos aditivos, entre prestadores de serviços, profissionais, sócios e operadoras de planos de saúde. Contudo, é comum que gestores priorizem alimentar o CNES com as informações obrigatórias exigidas pelo Datasus, as quais se referem aos profissionais que efetuaram procedimentos geradores de pagamento.14 Em muitas situações, é esse o caso dos profissionais de odontologia sem registro no CNES, especialmente daqueles que atuam exclusivamente no setor privado e não realizam negociações ou parcerias. Outra diferença entre registros no CFO e no CNES refere-se ao tipo de especialidade. O CFO informa o profissional que é registrado com diploma de curso de pós-graduação, enquanto o CNES informa o profissional que atua em determinada ocupação, não se tratando, necessariamente, de um especialista registrado. O CFO informa as 19 especialidades reconhecidas pela Odontologia, enquanto o CNES informa 23 possíveis formas de atuação como serviços especializados. O profissional registrado no CFO pode não atuar na especialidade para a qual possui o diploma, além de poder exercer suas atividades - de forma integral ou parcial - em outra localidade.13 Esse tipo de limitação é menos provável de acontecer quando são analisados dados do CNES, no qual o profissional é cadastrado a partir do local e da ocupação que exerce em determinado estabelecimento de saúde, o que poderia ser visto como uma vantagem desse cadastro. No entanto, o CNES pode subestimar o quantitativo real da força de trabalho, pois estima o número de profissionais em atuação no momento. Isto significa que o presente estudo adotou uma apropriação restrita do conceito de força de trabalho, para designar o conjunto dos profissionais atuantes em determinada ocupação no período analisado. Em função das inconsistências quanto ao número de profissionais de saúde bucal de nível técnico e auxiliar na base de dados do CNES, não foi possível estimar a força de trabalho da Odontologia de forma mais ampla. Se por um lado, o CNES é uma ferramenta bastante útil para monitorar tendências e gerar novas hipóteses, por outro lado, ele oferece limitações à investigação da força de trabalho dos profissionais de saúde em atividade no Brasil.14
Estudos internacionais apontam resultados similares aos nacionais, com crescimento da força de trabalho de cirurgiões-dentistas acompanhada de uma distribuição desigual desses profissionais, sendo menor sua oferta em áreas rurais e em países em desenvolvimento.19-22 Yamalik et al., ao investigarem a força de trabalho em odontologia de 18 países no ano de 2012, revelaram uma oferta de cirurgiões-dentistas superior nos países desenvolvidos, em relação àqueles em desenvolvimento.21 Entre os países desenvolvidos avaliados, os Estados Unidos da América tinham o maior número de cirurgiões-dentistas (185.084), seguindo-se Alemanha (53.767) e França (40.114). Entre os países em desenvolvimento analisados, Cuba (12,144), Costa Rica (4.510) e Marrocos (3.500) foram os três com o maior número desses profissionais. Comparando-se a oferta de cirurgiões-dentistas, o Brasil (173.261 com registro no CNES) se aproxima do padrão observado nos países desenvolvidos. Ainda de acordo com o referido estudo, 67% dos países em desenvolvimento apresentaram regiões com insuficiência de profissionais, e 78% desses mesmos países carecem de especialistas.
Um fator que pode explicar diferenças na distribuição dos cirurgiões-dentistas nas regiões do Brasil é a quantidade de cursos de graduação e especialização em odontologia, em cada região. De acordo com o CFO, havia 220 cursos de graduação em odontologia no Brasil no ano de 2014, concentrando-se 43,6% (N=96) no Sudeste, 19,5% (N=43) no Nordeste, 18,2% (N=40) no Sul, 10% (N=22) no Norte e 8,6% (N=19) no Centro-Oeste. De 1992 a 2008, ocorreu ampla expansão do número de cursos de graduação em Odontologia (132%), com 72% dos cursos privados.7 Essa expansão continuou no período de 2008 e 2014 (11,6%), embora não tão expressiva quanto no período anterior. A maioria dos cursos de especialização também se encontra no Sudeste, justificando a presença nessa região da maioria de profissionais com uma (56%) ou até duas (54%) especialidades.7
O crescimento mais expressivo dos cursos de odontologia na região Norte, no período de 2004 a 2008, em relação às demais regiões, na forma de faculdades públicas (160%) e privadas (66%),7 sugere uma tendência de incremento para os próximos anos, fato que pode explicar o aumento mais acentuado de profissionais em praticamente todas as análises para essa região. A maior oferta de cursos de graduação nas três últimas décadas implicou crescimento da disponibilidade de profissionais no mercado de trabalho, sem um planejamento na distribuição e na capacidade do mercado de trabalho para absorver tal incremento.23
Em trabalho publicado no ano de 2010, Cardoso et al.24 avaliaram que a má distribuição de profissionais tende a continuar, conforme apontado no presente estudo. Embora as políticas públicas de saúde bucal, a exemplo do Programa Brasil Sorridente, incentivem o deslocamento de profissionais para o interior visando melhorar o acesso aos serviços odontológicos, elas não garantem uma redistribuição significativa de seus serviços.24 É nos grandes centros onde estão localizados os polos formadores e a população de maior poder aquisitivo, razão porque muitos cirurgiões-dentistas permanecem nesses locais, procurando aliar a atuação no setor público com a atividade em consultórios ou clínicas privadas.24
Não há parâmetros mundiais recomendados sobre a relação ideal de habitantes por cirurgião-dentista, uma vez que essa demanda pode variar conforme as necessidades da população e dos diferentes contextos. No Brasil, a Política Nacional de Atenção Básica preconiza que um cirurgião-dentista, atuando com auxiliar de saúde bucal, deve ser responsável por 3.000 pessoas em média.17 Quanto maior o grau de vulnerabilidade da população, maior deve ser o número de profissionais.17 Tomando-se como base esses valores recomendados pelo ministério, eles são adequados quando observamos, em termos gerais, o país e suas macrorregiões.
