Introdução
No Brasil, a expansão do setor elétrico tem proporcionado muitas situações de conflitos diretos ou latentes, em diversas comunidades, principalmente na Região Amazônica. Esses conflitos relacionam-se, frequentemente, às consequências advindas da construção de usinas hidrelétricas e de linhas de transmissão de alta tensão.1
Entre os principais efeitos resultantes dessa expansão do setor elétrico, destacam-se (i) o aumento populacional desordenado, (ii) a diminuição da disponibilidade da caça e da pesca,2 (iii) a redução das áreas cultiváveis, (iv) a realocação de comunidades para outras regiões, muitas vezes acompanhada de mudanças em seus estilos de vida, (v) o alagamento de grandes territórios, (vi) a invasão das terras indígenas1 e (vii) a proliferação da população de mosquitos vetores, podendo levar ao aumento na incidência de malária, dengue, febre amarela, leishmaniose e outras doenças infecciosas.2
Não obstante os benefícios que a aceleração do crescimento pode trazer, é imprescindível que as condições socioambientais sejam avaliadas e monitoradas de modo a favorecer a avaliação e a gestão dos impactos ambientais e de saúde decorrentes desses processos.3
De acordo com a legislação brasileira, todo empreendimento considerado potencialmente poluidor deve requerer o Licenciamento Ambiental para sua localização, instalação e operação junto ao órgão competente (federal, estadual ou municipal).4 Dentro do processo de licenciamento ambiental, prevê-se a confecção de um estudo de impacto ambiental e de seu respectivo relatório de impacto ambiental (EIA-RIMA). Embora a institucionalização e obrigatoriedade do EIA-RIMA tenha significado um marco na evolução do ambientalismo brasileiro, falta a inclusão de avaliações abrangentes de efeitos à saúde no processo de licenciamento ambiental.5
Em países de alta renda, são adotadas metodologias como a avaliação de impacto à saúde (AIS, sigla em português para HIA - health impact assessment, em inglês), que pode ser conduzida de forma independente do EIA ou integrada a ele. Quando efeitos negativos para a saúde humana são identificados antes da implementação do projeto, esses impactos podem ser mitigados tanto quanto possível e de forma mais eficiente.6 No Brasil, com exceção da malária, que conta com regulamentação de análise dentro do licenciamento ambiental,7 para outros agravos à saúde não há legislação ou diretrizes específicas articuladas - por exemplo, para avaliação de dengue, febre amarela, febre pelo vírus Zika e leishmaniose.
A literatura acerca dos custos da dengue no Brasil é recente e limitada, muitas vezes chegando a resultados conflitantes devido às diferenças nos custos de hospitalizações e atendimentos ambulatoriais entre os setores público e privado.8-11 Em uma revisão sistemática, Constenla et al.12 concluíram que os custos da dengue são substanciais, sendo os cuidados hospitalares e as perdas de produtividade os maiores contribuintes para esses custos.
No estado de Rondônia, observou-se crescimento expressivo da incidência de dengue no período de 1999 a 2010.9 Acredita-se que esse crescimento possa estar relacionado à construção de usinas hidrelétricas e de linhas de transmissão de alta tensão. Contudo, os custos da doença não foram estudados considerando-se os períodos antes e depois dessas construções.
O objetivo do presente estudo foi descrever a incidência de dengue e os custos associados, nos períodos anterior (2000 a 2008) e posterior (2009 a 2013) à construção das usinas hidrelétricas (UHE) Jirau e Santo Antônio, em Rondônia, Brasil.
Métodos
Trata-se de estudo de avaliação econômica. O custo considerado neste estudo baseou-se no custo direto da dengue, tendo-se em conta o número de casos notificados e as internações hospitalares registradas.
