Introdução
O Programa Saúde da Família (PSF), desenvolvido a partir do Programa de Agentes Comunitários de Saúde (PACS), surgiu no ano de 1994 para modificar a atenção à saúde e reorientar o modelo assistencial, com enfoque na promoção da saúde e prevenção de doenças, de forma a reorganizar os serviços segundo os princípios de universalidade, integralidade e equidade do Sistema Único de Saúde (SUS).1,2 Em 2003, teve início o Programa de Expansão e Consolidação da Saúde da Família (PROESF), e em 2006, o PSF passou a se chamar Estratégia Saúde da Família (ESF). Desde então essa estratégia tem alcançado elevada cobertura populacional no atendimento integral da população,3,4 e promovido redução das iniquidades no acesso aos serviços de saúde.5
A ESF tem como base de sua atuação a territorialização das equipes de Saúde da Família. Ela reorganiza, direciona a expansão, a qualificação e consolidação da Atenção Básica (AB) à saúde de acordo com os princípios do SUS,6 além de ampliar a resolutividade na assistência e recuperação das condições de saúde de indivíduos e coletivos mediante ações voltadas à promoção da saúde, prevenção de doenças e seus agravos.6,7
Maiores coberturas da ESF têm-se associado a melhorias nas condições de saúde da população, como a queda da mortalidade infantil,4 maior cobertura vacinal, redução da desnutrição e aumento nas consultas de pré-natal.8,9 Também há evidências de que o aumento da cobertura da estratégia contribui para a redução das hospitalizações por condições sensíveis à Atenção Primária e mortalidade cardiovascular.10-12
Um estudo de verificação das possíveis diferenças entre o modelo de atenção da ESF e o modelo tradicional observou que ações como a promoção do aleitamento materno, a puericultura, o manejo dos agravos infantis mais prevalentes, o diagnóstico e tratamento de algumas enfermidades e a utilização de protocolos para orientação de atividades por parte dos profissionais foram mais frequentes em unidades básicas de saúde (UBS) que contavam com o modelo de ESF, nas regiões Sul e Nordeste do país.3 Outro estudo similar, realizado nessas mesmas regiões, encontrou maior prevalência de aconselhamento educativo para a prática de atividade física entre adultos e idosos cobertos por UBS com ESF.13
O reconhecimento da ESF para a saúde da população, especialmente nas regiões mais carentes do país,1,3,4,6,14 indica a importância do monitoramento da cobertura dessa estratégia em todo país, regiões e Unidades da Federação (UFs). No entanto, investigações sob essa perspectiva e análise estatística de tendência temporal ainda são escassas na literatura, mesmo quando considerada a facilidade de acesso às informações disponíveis publicamente.
O objetivo do presente estudo foi analisar a tendência temporal na cobertura da ESF no Brasil, suas grandes regiões geográficas e UFs, de 2006 a 2016.
Métodos
Foi realizado estudo ecológico do indicador de cobertura da Estratégia Saúde da Família, mediante análise de série temporal sobre o período de 2006 a 2016.
Foram utilizados dados do Sistema de Informação da Atenção Básica (SIAB) e do Sistema de Informação em Saúde para a Atenção Básica (SISAB) - para as equipes que já implantaram a estratégia e-SUS Atenção Básica (e-SUS AB). Esses sistemas são atualizados mensalmente, na plataforma eletrônica do Departamento de Atenção Básica da Secretaria de Atenção à Saúde, do Ministério da Saúde (DAB/SAS/MS).15 A seleção do ano de início de avaliação da série (2006) teve por base a mudança na concepção do Programa, para Estratégia Saúde da Família.
O indicador utilizado foi a cobertura populacional da ESF, calculada para o Brasil, suas regiões e UFs, obtida a partir do seguinte cálculo:
Onde:
3.450 = número médio de pessoas acompanhadas por uma equipe de ESF.16
Trata-se de um número de referência efetiva, mesmo quando a referência normativa para todo o período tenha sido de 3.000 pessoas por equipe.17,18 Para cada ano do período de 2006 a 2016, foi calculada a média das coberturas de ESF entre os meses de janeiro e dezembro.
