Introdução
No início da assistência em HIV/aids no Brasil, na década de 1990, os processos de trabalho foram organizados por programas em serviços de assistência especializada.1 Nesse modelo, a assistência clínica é operada de acordo com o plano propositivo do programa, configurando-se como ação ou prática programática.1
Desde o princípio, o modelo de assistência a pessoas vivendo com HIV/aids implantado no Brasil foi pautado na defesa do direito à cidadania, com a garantia do acesso universal ao tratamento.2 Coerentemente com essa política assistencial, a organização dos serviços seguiu as diretrizes do Sistema Único de Saúde (SUS), com ênfase na integralidade das ações e na interação dos pacientes com os profissionais da saúde.2
A condição de cronicidade do HIV, decorrente dos avanços no cuidado e no tratamento com antirretrovirais, fez com que o modelo centrado apenas nos serviços especializados se mostrasse insuficiente.3 Para adequar o cuidado das pessoas com HIV à nova realidade epidemiológica da doença, o Ministério da Saúde incorporou a Atenção Primária à Saúde (APS) como parte dessa rede de serviços integrada e articulada no cuidado prestado aos portadores do HIV, propiciando-lhes maior acesso aos serviços de saúde.3
O Brasil foi o primeiro país em desenvolvimento - e o terceiro do mundo - a recomendar, em 2013, para todas as pessoas que vivem com HIV, o tratamento como prevenção, iniciando-se pela terapia antirretroviral independentemente da contagem de linfócitos T-CD4. Esta medida significou mais um passo inovador em resposta à epidemia de HIV/aids.4 Implementar as novas recomendações, efetivamente, implica garantir testes e o tratamento da infecção prontamente disponíveis, bem como sua continuidade, mantendo os indivíduos sob cuidado e tratamento.5
O cuidado em saúde depende de recursos estruturais, contemplados por boas condições de trabalho e disponibilidade dos recursos, além da organização das ações gerenciais e assistenciais.6 Independentemente das características locais e institucionais, os serviços devem dispor, minimamente, das condições estruturais necessárias para atingir um grau aceitável de qualidade.7
A complexidade de lidar com a pessoa HIV-positiva implica adotar diferentes estratégias de promoção, prevenção e assistência, incorporar novas tecnologias, além do acompanhamento e cuidado contínuo. Para a atenção à saúde, faz-se necessário avaliar se os serviços encarregados dessas atividades estão organizados de forma a atender aos requisitos esperados de qualidade na atenção às pessoas que vivem com HIV.2
Há escassez de publicações sobre a qualidade dos serviços do SUS para pessoas com HIV com dados desagregados em âmbito regional ou estadual. No que se refere ao estado de Mato Grosso, encontrou-se apenas uma pesquisa sobre o mesmo objeto,8 todavia não publicada.
Este estudo teve por objetivo avaliar a disponibilidade de recursos dos serviços ambulatoriais do SUS destinados a pessoas vivendo com HIV no estado de Mato Grosso, Brasil.
Métodos
Trata-se de uma avaliação de serviços de saúde, de delineamento transversal, conduzida no estado do Mato Grosso em 2016.
No ano de 2016, totalizavam 15 os serviços componentes da rede de assistência em HIV no estado, distinguindo-se quatro configurações regionais: cinco regiões de saúde sem possuir sequer um serviço (Água Boa, Colíder, Pontes e Lacerda, Peixoto de Azevedo e São Félix do Araguaia); outras com um serviço por região (Alta Floresta, Barra do Garças, Cáceres, Confresa, Diamantino, Juara, Juína, Rondonópolis e Tangará da Serra); presença de dois serviços na mesma região (Sinop e Sorriso); e quatro serviços na região da Baixada Cuiabana.
Foram convidados a participar do estudo os 15 serviços especializados na assistência de HIV/aids pelo SUS, confirmados pela Secretaria de Estado de Saúde de Mato Grosso (SES/MT) e que contemplaram o seguinte critério de inclusão: manter entre suas atividades a prescrição de antirretrovirais e o seguimento dessas pessoas na própria unidade. Serviços de testagem e aconselhamento em HIV ou de internação por HIV/aids não foram elegíveis para o estudo.