O estado de Rondônia, localizado na região Norte do Brasil, possui uma extensão territorial de 237.765,293km² e 52 municípios. A capital do estado e seu município mais populoso é Porto Velho, com 428.527 habitantes (dados do censo demográfico de 2010).13 Há duas UHE construídas ao longo do Rio Madeira. Sua construção teve início entre o final do ano de 2008 e começo de 2009 e, apesar de já gerarem energia desde 2012, ainda não estão totalmente concluídas. A UHE Jirau, distante 120km do centro de Porto Velho, obteve a concessão da Licença de Instalação em agosto de 2008, iniciando suas obras em setembro de 2008, enquanto a UHE Santo Antônio dista 10km do centro de Porto Velho e obteve sua Licença de Instalação em junho de 2009 (Figura 1). A área alagada prevista na UHE Jirau é de 258km², e na UHE Santo Antônio, de 271km².
A incidência e o número de internações por dengue foram obtidos do Sistema de Informação de Agravos de Notificação (Sinan) e do Sistema de Informações Hospitalares do Sistema Único de Saúde (SIH/SUS).
Para o cálculo da taxa de incidência de dengue no período de 2000 a 2013, foram utilizados como numeradores os totais de casos de dengue notificados no Sinan14 (CID-10, A90); os denominadores (tamanhos da população em cada ano) foram obtidos no portal da Fundação Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). A taxa de incidência de dengue foi calculada por 100 mil habitantes.
Utilizou-se a denominada regressão segmentada para comparação dos períodos anterior (período 1: 2000 a 2008) e posterior (período 2: 2009 a 2013) à construção das duas usinas hidrelétricas, como estratégia de comparação pré-teste e pós-teste, para dados temporais. O que difere esse tipo de análise de outras medidas pré e pós-teste são as condições em que é realizada: uma nota de corte entre os grupos analisados, com base em uma condição específica. Esse modelo estatístico utiliza como controle os indivíduos no período pré-intervenção, desobrigando a utilização de grupos-controle randomizados para comparação e avaliação da eficácia de um programa ou tratamento.15,16
O início da construção da UHE Santo Antônio ocorreu ao final de 2008, e o da UHE Jirau no início de 2009. Considerou-se a segmentação da série temporal entre os anos de 2008 e 2009. Separou-se, assim, o que se denominou de período 1, pré-início das obras (2000 a 2008), e período 2, pós-início das obras (2009 a 2013).
O modelo dessa regressão é dado pela Equação 1, adaptada de Wagner et al.16
Equação 1: equação da regressão segmentada
Onde:
Yt = resultado da intervenção ao longo do tempo
T = tempo desde o início do período de observação
D = uma variável dummy para a intervenção pré ou pós-teste - utiliza o zero para antes da intervenção e o 1 para pós-intervenção
P = tempo desde a intervenção - utiliza o zero para o período anterior à intervenção
bo = valor no tempo zero
b1 = inclinação antes da intervenção
b2 = mudança no nível imediatamente após a intervenção
b3 = mudança na inclinação do período pré para o período pós-intervenção
Diversos métodos têm sido utilizados para valorar os custos de saúde associados a impactos ambientais. No presente estudo, foi utilizado o método do macrocusteio (gross costing), que identifica os itens de custo em alto nível de agregação, englobando alguns componentes de custo mais relevantes para o serviço analisado.17 A abordagem do custo da dengue considerou os custos diretos da doença para o sistema de saúde, aplicando-se ao número de casos o valor médio do atendimento médico ambulatorial (Equação 3); aos casos que evoluíram para internação, aplicou-se o valor médio da internação pelo Sistema Único de Saúde (SUS) em Rondônia (Equação 2).
Equação 2: custo total de internação hospitalar por dengue
Onde:
Ctid = custo total da internação por dengue
vi = valor médio de uma diária de internação
di = número médio de dias de internação
ni = número de internações por dengue
Neste estudo de caso, considerou-se o valor médio de internação por dengue de R$285,57 e a permanência média de três dias (dados do SIH/SUS), valores representados para Rondônia em 2016. A conversão desses valores em reais para o dólar americano foi realizada em 03/02/2017 (US$1,00 = R$3,1235) (Banco Central), resultando em um valor médio de US$274,28 por três dias de internação. Para os atendimentos ambulatoriais, devido à indisponibilidade desses valores no SIH/SUS, foi considerado o valor dos custos diretos, obtido por estudo de Martelli et al.11 Assumiu-se a premissa de que todos os casos notificados possuíram ao menos um atendimento médico ambulatorial (Equação 3).
