Introdução
A violência acompanha a história da humanidade, atingindo todas as classes e segmentos sociais. Ela também acarreta a diminuição da qualidade de vida individual e da coletividade, constituindo, na sociedade contemporânea, um grave problema de Saúde Pública em nível global.1 Entre os diferentes tipos de violência, o abuso sexual é uma preocupação constante, sendo comum sua ocorrência no ambiente escolar.2 Estima-se que no mundo todo, anualmente, cerca de 40 milhões de crianças e adolescentes sofram abuso sexual. No entanto, essa estimativa pode estar subdimensionada devido às circunstâncias em que esses eventos ocorrem, à frequente dependência das vítimas em relação a seu agressor, além do medo e do constrangimento relacionados a dificuldades para denunciar esse tipo de violência.3
Sequelas psicológicas - como baixa autoestima, ansiedade, depressão, raiva, agressão, estresse pós-traumático, dificuldades sexuais, pensamentos suicidas e baixo desempenho escolar - podem ser encontradas em jovens com histórico de violência sexual.4 Também pode haver impacto dessa violência sobre seus familiares, nos relacionamentos futuros e no meio social em que vivem essas crianças e adolescentes. Seus efeitos atingem a saúde individual e coletiva. Por ser um fenômeno complexo e de grande magnitude, a violência sexual contra indivíduos nessas idades requer um olhar específico do poder público, e uma resposta abrangente.5
No Brasil, os resultados da Pesquisa Nacional de Saúde do Escolar (PeNSE),6 em sua edição de 2015, revelaram: 4,0% dos escolares entrevistados afirmaram terem sido forçados a ter relação sexual, variando de 3,7% dos meninos a 4,5% das meninas. Segundo dados do Sistema de Informação de Agravos de Notificação (Sinan), a violência sexual ocupa a segunda posição entre as agressões contra adolescentes na faixa etária de 10 a 19 anos, com 23,9% das notificações, sendo ultrapassada apenas pela violência física, com 63,3%.7
O interesse em identificar a violência - inclusive o abuso sexual - no contexto escolar é crescente, não somente por suas implicações no processo de integração de crianças e adolescentes à sociedade, mas também pela relação que apresenta com o fracasso de objetivos mais amplos da escola, como educar, ensinar e aprender.8
Para fins de vigilância epidemiológica, conceitua-se a violência sexual como:
qualquer ação na qual uma pessoa, valendo-se de sua posição de poder e fazendo uso de força física, coerção, intimidação ou influência psicológica, com uso ou não de armas ou drogas, obriga outra pessoa - de qualquer sexo - a ter, presenciar, ou participar de alguma maneira de interações sexuais ou a utilizar, de qualquer modo, a sua sexualidade, com fins de lucro, vingança ou outra intenção.9
Embora existam pesquisas3,6,7 a descrever as características da ocorrência da violência sexual contra crianças e adolescentes no Brasil, ainda há poucos registros na literatura8 que revelem a parcela desse tipo de abuso no ambiente escolar, especificamente.
Considerando-se que a violência sexual no ambiente escolar tem ocupado posição de destaque na atualidade, e que se trata de objeto de vigilância e monitoramento por parte do setor Saúde, o presente estudo se propôs a descrever as notificações de violência sexual contra crianças e adolescentes ocorrida na escola, no Brasil, no período de 2010 a 2014.
Métodos
Estudo descritivo sobre os casos de violência sexual cometida contra crianças (0 a 9 anos) e adolescentes (10 a 19 anos) no ambiente escolar, em todo o território brasileiro, no período de 2010 a 2014.