Utilizaram-se dados do Sistema de Avaliação da Qualidade dos Serviços que Atendem HIV/aids, conhecido como Sistema Qualiaids,2,6 um sistema de avaliação, monitoramento e incremento da qualidade dos serviços ambulatoriais prestados pelo SUS no atendimento a pessoas que vivem com HIV. A primeira avaliação do sistema aconteceu entre os anos de 2001 e 2002, em 322 serviços de sete estados brasileiros.6 Em 2007 e 2010, a avaliação Qualiaids abrangeu todas as Unidades da Federação (UFs),2 inclusive Mato Grosso.8 No ano de 2016, realizou-se nova avaliação em Mato Grosso - correspondente a este estudo -, além de uma pesquisa9 nos estados de São Paulo e Santa Catarina. Em 2017, o Qualiaids voltou a ser aplicado nas demais UFs (http://www.qualiaids.fm.usp.br/).
Os dados que serviram de base a este trabalho foram coletados mediante aplicação de questionário estruturado e validado, constituído de questões de múltipla escolha organizadas em três dimensões: disponibilidade de recursos; gerência técnica do trabalho; organização do processo de assistência. Os pesquisadores se utilizaram de um ‘Caderno de Recomendações de Boas Práticas’ elaborado para servir de referência ao questionário10 como um guia de boas práticas para os serviços, apresentando as normas, os critérios, os indicadores e as variáveis componentes do constructo da qualidade na atenção ambulatorial em HIV/aids. Desenvolvido pela Equipe de Pesquisa Qualiaids, coordenada por Nemes,2 profissional vinculada ao Departamento de Medicina Preventiva da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo, o mesmo caderno de recomendações é adotado desde 2008 pelo Ministério da Saúde e seu Departamento de Vigilância, Prevenção e Controle das Infecções Sexualmente Transmissíveis, do HIV/Aids e das Hepatites Virais, como referência para o atendimento ambulatorial em HIV/aids pelo SUS.2,10
A aplicação da avaliação esteve sob responsabilidade da Coordenação Estadual do Programa de DST, Aids e Hepatites Virais da SES/MT, em parceria com o núcleo de pesquisa de avaliação de serviços de saúde do SUS estadual, que tem desenvolvido projetos de avaliação Qualiaids junto ao Instituto de Saúde Coletiva da Universidade Federal de Mato Grosso.
A coleta dos dados foi realizada no mês de agosto de 2016. O questionário Qualiaids foi apresentado no formato para web para ser autorrespondido pelo gerente/coordenador do serviço ou técnico por ele designado, uma vez capacitados sobre os procedimentos metodológicos e a importância da avaliação via webconferência com a coordenadora nacional do Qualiaids e equipe local.
O questionário11 Qualiaids é composto por 81 questões, das quais oito são descritivas e não pontuam, ao passo que as demais 73 contêm 76 indicadores pontuados, classificados segundo um padrão de referência de valores de 0 a 2: inaceitável (0); aceitável (1); e esperado (2), sendo este último o padrão preconizado.6,12
O estudo avaliou a dimensão ‘disponibilidade de recursos’,11 que contempla 21 indicadores pontuados distribuídos em quatro domínios: estrutura física (dois indicadores); disponibilidade de profissionais da equipe mínima (cinco indicadores); medicamentos, insumos, exames e referência (13 indicadores); e capacitação e experiência dos profissionais (um indicador). Também foram avaliadas as respostas a três questões descritivas. Os indicadores (variáveis), segundo cada um dos quatro domínios, são descritos a seguir.
1) Estrutura física
- disponibilidade de salas para atendimento; e
- acessibilidade.
2) Disponibilidade de profissionais da equipe mínima
- hora-médico/número de indivíduos;
- número de assistentes sociais/número de indivíduos;
- número de auxiliares ou técnicos de enfermagem/número de indivíduos;
- número de enfermeiros/número de indivíduos; e
- número de psicólogos/número de indivíduos.
3) Medicamentos, insumos, exames e referências
- medicamentos antirretrovirais;
- medicamentos para distúrbios metabólicos;
- medicamentos para profilaxia primária de infecções oportunistas - não micobacterianas;
- medicamentos para profilaxia secundária de infecções oportunistas - não micobacterianas;
- medicamentos para infecções micobacterianas;
- medicamentos para infecções sexualmente transmissíveis (IST);
- medicamentos para tratamento das hepatites B e C;
- disponibilidade de insumos;
- trabalho em rede - modalidades assistenciais;
- coleta de exames;
- trabalho em rede - exames de avaliação inicial e seguimento;
- trabalho em rede - exames para diagnóstico e seguimento de intercorrências e comorbidades; e
- trabalho em rede - médicos especialistas e outros profissionais.