Equação 3: custo direto total do atendimento médico ambulatorial por dengue
Onde:
Ctad = custo total do atendimento médico ambulatorial por dengue
nd = número de casos de dengue
va = valor médio dos custos diretos do atendimento médico ambulatorial
Assim, o custo direto para atendimento por dengue prestado pelo setor público para a região Norte do país foi considerado a partir do valor unitário de US$38,00,11 englobando consulta médica, medicamentos e exames.11
Finalmente, o custo total de despesas do sistema de saúde devido à dengue foi calculado como a somatória dos custos de internação e dos custos ambulatoriais, conforme expresso na Equação 4:
Equação 4: custo direto total de saúde por dengue
Onde:
Ctid = custo total da internação por dengue
Ctad = custo total do atendimento médico ambulatorial por dengue
Utilizou-se o programa SPSS Statistics® versão 21, para as análises, e adotou-se o nível de significância p≤0,05.
O projeto da pesquisa foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa da Universidade Federal de São Paulo (UNIFESP) - Processo nº 250.107 - em 19 de abril de 2013.
Resultados
O resultado da análise da regressão segmentada mostrou que, entre o período 1 (2000 a 2008) e o período 2 (2009 a 2013) de análise, houve uma diferença significativa na taxa de incidência de dengue (p<0,001), observada pela ruptura no gráfico entre os anos de 2008 e 2009 (Figura 2). Além disso, verificou-se uma mudança significativa na curvatura da taxa de incidência (β= -0,439; p<0,001), como pode ser observado na mesma Figura 2.
***p<0,001 para parâmetros: ruptura da linha de tendência e diferenças na inclinação da reta entre os períodos 1 e 2.
Na Tabela 1, é possível verificar que a média anual de casos de dengue para o período 1 (período anterior ao início das obras) foi de 5.470 casos (taxa de incidência média de 356 casos/100 mil hab.), representado mais de US$386 mil anuais, e um total de cerca de US$3,47 milhões no período. A partir de 2009, até 2013, a média anual de casos passou para 14.708 (taxa de incidência média de 880 casos/100 mil hab.), resultando em gastos médios anuais próximos de US$1,4 milhão, e um total de US$7,1 milhões nos cinco anos desse período (Tabela 1). O valor médio de custos diretos, por caso notificado, foi de aproximados US$86,10.
Ano | Taxa de incidência (por 100 mil hab.) | Número de casos notificados | Número de internações por dengue | Custo total das internações (US$) | Custo total ambulatorial (US$) | Custo total (US$) |
---|---|---|---|---|---|---|
2000 | 260,07 | 3.645 | 18 | 4,937.04 | 138,510.00 | 143,447.04 |
2001 | 136,26 | 1.950 | 208 | 57,050.24 | 74,100.00 | 131,150.24 |
2002 | 200,57 | 2.928 | 716 | 196,384.48 | 111,264.00 | 307,648.48 |
2003 | 340,69 | 5.069 | 602 | 165,116.56 | 192,622.00 | 357,738.56 |