Foram utilizados dados do Sinan. No Brasil, o Sistema de Vigilância de Violências e Acidentes (VIVA) foi implantado em 2006. O VIVA conta com um componente voltado para os atendimentos em serviços de urgência em pesquisas pontuais (VIVA Inquérito) e outro focado nos casos de violência interpessoal/autoprovocada captados nos serviços de saúde em geral, de maneira contínua (VIVA Contínuo). A partir de 2009, as notificações do VIVA Contínuo passaram a integrar o Sinan, mas, somente a partir de 2011, a violência passou a integrar a lista de agravos de notificação compulsória, universalizando-se a notificação para todos os serviços de saúde do país. A ficha de notificação individual deve ser utilizada para notificação de qualquer caso suspeito ou confirmado de violência doméstica/intrafamiliar, sexual, autoprovocada, tráfico de pessoas, trabalho escravo, trabalho infantil, tortura, intervenção legal e violências homofóbicas contra mulheres e homens de todas as idades.9
A ficha de notificação de violência interpessoal/autoprovocada é composta por variáveis agrupadas nos seguintes blocos: dados gerais; notificação individual; dados de residência; dados da pessoa atendida; dados da ocorrência; violência; violência sexual; dados do provável autor da violência; encaminhamento; e dados finais. Essas fichas são digitadas no Sinan pelas Secretarias Municipais de Saúde e os dados são transferidos aos níveis estadual e federal, para compor os bancos de dados municipal, estadual e nacional.9
Foram selecionados todos os casos de violência sexual contra crianças e adolescentes ocorrida na escola, a partir dos registros de notificação de violências no banco de dados do Sinan, tomando-se por base os seguintes critérios: (i) tipo de violência - sexual; (ii) idade da vítima - 0 a 19 anos; e (iii) local de ocorrência - escola (Figura 1).
Os casos foram analisados de acordo com as seguintes características:
Das vítimas
- idade (em anos: 0 a 9; 10 a 19);
- sexo (feminino; masculino); e
- raça/cor da pele (branca; negra - preta e parda; outras - amarela e indígena);
Do evento
- violência de repetição (se já ocorreu outras vezes); e
- tipo de violência sexual (estupro; assédio sexual; atentado ao pudor; exploração sexual; pornografia infantil; outros);
Do agressor
- sexo (masculino; feminino; ambos os sexos, quando mais de um agressor de sexos diferentes);
- a vítima suspeitou que o provável autor da agressão ingeriu bebida alcoólica (não; sim); e
- provável autor da agressão (conhecido - familiar, cônjuge, namorado, amigo; desconhecido - pessoa sem relação familiar ou afetiva com a vítima); e
Do atendimento
- procedimentos indicados (coleta de sangue; profilaxia contra infecções sexualmente transmissíveis; profilaxia contra HIV; coleta de secreção vaginal; profilaxia contra hepatite B; contracepção de emergência; coleta de sêmen; aborto previsto em lei);
- evolução (alta; evasão/fuga);
- encaminhamento para outros setores (Conselho Tutelar, Instituto Médico Legal, Delegacia de Proteção à Criança e ao Adolescente; outras delegacias; Centro de Referência Especializado de Assistência Social; Delegacia da Mulher; Vara da Infância e Juventude; Programa sentinela; Ministério Público; Centro de Referência da Mulher; Casa abrigo; outros).
Foram realizadas comparações entre variáveis utilizando-se o teste do qui-quadrado de Pearson (X²), com nível de significância de 5%. As análises estatísticas foram processadas pelo programa Stata® versão 14.10
O banco de dados nacional, que já havia passado por uma análise de consistência e pela exclusão de registros duplicados, foi disponibilizado pela equipe técnica do Departamento de Vigilância de Doenças e Agravos não Transmissíveis e Promoção da Saúde, da Secretaria de Vigilância em Saúde do Ministério da Saúde (DANTPS/SVS/MS), para ser utilizado nesta análise.
Garantiu-se o anonimato e confidencialidade das informações constantes dos registros. Por se tratar de um estudo com dados secundários anônimos, o projeto desta pesquisa foi dispensado de apreciação por Comitê de Ética em Pesquisa, em conformidade com as diretrizes da Resolução do Conselho Nacional de Saúde (CNS) nº 510, de 7 de abril de 2016.
Resultados
Foram identificadas 2.226 notificações de violência sexual ocorrida na escola contra crianças e adolescentes no Brasil, no período de 2010 a 2014. Predominaram vítimas do sexo feminino (63,8%) e de raça/cor de pele branca (51,8%) e negra (46,5%). Houve registro de reincidência de violência em aproximadamente um terço dos casos (34,7%). O tipo de violência sexual mais frequente foi o estupro (60,9%), seguido do assédio sexual (29,7%) e do atentado ao pudor (21,6%). Grande parte das vítimas foi agredida por indivíduos do sexo masculino (88,9%) e por conhecidos da vítima (46%). Em apenas 7,1% das notificações as vítimas suspeitaram de que os prováveis agressores haviam ingerido bebida alcoólica. No que se refere ao atendimento, 25,3% das vítimas realizaram coleta de sangue, 96,9% evoluíram para alta e 73,8% foram encaminhados para o Conselho Tutelar (Tabela 1).