4) Capacitação e experiência dos profissionais
- profissionais responsáveis pelo acondicionamento dos resíduos contaminados.
São variáveis compostas de múltiplas categorias, e admitem como resposta uma única ou várias alternativas por variável.
O valor-padrão esperado para a disponibilidade de profissionais é de até 150 indivíduos para cada 20 horas semanais médicas, até 180 indivíduos para auxiliar ou técnico de enfermagem, 230 indivíduos para as categorias de enfermeiro e de psicólogo, e 280 para o assistente social.11
No que se refere à disponibilidade de medicamentos, correspondem ao padrão de referência a seguir.
a) falta de medicamentos até sete dias para:
- antirretrovirais,
- micobactérias,
- IST e
- profilaxia primária de infecções oportunistas não bacterianas;
b) falta de medicamentos por menos de 48 horas para:
c) disponibilidade permanente de medicamentos para as hepatites B e C.11
Os resultados dos exames, por sua vez, devem ser disponibilizados em até sete dias para:
prova turberculínica;
colesterol total e frações, triglicérides;
contagem de linfócitos T-CD4;
citopatologia de colo de útero (Papanicolau); e
carga viral para HIV.
Os resultados devem estar disponíveis em até até 15 dias para:
baciloscopia de escarro;
teste não treponêmico (VDRL ou RPR);
raios X de tórax;
parasitológico de fezes;
glicemia;
hemograma;
sorologia para as hepatites B e C;
avaliação hepática e renal;
sorologia para toxoplasmose; e
teste molecular de tuberculose (GeneXpert).
Os resultados para cultura de escarro devem estar prontos em até 30 dias.11
A análise descritiva foi realizada com auxilio do programa Microsoft versão 2010, na forma de frequências das respostas por serviço considerando-se os respectivos padrões de respostas; os resultados, portanto, foram apresentados nas proporções dos serviços que obtiveram ou não o padrão esperado (pontuação 2) por indicador avaliado. A versão do questionário Qualiaids pontuado, contendo todos os valores encontrados para cada resposta, foi utilizada para orientar a análise dos dados.
O estudo foi submetido e aprovado pela Comissão de Ética em Pesquisa do Hospital Universitário Júlio Müller em 21 de fevereiro de 2016 (Processo nº 527292/CEP-HUJM/2015; CAAE 52729215.6.0000.5541).
Os profissionais entrevistados receberam esclarecimentos prévios sobre os procedimentos metodológicos - via webconferência ou e-mail -, condição para decidirem participar do estudo. Cada um que concordou responder ao questionário Qualiaids assinou um Termo de Consentimento Livre e Esclarecido, digitalizado e encaminhado via e-mail após sua assinatura.
Resultados
Todos os 15 serviços existentes foram incluídos na avaliação por contemplarem o percentual mínimo exigido de respostas ao questionário (90%), segundo o padrão utilizado pela equipe Qualiaids nas avaliações de 2007 e 2010.12 Treze serviços eram de gestão municipal, constituídos como ambulatório especializado em HIV/aids, infecções sexualmente transmissíveis e hepatites virais. Os demais serviços compreenderam um ambulatório de assistência em várias especialidades, de gestão estadual, e o outro, um ambulatório de hospital vinculado à universidade pública, de gestão federal (Tabela 1).
Característica | N |
---|---|
Tipo de serviço | |
Serviço de assistência especializada | 13 |
Ambulatório de várias especialidades | 1 |
Ambulatório vinculado a hospital | 1 |
Tamanho populacional do município | |
>400 mil habitantes | 3 |
100 a 400 mil habitantes | 3 |
<100 mil habitantes | 9 |
Porte do serviço | |
>500 indivíduos - grande porte | 7 |
101 a 500 indivíduos - médio porte | 6 |
<100 indivíduos - pequeno porte | 2 |
A maior parte dos serviços (9/15) estava localizada em municípios com população menor que 100 mil habitantes, três se encontravam em municípios entre 100 e 400 mil habitantes e os outros três nos municípios de grande porte populacional (>400 mil habitantes). A maioria dos serviços era de médio (6/15) ou grande porte (7/15). Seis serviços contemplaram todos os tipos de sala necessários ao atendimento das pessoas que vivem com HIV/aids e um deles contava com acessibilidade adequada para pessoas com necessidades especiais.