2004 | 356,86 | 5.407 | 440 | 120,683.20 | 205,466.00 | 326,149.20 |
2005 | 556,52 | 8.580 | 1.376 | 377,409.28 | 326,040.00 | 703,449.28 |
2006 | 391,44 | 6.136 | 722 | 198,030.16 | 233,168.00 | 431,198.16 |
2007 | 351,93 | 5.605 | 622 | 170,602.16 | 212,990.00 | 383,592.16 |
2008 | 612,74 | 9.908 | 1.146 | 314,324.88 | 376,504.00 | 690,828.88 |
Média anual (2000-2008) | 356,34 | 5.470 | 650 | 178,282.00 | 207,860.00 | 386,133.56 |
Total parcial | - | 49.228 | 5.850 | 1,604,538.00 | 1,870,664.00 | 3,475,202.00 |
2009 | 1.491,28 | 24.466 | 4.281 | 1,174,192.68 | 929,708.00 | 2,103,900.68 |
2010 | 1.581,37 | 26.306 | 4.679 | 1,283,356.12 | 999,628.00 | 2,282,984.12 |
2011 | 325,27 | 5.483 | 2.139 | 586,684.92 | 208,354.00 | 795,038.92 |
2012 | 284,96 | 4.865 | 1.559 | 427,602.52 | 184,870.00 | 612,472.52 |
2013 | 718,60 | 12.419 | 3.020 | 828,325.60 | 471,922.00 | 1,300,247.60 |
Média anual (2009-2013) | 880,29 | 14.708 | 3.135,6 | 860,032.37 | 558,904.00 | 1,418,928.77 |
Total parcial | - | 73.539 | 15.678 | 4,300,161.84 | 2,794,482.00 | 7,094,643.84 |
Total | - | 122.767 | 21.528 | 5,904,699.84 | 4,665,146.00 | 10,569,845.84 |
A média do número de internações também mostrou diferenças entre os dois períodos: no período 1, essa média representou cerca de 650 internações, enquanto no período 2 elevou-se para mais de 3.100 casos (Tabela 1).
Discussão
O presente estudo apresenta os custos diretos da dengue para o sistema de saúde ao longo de 14 anos, no estado de Rondônia. Ele inova ao discutir custos e uma possível associação entre casos de dengue e o aumento populacional como decorrência de grandes obras de infraestrutura, a exemplo da construção das UHE no Rio Madeira, instaladas dentro dos limites municipais da capital do estado, Porto Velho.
Os resultados indicaram que, no período de 2000 a 2013, foram notificados mais de 122 mil casos de dengue em Rondônia, com mais de 21 mil internações, ocasionando custos estimados de US$10.569.845,84. Tal valor corresponde apenas aos custos diretos subsidiados pelo SUS - bastante subestimados, uma vez que não consideram perdas de salários, absenteísmo, diminuição da qualidade de vida, incapacidades, além de não incluir casos subnotificados. No Brasil, estima-se que os casos subnotificados de dengue possam variar de 16,9 a 26,7 vezes o número de casos notificados.18
A principal limitação do estudo relaciona-se ao método utilizado, dependente do número de casos de dengue registrados em um sistema de vigilância passiva (Sinan). Ademais, o método de macrocusteio é menos sensível que o de microcusteio, porque não utiliza dados primários para realizar o custo da dengue. Outrossim, não foi objetivo do presente estudo valorar os custos indiretos da doença. Dessa maneira, foram desconsiderados os custos totais para os indivíduos.