Características | Crianças (0-9 anos) (n=1.546; 69,5%) | Adolescentes (10-19 anos) (n=680; 30,5%) | Totala (n=2.226; 100,0%) | Valor de pb | |||
---|---|---|---|---|---|---|---|
n | % | n | % | n | % | ||
Da vítima | |||||||
Sexo (N=2.226) | <0,001 | ||||||
Feminino | 897 | 58,0 | 524 | 77,1 | 1.421 | 63,8 | |
Masculino | 649 | 42,0 | 156 | 22,9 | 805 | 36,2 | |
Raça/cor da pele (N=1.906) | <0,001 | ||||||
Branca | 742 | 57,1 | 245 | 40,4 | 987 | 51,8 | |
Negra | 543 | 41,8 | 343 | 56,5 | 886 | 46,5 | |
Outras | 14 | 1,1 | 19 | 3,1 | 33 | 1,7 | |
Do evento | |||||||
Violência de repetição (N=1.566) | 0,001 | ||||||
Não | 696 | 68,2 | 327 | 60,0 | 1.023 | 65,3 | |
Sim | 325 | 31,8 | 218 | 40,0 | 543 | 34,7 | |
Tipo de violência sexual c | |||||||
Estupro | 713 | 56,1 | 440 | 70,9 | 1.153 | 60,9 | <0,001 |
Assédio sexual | 356 | 27,9 | 202 | 33,4 | 558 | 29,7 | 0,014 |
Atentado ao pudor | 283 | 24,1 | 88 | 16,2 | 371 | 21,6 | <0,001 |
Exploração sexual | 41 | 3,3 | 24 | 4,1 | 65 | 3,5 | 0,380 |
Pornografia infantil | 28 | 2,3 | 22 | 3,8 | 50 | 2,7 | 0,065 |
Outros | 132 | 10,8 | 28 | 5,0 | 160 | 9,0 | <0,001 |
Do agressor | |||||||
Sexo do agressor (N=1.924) | <0,001 | ||||||
Masculino | 1.087 | 85,5 | 624 | 95,7 | 1.711 | 88,9 | |
Feminino | 159 | 12,5 | 12 | 1,8 | 171 | 8,9 | |
Ambos os sexos | 26 | 2,0 | 16 | 2,5 | 42 | 2,2 | |
Suspeita de que o agressor ingeriu bebida alcoólica (N=1.289) | <0,001 | ||||||
Não | 843 | 96,9 | 355 | 84,7 | 1.198 | 92,9 | |
Sim | 27 | 3,1 | 64 | 15,3 | 91 | 7,1 | |
Provável autor da agressão c | |||||||
Conhecido | 618 | 46,9 | 274 | 44,1 | 892 | 46,0 | 0,248 |
Desconhecido | 202 | 15,7 | 156 | 25,6 | 358 | 18,8 | <0,001 |
Do atendimento | |||||||
Procedimentos indicados c | |||||||
Coleta de sangue | 234 | 19,8 | 204 | 37,3 | 438 | 25,3 | <0,001 |
Profilaxia contra infecções sexualmente transmissíveis (IST) | 111 | 9,5 | 143 | 26,3 | 254 | 14,8 | <0,001 |
Profilaxia contra HIV | 93 | 8,0 | 138 | 25,4 | 231 | 13,5 | <0,001 |
Coleta de secreção vaginal | 48 | 7,4 | 73 | 17,9 | 121 | 11,4 | <0,001 |
Profilaxia contra hepatite B | 58 | 5,0 | 107 | 19,9 | 165 | 9,7 | <0,001 |
Contracepção de emergência | 7 | 1,1 | 94 | 22,7 | 101 | 9,6 | <0,001 |
Coleta de sêmen | 16 | 1,4 | 31 | 5,9 | 47 | 2,8 | <0,001 |
Aborto previsto em lei | - | - | 5 | 1,3 | 5 | 1,1 | NA |
Evolução (N=1.517) | 0,491 | ||||||
Alta | 1.038 | 97,1 | 432 | 96,4 | 1.470 | 96,9 | |
Evasão/fuga | 31 | 2,9 | 16 | 3,6 | 47 | 3,1 | |
Encaminhamento para outros setores c | |||||||
Conselho Tutelar | 1.031 | 77,5 | 375 | 65,2 | 1.406 | 73,8 | <0,001 |
Instituo Médico Legal | 344 | 27,1 | 144 | 26,1 | 488 | 26,8 | 0,660 |
Delegacia de Proteção à Criança e ao Adolescente | 298 | 23,7 | 135 | 24,8 | 433 | 24,0 | 0,634 |
Outras delegacias | 212 | 16,9 | 100 | 18,2 | 312 | 17,3 | 0,481 |
Centro de Referência Especializado de Assistência Social | 202 | 16,1 | 104 | 18,8 | 306 | 16,9 | 0,159 |