Foram descritas as coberturas de ESF de acordo com as UFs, regiões e o conjunto do país, nos anos de 2006 a 2016. Para a análise de tendência, utilizou-se a regressão de Prais-Winsten, considerando-se a autocorrelação serial,19 ou seja, a dependência de uma medida seriada com seus próprios valores em momentos anteriores. A variação anual da cobertura de ESF e seus respectivos intervalos de confiança de 95% (IC95%) foram calculados segundo a proposta de Antunes,19 a partir da seguinte fórmula:
Onde:
b = logaritmo de base natural resultante da regressão de Prais-Winsten.
Adotou-se nível de significância de 5%. Valores p não significativos (≥0,05) foram interpretados como tendência de estabilidade (aceitando-se a hipótese nula de que as coberturas de ESF ao longo dos anos não se modificaram). Já os valores p significativos (<0,05) resultaram em classificação de tendência de crescimento (variação anual positiva) e tendência de diminuição (variação anual negativa).
Foram calculadas as razões e as diferenças, em pontos percentuais (p.p), das coberturas de 2016 em relação a 2006. Ademais, as coberturas das UFs referentes aos anos de 2006 e 2016, especificamente, foram categorizadas em três grupos: 0 a 49,9%; 50 a 74,9%; e 75 a 100%.
Os dados foram armazenados em arquivos .csv no programa Microsoft® Office Excel® 2010, posteriormente tabulados e analisados pelo programa Stata 12.1 (College Station, Texas, Estados Unidos).
A análise foi realizada exclusivamente com base em dados agregados, de fonte secundária e de acesso público, não se caracterizando como um estudo com seres humanos e, portanto, foi dispensado de apreciação por Comitê de Ética em Pesquisa.
Resultados
No Brasil, as coberturas de ESF em 2006 e 2016 foram de 45,3% e 64,0%, respectivamente. Houve um aumento de 18,7 p.p. no período, revelando uma tendência crescente da cobertura no país: variação anual de 8,4% (IC95% 7,4;9,3) (Tabela 1).
Regiões e Unidades da Federação | 2006 | 2007 | 2008 | 2009 | 2010 | 2011 | 2012 | 2013 | 2014 | 2015 | 2016 | Variação anualb % (IC95%)c | Valor-pd | Tendência |
---|---|---|---|---|---|---|---|---|---|---|---|---|---|---|
Norte | 40,7 | 42,0 | 45,7 | 49,2 | 51,4 | 51,6 | 51,1 | 52,0 | 57,3 | 61,9 | 63,4 | 10,3 (7,5;13,1) | <0,001 | Crescente |
Acre | 59,9 | 58,0 | 59,4 | 63,6 | 61,1 | 60,6 | 66,3 | 69,8 | 73,8 | 77,2 | 79,7 | 7,4 (4,4;10,3) | <0,001 | Crescente |
Amapá | 54,4 | 57,0 | 61,7 | 68,9 | 73,8 | 69,8 | 58,2 | 56,9 | 68,1 | 70,8 | 73,4 | 5,5 (-1,5;13,0) | 0,116 | Estável |
Amazonas | 43,2 | 45,5 | 48,5 | 49,9 | 51,1 | 48,6 | 47,7 | 48,7 | 54,6 | 59,4 | 58,4 | 6,5 (2,8;10,5) | 0,004 | Crescente |