Os custos diretos em serviços de saúde - e os indiretos - devidos à dengue não são obtidos facilmente, podendo variar significantemente entre estudos. Segundo Vieira Machado et al.,10 os custos diretos de internações por dengue realizadas no setor privado, em 2010, eram 280% maiores do que nos serviços públicos. Como resultado, chegou-se ao valor médio de US$740,10 por internação, com variação média de gastos diretos desde US$428,70 no setor público a US$1.003,50 no setor privado. No presente estudo, a média de gastos considerada para cada internação foi de US$273,88, com base nos valores disponibilizados para o estado de Rondônia. Essa média é mais baixa do que a apresentada em outros estudos, pois no presente trabalho não foram considerados os valores de internações de hospitais privados, tampouco os custos indiretos.10,19 Além disso, os valores repassados aos hospitais públicos costumam ser insuficientes para atender ao real custo de um indivíduo com dengue, principalmente nos casos mais graves.10,11
Em um estudo realizado no município de Goiânia, capital do estado de Goiás,19 os autores consideraram os custos diretos e indiretos dos casos de dengue, chegando a valores médios como US$291 para casos ambulatoriais e US$676 para internações. O mesmo estudo encontrou um custo médio para cada caso reportado de dengue de aproximadamente US$351, em 2005.19 Entretanto, o setor público e o setor privado costumam apresentar valores bastante distintos para casos ambulatoriais e internações. Segundo análise de microcusteio realizada em um estudo de coorte multicêntrico brasileiro, os autores mostraram que os custos diretos ambulatoriais variaram de US$31 a US$89 para o setor público, e de US$91 a US$168 para o setor privado. O custo direto das internações variou entre US$198 e US$376 para o setor público, e entre US$318 e US$906 para o setor privado, entre as regiões estudadas (dados de 2013).11
Percebe-se a diferença de valores entre os setores público e privado, o que pode levar a defasagens e prejuízos às instituições de saúde, e até comprometer a sustentabilidade do SUS. O impacto econômico nacional anual foi de US$164 milhões, da perspectiva do pagador público, mas poderia chegar a US$447 milhões (ajustando-se para a subnotificação).11
Neste estudo, também foram analisadas as diferenças entre dois períodos temporais, 2000-2008 e 2009-2013, havendo-se observado um grande aumento na incidência de casos de dengue no estado de Rondônia, principalmente em 2009 e 2010. A média dos custos de internação e atendimento ambulatorial aumentou 3,7 vezes, passando de US$386 mil anuais, no período 1, para mais de US$1,4 milhão anuais no período 2.
O período 2 iniciou-se com elevado número de casos de dengue, e posterior diminuição ao longo do tempo. Houve um grande surto de dengue em Rondônia entre 2009 e 2010.
Alguns fatores podem estar relacionados ao grande aumento dos casos de dengue em 2009 e 2010, como elevação da temperatura, falta de infraestrutura, aumento da densidade populacional, planejamento desordenado e urbanização acelerada.20 Segundo o estudo de Struchiner et al.,21 o crescimento populacional parece desempenhar um papel mais importante do que o aumento da temperatura, considerando-se o desenvolvimento de mosquitos Aedes. A urbanização aumenta substancialmente a densidade, a taxa de desenvolvimento larval e o tempo de sobrevivência do mosquito adulto.22 Isto remete o foco para os impactos negativos da urbanização e crescimento demográfico em cidades com pouca infraestrutura. Com o advento das obras do Programa de Aceleração do Crescimento (PAC) em Rondônia, centradas em Porto Velho nos anos de 2008 e 2009, o município e seus arredores sofreram um crescimento desordenado, sobrecarga dos serviços de saúde e elevado aporte populacional,8 podendo-se sugerir que esse fator possa estar associado ao incremento do número de casos de dengue.
O início da construção das UHE Jirau e Santo Antônio afetou uma ampla gama de determinantes em saúde. Analisar com mais profundidade os efeitos do crescimento populacional poderia levar a uma avaliação econômica mais transparente do processo. Por exemplo, enfatiza-se o número de empregos que a construção das UHE trouxe à região; no entanto, os efeitos do aumento desordenado da população em regiões que carecem de infraestrutura podem resultar em desfechos graves à saúde.1
O aumento das notificações e casos confirmados de dengue em Rondônia, nos anos de 2008 a 2010, também foi verificado em estudo de Lucena et al.8 Estes autores confirmam que as notificações de dengue em 2008 eram cerca de 185,6% maiores em relação a 2007, com predominância do sorotipo DENV-3, então comum na região,8 o que leva a uma hipótese: o aumento desordenado das cidades, tanto pela urbanização quanto pelos empregos gerados pelas obras de construção das UHE, pode ter atraído pessoas que não pertenciam àquela região e, portanto, não estavam imunes aos sorotipos locais circulantes de dengue.8 Esse fluxo de pessoas, não imunes a esse sorotipo, pode ter ocasionado o número elevado de notificações nos anos seguintes, com posterior queda no número de casos à medida que a população adquirisse anticorpos para aquele sorotipo. Além disso, é possível que tenha ocorrido a reintrodução dos sorotipos DENV-1 e DENV-2 em Rondônia devido ao grande crescimento dos casos de dengue em dez municípios do estado, o que também poderia ter prejudicado o controle da dengue em 2008.23
A possível associação do aumento de incidência de dengue com o início dos empreendimentos a que se refere esta pesquisa é particularmente importante, uma vez que o SUS arca com a maioria dos prejuízos em saúde. O indicativo de responsabilização dos empreendedores das UHE por contribuírem significativamente com o aumento dos casos de dengue, devido ao aumento populacional desordenado, facilitaria a criação de formas atuantes de mitigação de seus efeitos à saúde, proporcionando melhores condições de vida à população, desoneração parcial do estado e dos estabelecimentos de saúde da região. Adicionando-se o fato de que o mesmo vetor transmissor da dengue também pode transmitir os vírus Zika e chikungunya,24 é de extrema importância a análise abrangente de impactos à saúde como esses, adotando-se para tanto métodos adequados, a exemplo da avaliação de impacto à saúde (AIS) dentro do processo de licenciamento ambiental.