Delegacia da Mulher | 116 | 9,2 | 68 | 12,4 | 184 | 10,2 | 0,043 |
Vara da Infância e Juventude | 57 | 4,6 | 35 | 6,4 | 92 | 5,2 | 0,106 |
Programa sentinela | 47 | 3,8 | 21 | 3,9 | 68 | 3,8 | 0,932 |
Ministério Público | 40 | 3,2 | 27 | 5,0 | 67 | 3,8 | 0,077 |
Centro de Referência da Mulher | 29 | 2,3 | 24 | 4,4 | 53 | 3,0 | 0,017 |
Casa abrigo | 4 | 0,3 | 8 | 1,5 | 12 | 0,7 | NA d |
Outros | 241 | 19,9 | 83 | 15,7 | 324 | 18,6 | 0,038 |
a) Totais divergem devido a dados faltantes (ignorado/em branco).
b) Teste do qui-quadrado de Pearson.
c) Não corresponde a 100%, porque poderia haver mais de uma opção para o mesmo caso notificado.
d) NA: não se aplica - não foram calculados o teste do qui-quadrado de Pearson e o valor de p, devido à existência de célula com valor esperado <5.
No período, houve aumento no número de notificações de violência sexual contra crianças e adolescentes na escola, que passou de 308 (2010) para 565 (2014) no país. Esse crescimento foi observado em todas as grandes regiões nacionais (Figura 2).
A faixa etária de 3 a 6 anos concentrou 39,7% das notificações (Figura 3). A média de idade das vítimas foi de 7,4 anos (desvio-padrão: ±4,5), com mediana de 6 anos de idade.
Os casos notificados concentraram-se no grupo de 0 a 9 anos de idade - 69,5% -, enquanto os casos entre adolescentes de 10 a 19 anos de idade corresponderam a 30,5% das notificações. A proporção de vítimas do sexo feminino (77,1%) e de cor da pele/raça negra (56,5%) foi significativamente maior no grupo de adolescentes (p<0,001) (Tabela 1).
Verificou-se maior proporção de reincidência da violência sexual contra adolescentes na escola (40,0%), na comparação com as crianças (31,8%) (p=0,001). Os casos classificados como estupro (70,9%; p<0,001) e assédio sexual (33,4%; p=0,014) foram mais frequentes entre os adolescentes, enquanto as notificações de atentado ao pudor prevaleceram entre as crianças (24,1%; p<0,001). Foram mais frequentes os casos perpetrados por indivíduos do sexo masculino, em maior proporção contra as vítimas adolescentes (95,7%; p<0,001). A ingestão de bebida alcoólica pelo agressor foi informada em proporção cinco vezes maior nos abusos contra adolescentes (15,3%; p<0,001). O agressor era, na maioria das vezes, uma pessoa conhecida da vítima, em ambos os grupos etários, sendo que agressores estranhos ao convívio da vítima foram notificados em maior proporção entre os adolescentes (25,6%; p<0,001) (Tabela 1).
Os procedimentos relacionados à coleta de amostras clínicas e profilaxia de infecções sexualmente transmissíveis (IST) foram indicados, em maior proporção, entre vítimas de 10 a 19 anos de idade (p<0,001). Nos dois grupos etários analisados, a proporção de evolução para alta foi superior a 96%. O Conselho Tutelar foi a instituição que recebeu o maior percentual de encaminhamentos, principalmente entre as vítimas menores de 10 anos de idade (77,5%; p<0,001) (Tabela 1).