Contudo, uma análise por setor de atuação mostra que essa relação não é adequada. No setor público, há muitos habitantes para poucos cirurgiões-dentistas, enquanto no setor privado, a lógica se inverte, com poucos habitantes para muitos profissionais; a esse achado, soma-se a escassez de profissionais em determinados municípios, significando que muitos brasileiros sofrem restrição de acesso aos serviços odontológicos.
Na qualidade de um sistema de saúde universal, o SUS é referência na atenção à saúde de aproximadamente 80% dos brasileiros mas, ainda assim, um terço da população não utiliza o serviço público de forma regular.16 O aumento da disponibilidade de cirurgiões-dentistas nos últimos anos pode explicar o fato de a proporção de pessoas que nunca consultaram o dentista estar se reduzindo no Brasil.25 Entretanto, a iniquidade social na utilização de serviços odontológicos ainda é expressiva25 e isso pode ser explicado - também - pela oferta desigual dos profissionais. Segundo o relatório da Pesquisa Nacional de Saúde (PNS) realizada em 2013, a proporção de pessoas que consultaram dentista no último ano foi de 44,4%, sendo que as regiões Norte (34,4%) e Nordeste (37,5%) apresentaram as menores proporções desse indicador, enquanto as maiores foram verificadas nas regiões Sul (51,9%) e Sudeste (48,3%),26 onde a oferta de profissionais é maior. Ainda segundo a PNS, de todas as consultas odontológicas realizadas nos 12 meses anteriores, apenas 19,6% ocorreram no serviço público.26
A relação habitantes/cirurgião-dentista no setor privado é inferior à do setor público, indicando que o mercado de trabalho no setor privado pode estar sofrendo um processo de saturação, enquanto se observa maior espaço para o exercício da profissão no setor público. Apesar das potencialidades do mercado no setor público, as políticas de formação profissional votadas para o SUS, bem como as vagas de emprego, ainda são insuficientes para absorver o considerável volume de cirurgiões-dentistas que se formam todo ano, restando-lhes o mercado de trabalho no setor privado. A continuidade do Programa Brasil Sorridente, visando a expansão da atuação no setor público e a interiorização da oferta de profissionais, depende de vontade política e movimentação popular, uma vez que no Brasil, historicamente, programas de governo não são sinônimo de programas de estado.27 O aporte de recursos para a saúde bucal na última década contribuiu com o aumento da empregabilidade em odontologia nos serviços públicos; porém, diversas formas de trabalho temporário são adotadas, caracterizando um outro problema, a precarização dos vínculos empregatícios no setor.28
Mudanças observadas nas últimas décadas, como a queda nos lucros privados dos cirurgiões-dentistas, o surgimento dos convênios odontológicos, o aumento indiscriminado das faculdades de odontologia e o avanço tecnológico não absorvido pelo mercado, refletem o esgotamento de uma “era de ouro” da odontologia brasileira.29 A aspiração do cirurgião-dentista pela ocupação no setor público, antes vista com ressalvas, parece ser resultado da vontade de se obter uma estabilidade financeira, amenizando a incerteza do exercício profissional no setor privado.24
A nova perspectiva de atuação da odontologia traz o desafio de produzir um profissional com visão ampliada e comprometido com o objeto de sua prática, capaz de contribuir para a melhoria da saúde da população,30 seja no âmbito público, seja no privado.27 Essa discussão reafirma a importância da continuidade de políticas públicas e programas em todas as esferas de governo, com vistas à ampliação e distribuição equitativa dos serviços odontológicos. A combinação entre oferta de serviços de saúde e qualidade de atenção poderá determinar os resultados futuros em termos de acesso e utilização, resolutividade e melhoria das condições de saúde bucal da população.
De acordo com os dados do CNES, no período de 2007 a 2014, a força de trabalho de cirurgiões-dentistas atuando como clínicos gerais e especialistas cresceu, com exceção dos clínicos gerais atuantes no setor público das regiões Sudeste e Centro-Oeste do país, onde se verifica tendência de estabilidade na relação entre o número de habitantes e a oferta desses profissionais. A expansão da força de trabalho foi menor no setor público, relativamente ao setor privado. Diferenças nas taxas de crescimento segundo a macrorregião do país e o tipo de atuação profissional foram observadas. A despeito do número de dentistas ser elevado no Brasil, eles estão desigualmente distribuídos no território nacional, em ambos os setores de atuação, o que torna o acesso aos cuidados odontológicos difícil para muitos brasileiros. Os resultados deste estudo poderão contribuir para o planejamento da oferta de serviços odontológicos de saúde e de formação profissional, sendo de grande interesse para governantes, gestores, educadores e profissionais de saúde, e para a comunidade.