Pará | 28,8 | 30,4 | 34,6 | 38,1 | 40,5 | 41,7 | 42,3 | 43,3 | 47,0 | 52,3 | 54,5 | 15,3 (11,9;18,8) | <0,001 | Crescente |
Rondônia | 36,4 | 38,8 | 45,7 | 50,3 | 55,5 | 58,5 | 58,8 | 60,9 | 66,5 | 73,2 | 76,6 | 18,3 (14,1;22,6) | <0,001 | Crescente |
Roraima | 72,5 | 67,7 | 69,3 | 72,1 | 69,1 | 67,2 | 64,8 | 56,1 | 72,4 | 72,7 | 76,2 | 0,3 (-4,4;5,3) | 0,828 | Estável |
Tocantins | 77,0 | 76,0 | 76,5 | 85,2 | 88,4 | 88,4 | 82,8 | 84,8 | 91,7 | 92,9 | 93,1 | 4,7 (2,3;7,2) | 0,002 | Crescente |
Nordeste | 65,8 | 66,7 | 69,7 | 69,7 | 70,0 | 72,0 | 72,5 | 73,8 | 78,1 | 79,3 | 80,0 | 4,6 (3,8;5,5) | <0,001 | Crescente |
Alagoas | 68,7 | 69,2 | 70,1 | 70,6 | 72,1 | 71,8 | 72,4 | 73,2 | 75,2 | 75,7 | 76,5 | 2,5 (2,2;2,9) | <0,001 | Crescente |
Bahia | 49,8 | 50,1 | 53,6 | 53,8 | 57,7 | 60,4 | 62,0 | 63,7 | 68,6 | 70,4 | 72,4 | 9,7 (9,2;10,2) | <0,001 | Crescente |
Ceará | 58,6 | 65,0 | 66,5 | 66,6 | 69,0 | 70,1 | 69,4 | 70,8 | 78,1 | 80,7 | 81,0 | 6,8 (4,9;8,7) | <0,001 | Crescente |
Maranhão | 73,5 | 72,7 | 77,4 | 79,0 | 80,7 | 79,1 | 76,6 | 77,4 | 81,9 | 83,2 | 80,2 | 2,2 (0,5;4,0) | 0,018 | Crescente |
Paraíba | 91,1 | 91,9 | 94,5 | 94,7 | 95,3 | 93,2 | 92,5 | 92,9 | 93,8 | 91,9 | 94,2 | 0,3 (-0,6;1,2) | 0,497 | Estável |
Pernambuco | 62,4 | 62,0 | 66,5 | 67,1 | 68,0 | 68,3 | 68,3 | 70,0 | 74,1 | 75,8 | 76,9 | 4,9 (3,7;6,0) | <0,001 | Crescente |
Piauí | 95,2 | 94,8 | 96,0 | 96,9 | 97,4 | 96,7 | 94,2 | 96,1 | 96,9 | 97,0 | 98,7 | 0,6 (-0,1;1,3) | 0,085 | Estável |
Rio Grande do Norte | 79,1 | 76,4 | 79,4 | 77,9 | 77,4 | 76,2 | 74,9 | 78,6 | 82,1 | 82,1 | 82,0 | 1,1 (-0,8;2,9) | 0,218 | Estável |
Sergipe | 82,3 | 82,7 | 83,2 | 85,2 | 86,2 | 85,1 | 84,0 | 83,4 | 89,1 | 87,8 | 87,8 | 1,5 (0,6;2,4) | 0,005 | Crescente |
Sudeste | 33,3 | 33,9 | 36,0 | 37,3 | 39,1 | 41,0 | 43,6 | 44,5 | 48,3 | 51,3 | 53,1 | 11,8 (11,0;12,6) | <0,001 | Crescente |
Espírito Santo | 45,4 | 44,5 | 47,5 | 48,9 | 51,0 | 52,1 | 52,3 | 53,5 | 58,4 | 60,7 | 60,3 | 7,6 (6,4;8,8) | <0,001 | Crescente |
Minas Gerais | 57,4 | 58,6 | 61,6 | 63,8 | 66,7 | 68,8 | 70,6 | 70,9 | 75,4 | 78,2 | 79,1 | 7,9 (7,2;8,6) | <0,001 | Crescente |
Rio de Janeiro | 27,9 | 28,0 | 30,0 | 30,3 | 32,3 | 37,1 | 42,9 | 44,8 | 47,1 | 48,9 | 52,0 | 16,7 (12,9; 20,7) | <0,001 | Crescente |
São Paulo | 22,8 | 23,5 | 25,1 | 26,1 | 27,3 | 28,3 | 30,4 | 31,0 | 35,0 | 38,7 | 40,7 | 14,2 (11,6;16,9) | <0,001 | Crescente |
Sul | 44,1 | 44,4 | 46,5 | 48,2 | 49,8 | 51,0 | 52,9 | 55,3 | 60,1 | 64,6 | 66,5 | 10,1 (8,0;12,2) | <0,001 | Crescente |