Discussão
Este estudo evidencia que as crianças e adolescentes estão expostos à violência sexual na escola, instituição que, supostamente, deveria garantir proteção, desenvolvimento saudável e segurança para os escolares. Este artigo representa o primeiro estudo de abrangência nacional sobre violência sexual no ambiente escolar.
Ressalta-se que, dos diversos estudos6,12-14 citados neste artigo, nenhum se refere à violência sexual ocorrida na escola mas apenas à violência sexual relatada por estudantes ou por adolescentes em idade escolar, podendo ter ocorrido em qualquer ambiente. O artigo é pertinente, ao desvelar um problema capaz de desencadear diversas consequências para as crianças e adolescentes, como isolamento, ansiedade, pensamentos suicidas, baixo desempenho escolar e outros, devido a suas capacidades emocionais, cognitivas e sociais serem menos maduras.11
Os resultados do presente estudo evidenciam o gradativo aumento no número de notificações de violência sexual ocorrida na escola, em todas as regiões do Brasil, ao longo do período de 2010 a 2014. A prevalência mundial de abuso sexual contra crianças e adolescentes varia entre 8-31% para meninas e 3-17% para meninos, continuando como objeto de preocupação para o poder público e a sociedade geral.12 Na pesquisa sobre comportamentos de risco entre jovens estudantes dos Estados Unidos em 2015,13 verificou-se que 6,7% dos entrevistados haviam sido forçados a ter relações sexuais. O estudo revelou ainda que a prevalência de violência sexual entre estudantes foi quase três vezes superior no sexo feminino (15,6%), em relação ao sexo masculino (5,4%).
Em estudo realizado em Brasília, DF, no ano de 2012, com crianças de 11 a 15 anos matriculadas em escolas públicas, foi possível identificar elevada ocorrência de violência física, cuja prevalência foi de 85,4%, seguida da violência psicológica (62,5%) e sexual (34,7%).14 Diante da elevada magnitude desses achados, é reforçada a necessidade de investigação da violência sexual dentro do ambiente escolar, também pelos efeitos deletérios que esse tipo de violência pode ter sobre o desenvolvimento do indivíduo.
Do total de casos notificados, observou-se que crianças e adolescentes do sexo feminino são mais susceptíveis a sofrerem violência sexual na escola, o que condiz com outro estudo realizado em Campo Grande, MS, no período 2007-2008, que apontou o sexo feminino como o grupo mais atingido pela violência sexual, principalmente, na adolescência.15 Outros estudos demonstram que o risco de violência sexual é duas vezes maior entre as mulheres, comparativamente aos homens,16 e que 10-20% das meninas e 5-10% dos meninos já sofreram violência sexual antes dos 18 anos.12
No estudo realizado com adolescentes escolares estadunidenses,17 estimou-se que 30% dos entrevistados revelaram vitimização do assédio sexual, sendo 37% em mulheres e 21% em homens. Outros estudos demonstram que perpetradores de violência sexual mais comuns eram parceiros íntimos, familiares e professores.18-20 Esses achados assemelham-se aos resultados deste estudo no que se refere ao provável autor da agressão, que, em sua maioria, era conhecido da família/vítima.