Os reservatórios das UHE, em si, já provocam muitos impactos ambientais: eliminam ecossistemas naturais, como também bloqueiam a migração de peixes, afetando a biodiversidade e a produção comercial. Ademais, provocam mudanças nos regimes de inundação e podem afetar os lagos de várzea e a pesca a jusante.25 Acredita-se que a construção dessas usinas tenha revertido para a região milhares de empregos, levando a uma intensa migração populacional e aumento da renda na região. Entretanto, durante as fases de construção de uma usina hidrelétrica, enquanto são empregados muitos trabalhadores nas fases iniciais, nas fases de operação de uma UHE, o número de trabalhadores necessários diminui drasticamente, chegando a menos de 10% da mão de obra inicialmente contratada, o que pode acarretar efeitos avassaladores na região caso não sejam tomadas medidas de realocação dos trabalhadores.26
No Brasil, a única análise de saúde normativa que deve ser considerada no EIA-RIMA de projetos para a Região Amazônica é o potencial malarígeno do empreendimento.7 Apesar de ser um fator relevante, tal análise é extremamente insuficiente para se obter uma AIS de processo e, provavelmente, essa negligência sobrecarrega o sistema de saúde, implicando maior ônus à população e ao governo. É conhecido que as UHE podem aumentar a proliferação de mosquitos, motivo pelo qual devem-se considerar diversos vetores para que se realizem as medidas de mitigação, não somente a análise do potencial malarígeno.
Para a emissão de licenciamentos ambientais no Brasil, é prática comum analisar impactos à saúde de forma superficial,27 havendo a necessidade de inclusão de formas mais detalhadas de análise, segundo proposto por diversos pesquisadores.5,6,28 Como não há nenhum padrão obrigatório para proceder à avaliação de impactos à saúde, seja em políticas, projetos ou programas nacionais, a metodologia da AIS, aplicada em países desenvolvidos e que, ademais, conta com um guia nacional de aplicação divulgado pelo Ministério da Saúde do Brasil,27 surge como uma possível forma estruturada de reunir a análise, o trabalho em parceria, a consulta pública e a evidência disponível para a melhor tomada de decisão.27,29
Incentivar o diálogo entre as diversas partes interessadas, a população e os empreendedores e investidores dos diferentes setores econômicos do país ou da região, pode resultar na união de esforços para a implantação de políticas de mitigação eficientes. Nesse cenário, associar valores econômicos aos desfechos com a saúde, como uma estimativa do custo total da doença ou da disponibilidade de se pagar por uma redução desses efeitos, poderia representar uma estratégia de argumentação e fomento à inclusão da Saúde nas discussões e tomadas de decisão sobre esse tipo de empreendimento.30 Por ser um problema de complexa resolução, recomenda-se o trabalho em conjunto, entre empreendedores e governo federal, levando-se em consideração ferramentas adequadas de AIS, de forma a serem intensificadas as ações de prevenção a infecções na população, como a dengue.