Paraná | 48,2 | 48,1 | 50,0 | 51,6 | 53,5 | 55,0 | 56,5 | 58,5 | 63,5 | 66,8 | 67,4 | 8,6 (7,1; 10,1) | <0,001 | Crescente |
Rio Grande do Sul | 29,5 | 30,3 | 32,4 | 33,9 | 35,5 | 36,3 | 38,8 | 41,3 | 47,0 | 53,5 | 57,2 | 16,4 (12,1;20,8) | <0,001 | Crescente |
Santa Catarina | 64,1 | 64,1 | 66,3 | 68,1 | 69,2 | 69,9 | 71,0 | 73,6 | 76,8 | 79,8 | 80,4 | 5,6 (4,6;6,6) | <0,001 | Crescente |
Centro-Oeste | 44,8 | 44,8 | 47,4 | 49,0 | 51,9 | 52,9 | 53,7 | 55,5 | 58,6 | 60,2 | 60,9 | 7,9 (7,2;8,7) | <0,001 | Crescente |
Distrito Federal | 6,9 | 5,8 | 6,0 | 10,1 | 13,6 | 15,4 | 16,4 | 23,7 | 28,8 | 31,1 | 31,1 | 53,8 (40,6;68,2) | <0,001 | Crescente |
Goiás | 55,1 | 54,6 | 56,8 | 56,9 | 59,7 | 61,2 | 62,6 | 63,0 | 65,4 | 66,6 | 67,1 | 5,4 (4,9;5,8) | <0,001 | Crescente |
Mato Grosso | 53,0 | 52,3 | 56,3 | 60,2 | 63,3 | 62,7 | 61,2 | 61,0 | 63,8 | 65,3 | 66,7 | 5,3 (2,6;8,1) | 0,001 | Crescente |
Mato Grosso do Sul | 47,6 | 50,6 | 54,8 | 57,5 | 59,8 | 60,3 | 62,1 | 63,9 | 66,8 | 68,7 | 69,7 | 8,9 (6,9;11,0) | <0,001 | Crescente |
Brasil | 45,3 | 46,0 | 48,5 | 49,8 | 51,8 | 53,0 | 54,3 | 55,6 | 59,8 | 62,5 | 64,0 | 8,4 (7,4;9,3) | <0,001 | Crescente |
a) Os valores das coberturas de cada ano foram obtidos do cálculo da média de cobertura entre os meses de janeiro e dezembro.
b) Variação anual em % e seus IC95% foram calculados pela seguinte fórmula: TIA= (-1+[10b])*100, em que b é o logaritmo de base natural resultante da regressão de Prais-Winsten.
c) IC95%: intervalo de confiança de 95%.
d) Valor-p da regressão de Prais-Winsten.
As cinco regiões do Brasil mostraram uma tendência crescente na cobertura de ESF. Norte (22,7 p.p.), Sul (22,4 p.p.) e Sudeste (19,8 p.p.) apresentaram maior aumento da cobertura em 2016, relativamente a 2006. A maioria das UFs apresentou tendência crescente na cobertura de ESF, com exceção de Roraima, Amapá, Piauí, Rio Grande do Norte e Paraíba, que apresentaram estabilidade. O Sudeste foi a região que apresentou maior variação anual (11,8%). Entre as UFs, destacaram-se, com maiores variações anuais, nesta ordem, o Distrito Federal (53,8%), Rondônia (18,3%), Rio de Janeiro (16,7%) e Rio Grande do Sul (16,4%) (Tabela 1).
A Figura 1 mostra as razões entre as coberturas de 2016 e 2006 nas UFs. Rondônia, Pará, Rio de Janeiro e Rio Grande do Sul apresentaram uma cobertura de ESF em 2016, aproximadamente, duas vezes maior em relação a 2006; o Distrito Federal apresentou uma cobertura 4,5 vezes maior.
a) Cobertura em 2016 - cobertura em 2006, em pontos percentuais (p.p.).
b) Cobertura em 2016/cobertura em 2006.
Nota: para as diferenças relativas, observar o eixo y da direita.