No que se refere ao atendimento a crianças e adolescentes vítimas de violência sexual na escola, merece destaque o papel desempenhado pelos Conselhos Tutelares. Segundo o artigo 131 do Estatuto da Criança e do Adolescente, ‘o Conselho Tutelar é órgão permanente e autônomo, não jurisdicional, encarregado pela sociedade de zelar pelo cumprimento dos direitos da criança e do adolescente’. Diante desta atribuição, as escolas encaminham aos Conselhos Tutelares os casos de violência sexual identificados, para que sejam adotadas as devidas providências. Os Conselhos, por sua vez, redirecionam os casos para os demais órgãos da rede de atendimento e enfrentamento à violência sexual.21
Quanto aos tipos de violência sexual, foram identificados: estupro, assédio sexual, atentado ao pudor, exploração sexual, pornografia infantil e outros. Percebe-se que, entre os tipos de violência sexual, o estupro foi o de maior frequência, possivelmente relacionada ao fato de os demais tipos de abuso sexual não serem reconhecidos como violência. Para a criança, parece ser mais difícil definir assédio, atentado ao pudor, pornografia infantil e demais tipos de violência, o que dificulta a denúncia e/ou explicação dos fatos. Por outro lado, o estupro é a forma mais clara de violência sexual, e, por essa razão, desencadeia denúncias, o que pode não ocorrer com os demais tipos de violência.22
Diante desse cenário, alguns esforços vêm sendo feitos para minimizar a violência sexual e incentivar denúncias, como por exemplo: criação do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), em 1990;23 campanha de prevenção de acidentes e violência na infância e adolescência, instituída pela Sociedade Brasileira de Pediatria em 1998; elaboração do Plano Nacional de Enfrentamento da Violência Sexual Infantojuvenil pelo Ministério da Justiça, em 2000; e implantação da Política Nacional de Redução da Morbimortalidade por Acidentes e Violências pelo Ministério da Saúde (Portaria nº 737/2001).24 Destacam-se, ademais, a Política Nacional de Promoção da Saúde (Portaria nº 687/2006)25 e a implantação do Sistema de Informação para a Infância e Adolescência (SIPIA) em 2002, que possibilita um sistema nacional de monitoramento contínuo da situação de proteção à criança e ao adolescente nos Conselhos Tutelares, fornecendo, com agilidade e rapidez, as informações às diversas instâncias (municipal, estadual e federal).3
Na década de 1990, a Organização Mundial da Saúde (OMS) desenvolveu o conceito e a promoção das Escolas Promotoras de Saúde. Como resultado dessa iniciativa, em 2008, mais de 100 países já faziam monitoramento da saúde dos estudantes, ajudando na modificação de currículos e estruturando programas de saúde voltados à faixa etária adolescente.26
No Brasil, o Governo Federal desenvolve, desde 2004, o Projeto Escola que Protege, de responsabilidade do Ministério da Educação, tendo por finalidade a ampliação do diálogo com a sociedade e a articulação de meios para proteger as crianças e os adolescentes dos diferentes tipos de violência.27 Outrossim, implantou-se o Programa Saúde na Escola (PSE), instituído pelo Decreto nº 6.286, de 5 de dezembro de 2007, tendo como um de seus objetivos promover a saúde e a cultura de paz, reforçando a prevenção de agravos à saúde - entre eles a violência -, desenvolvendo ações integradas entre a Saúde e a Educação.28 A escola deve proporcionar um ambiente saudável e seguro para o aprendizado e desenvolvimento pleno das crianças, protegendo-as de situações que representem riscos à saúde física e psicológica.
Embora essenciais, são insuficientes os dados sobre violência sexual na escola, o que prejudica os esforços de prevenção. Por isso, a OMS recomenda fortalecer a coleta de dados de modo a se revelar a verdadeira extensão do problema, integrando-se diversos setores, como Saúde, Educação e Justiça, além de garantir serviços de atendimento às vitimas, subsidiados por evidências, e apoiar estudos de avaliação de resultados. A OMS soma a essas recomendações mais uma: a plena execução das leis já existentes, dedicadas à proteção das crianças e adolescentes e ao enfrentamento desse tipo de violência.29
As limitações encontradas no presente estudo são próprias de pesquisa com base em dados secundários, como a qualidade do preenchimento de variáveis presentes na ficha de notificação e a alimentação incorreta do sistema. A dificuldade em obter o número real de casos por meio da notificação pode estar relacionada ao fato de que quem sofre violência sexual, uma vez afetado pelo estigma da culpabilização da vítima, evita denunciar os abusos sofridos. Como resultado, os números notificados ficam aquém da realidade.30
Não obstante as limitações observadas, o presente artigo trouxe importante contribuição ao revelar, pela primeira vez, as notificações de violência sexual contra crianças e adolescentes ocorridas no ambiente das escolas brasileiras. A partir desses achados, tem-se um instrumento valioso para o planejamento e o desenvolvimento de ações intersetoriais de prevenção da violência e assistência aos escolares. Os resultados apresentados podem ser usados na orientação de ações que contribuam para melhorar o monitoramento e prevenção dos casos de violência sexual contra crianças e adolescentes na escola, bem como apoiar a oferta de atendimento às vítimas e a implantação de medidas de acompanhamento e responsabilização dos agressores.