No ano de 2006, a cobertura da ESF ainda era muito incipiente na maior parte do país. Apenas os estados do Tocantins, Piauí, Rio Grande do Norte, Paraíba e Sergipe tiveram coberturas entre 75 e 100%. Em 2016 o cenário foi outro, restando apenas o estado de São Paulo e o Distrito Federal com cobertura da ESF inferior a 50%; todos os demais haviam atingido coberturas superiores, a maioria (n=14) entre 75 e 100% (Figura 2).
Discussão
Os achados mostraram uma tendência crescente da cobertura da ESF no Brasil, suas macrorregiões e maioria das UFs. Observou-se um aumento na cobertura do país de cerca de 20 p.p.; ou seja, em 2006, cerca de 84 milhões de pessoas eram cobertas pela ESF, enquanto em 2016 eram aproximadamente 125 milhões. As regiões que exibiram maior crescimento da cobertura foram Norte, Sudeste e Sul, onde mais da metade das UFs apresentavam cobertura maior ou igual a 75% em 2016.
Esse aumento na cobertura da estratégia é resultado dos esforços liderados pelo Ministério da Saúde - dentro do respeito à autonomia local - para cada município aderir espontaneamente à ESF, sua expansão e consolidação. Iniciativas e investimentos federais para melhoria da rede de Atenção Básica foram realizados, a exemplo do Programa Nacional de Melhoria do Acesso e da Qualidade da Atenção Básica (PMAQ-AB),20 Programa de Requalificação das Unidades Básicas de Saúde,21 Programas de Valorização da Atenção Básica22 e Programa Mais Médicos.23
Todas as UFs apresentaram cobertura maior em 2016, na comparação com 2006. Contudo, nem todas apresentaram uma tendência de crescimento dessa cobertura. Roraima, Amapá, Piauí, Rio Grande do Norte e Paraíba mostraram estabilidade, possivelmente devida às oscilações nas coberturas ano a ano, não apresentando uma progressão de aumento no decorrer do tempo. É mister destacar que nenhuma das UFs, regiões e o Brasil como um todo apresentaram tendência decrescente na cobertura da Saúde da Família. O Piauí e a Paraíba, por exemplo, apresentaram coberturas em torno de 90% desde 2006, tornando-se mais difícil ampliar a cobertura da ESF nesses estados. Eis um importante achado do presente estudo: os esforços despendidos desde a implantação da estratégia garantiram, ao menos, que houvesse melhoria nas coberturas em todas as regiões do país, sem retrocessos com o passar dos anos.
Embora tenha havido um aumento nas coberturas da ESF em todas as UFs, regiões e país, evidenciam-se disparidades em sua progressão, possivelmente em função dos diferentes processos de gestão dos municípios e das UFs, dotados de autonomia para definir prioridades na utilização dos recursos destinados à Saúde, podendo priorizar ou não investimentos na Atenção Básica.6
Existem locais com coberturas baixas, onde as UBS tradicionais ainda são o principal modelo de atenção. A região Sudeste destacou-se com a menor cobertura de ESF em 2016, particularmente São Paulo. Este estado do Sudeste, e o Distrito Federal no Centro-Oeste, exemplos dignos desta nota, apresentaram menos da metade da população coberta pela ESF. Em contrapartida, no mesmo ano de 2016, oito a cada dez pessoas residentes no Nordeste estavam cobertas pela ESF; estudos3,24,25 têm demonstrado consolidação da ESF nessa região, resultado do pioneirismo de sua implantação.3,24,25
A opção federal por um modelo de implantação e gestão da Política Nacional de Atenção Básica (PNAB), baseado na indução por financiamento da oferta (incentivos financeiros e transferências federais), talvez ajude a explicar, de forma mais ampla, a maior adesão ou não à ESF pelas UFs. Entes federados cujas transferências da União são relativamente mais importantes na composição dos seus orçamentos aderem mais. O contrário também é observado, na menor adesão das UFs mais ricas, estas menos dependentes, orçamentariamente, de transferências de recursos federais.
Há também, entre outras, a possibilidade de atuação de forças envolvidas na reprodução das práticas do complexo médico-industrial da Saúde das regiões, UFs e municípios economicamente mais ricos, nos maiores investimentos em serviços especializados e na Atenção Terciária,26 e, por conseguinte, na presença de um contingente maior de força de trabalho especializada, contrária ou, no mínimo, não interessada na expansão da ESF e na mudança do modelo de atenção.
Dificilmente, um fator isolado seria capaz de explicar a situação de cada região, UFs ou municípios, tendo em vista sua particular complexidade histórica, política, econômica e social.
Os achados aqui apresentados foram ao encontro de um estudo sobre dados da Pesquisa Nacional de Saúde (PNS) de 2013,24 que investigou a cobertura populacional de ESF por meio de autorrelato. Mesmo considerando que as coberturas estimadas por autorrelato sejam, em geral, inferiores às disponibilizadas pelo Departamento de Atenção Básica/Ministério da Saúde, ficou demonstrado pelo referido estudo que, entre as UFs, aquelas com maiores coberturas foram Piauí, Tocantins e Paraíba, e com menor cobertura, o Distrito Federal.24
O mesmo estudo24 revelou que cerca de um quinto da população brasileira, coberta pela ESF, nunca havia recebido a visita de um membro da equipe de Saúde da Família, e menos da metade recebera essa visita mensalmente. Talvez muitas pessoas desconheçam fazer parte da área de abrangência de uma UBS com ESF, o que poderia ser atribuído a falhas no cadastramento e acompanhamento de suas famílias. Em muitos casos, há falta de profissionais de saúde e de equipe completa, fazendo com que as equipes fiquem responsáveis por mais de 4.000 pessoas - número máximo recomendado pelo Ministério da Saúde.1,6
Alguns autores3,4,8,27 apontam para uma ampliação da rede da Atenção Básica, aumento do acesso e, consequentemente, maior equidade na oferta desses serviços e melhora de alguns indicadores de saúde como, por exemplo, a mortalidade infantil, as internações por condições sensíveis à Atenção Básica e o acompanhamento pré-natal. O modelo de atenção da ESF tem apresentado melhores desfechos em saúde quando comparado ao modelo tradicional,3,8 provavelmente por ser uma estratégia com o propósito de qualificar o processo de trabalho, aprofundar princípios e diretrizes da Atenção Básica e ampliar a resolutividade de suas ações.1
Por se tratar de uma pesquisa que utilizou dados secundários, algumas limitações devem ser consideradas. No decorrer dos anos, os sistemas de informações em saúde do Brasil melhoraram, tornaram-se mais confiáveis;28 entretanto, como se trata de um estudo de tendência que utilizou dados de 2006 a 2016, é possível que os registros referentes a algumas coberturas, especialmente no início do período, não sejam tão precisos. Outrossim, o preenchimento adequado dos dados nos sistemas pode variar de acordo com cada região e UFs, dificultando sua comparabilidade. Outro ponto a ressaltar encontra-se no fato de o estudo ter analisado as coberturas, e não o desempenho ou qualidade da ESF. Mesmo que algumas áreas possuam altas coberturas, isto não significa que a estratégia esteja a funcionar de maneira ideal. Apesar das limitações apontadas, acredita-se que a utilização desses dados não tenha causado um importante viés nas estimativas das tendências, tornando os achados relevantes para a descrição da situação temporal da ESF no país.
Considerando-se os benefícios alcançados, os esforços pela expansão, melhoria e aprimoramento da ESF devem ser mantidos. As 13 UFs - Amazonas, Pará, Amapá, Bahia, Espírito Santo, Rio de Janeiro, São Paulo, Paraná, Rio Grande do Sul, Mato Grosso do Sul, Mato Grosso, Goiás e o Distrito Federal - que ainda apresentam coberturas inferiores a 75%, e especialmente São Paulo e o Distrito Federal, ambas com menos da metade de sua população atendida pela Estratégia Saúde da Família, devem ser priorizadas nas ações pelo aumento dessa cobertura. Novos estudos que busquem identificar os motivos para as diferentes coberturas evidenciadas e os fatores contributivos do avanço da estratégia podem ser úteis, no apoio à tomada de decisão pelos gestores em prol da expansão da Estratégia Saúde da Família no território brasileiro.