Em três serviços, o acondicionamento dos resíduos contaminados era realizado por profissional de nível médio, próprio do serviço ou terceirizado, devidamente capacitado e submetido a supervisão de um profissional de nível superior. A coleta de exames no próprio serviço era realizada em quatro serviços; os demais encaminhavam a maioria ou todos os exames para o laboratório de referência no estado (Tabela 2).
Domínios e indicadores | Serviços no padrão esperado (N) |
---|---|
Estrutura física | |
Consultório médico + sala de enfermagem + sala para atendimento individual de outros profissionais de nível superior + sala para atendimento em grupo | 6 |
Portas e corredores largos, rampas, banheiros e rotas acessíveis, piso regular e antiderrapante, sinalização visual e tátil | 1 |
Capacitação e experiência dos profissionais | |
Profissional responsável pelo acondicionamento dos resíduos contaminados de nível médio - do serviço ou terceirizado -, capacitado, sob a supervisão do enfermeiro ou de outro profissional de nível superior | 3 |
Medicamentos, insumos, exames e referência | |
Todos os exames coletados no próprio serviço | 4 |
Observou-se a presença de pelo menos um profissional médico, enfermeiro e psicólogo em todos os serviços; e ao menos um assistente social, um auxiliar/técnico de enfermagem e um farmacêutico em 13 serviços (Tabela 3). O número de médicos e de assistentes sociais em acordo com o padrão esperado foi observado em cinco serviços; para psicólogo, em sete; para enfermeiro e para auxiliar/técnico de enfermagem, em seis serviços (Tabela 3).
Categoria profissional | Serviços no padrão esperado (N) | Nº de indivíduos por profissional preconizados |
---|---|---|
Psicólogo | 7 | ≤230 |
Enfermeiro | 6 | ≤230 |
Médico | 5 | ≤150 |
Auxiliar ou técnico de enfermagem | 6 | ≤180 |
Assistente social | 5 | ≤280 |
Farmacêutico | - | - |
Nutricionista | - | - |
Dentista | - | - |
Outros | - | - |
O acesso aos profissionais no prazo de até sete dias ocorreu em 11/15 serviços para ginecologista, 10/15 para obstetra, 13/15 para psicólogo e 14/15 para assistente social. Em relação ao profissional dentista, nove serviços disponibilizavam atendimento aos usuários em até 15 dias (padrão esperado). Especialidades como proctologia (7/15), hematologia (6/15) e endocrinologia (5/15) não estavam disponíveis nos serviços, quer internamente, quer externamente (Tabela 3).
Dos 15 serviços, 14 atuavam como unidades dispensadoras de medicamentos antirretrovirais. Em metade delas não houve problema por falta de antirretroviral nos seis meses anteriores à avaliação, ou o medicamento foi reposto em até sete dias; ou seja, somente 7/14 unidades se encontravam no padrão esperado para disponibilidade de antirretroviral (Tabela 4). Houve falta dos medicamentos para profilaxia primária de infecções oportunistas não micobacterianas por mais de sete dias em 12/15 serviços; em três serviços, não houve falta desses medicamentos ou eles foram repostos no prazo até sete dias (padrão esperado). Em relação aos medicamentos para infecções sexualmente transmissíveis, em 11 serviços não havia disponibilidade imediata ou no prazo de até sete dias, e em 13, não se dispunha de medicamentos para profilaxia secundária de infecção oportunista (não micobacteriana), portanto em desacordo com o padrão esperado. Houve falta de medicamentos para as hepatites B e C em 12/15 serviços, enquanto para os medicamentos de tratamento de distúrbios metabólicos a falta ocorreu em 11/15 serviços (Tabela 4). O preservativo masculino e o teste rápido para HIV estavam disponíveis em 14/15 serviços nos últimos seis meses (padrão esperado).
Disponibilidade | Tipo de medicamento | Serviços no padrão esperado (N) |
---|---|---|
Não faltou ou foi reposto em até 7 dias | Antirretroviral (N=14) | 7 |
Profilaxia primária de infecções oportunistas | 3 | |
Micobactérias | 7 | |
Infecções sexualmente transmissíveis | 4 | |
Não faltou ou foi reposto em até 48 horas | Distúrbio metabólico | 4 |
Profilaxia secundária de infecções oportunistas | 2 | |
Não faltou | Hepatites B e C | 3 |
Na totalidade dos exames de avaliação inicial e seguimento, 11 serviços não corresponderam ao padrão desejado. Os três exames de avaliação inicial e seguimento para os quais mais serviços alcançaram o padrão esperado de disponibilidade do resultado em até sete dias foram (i) a prova tuberculínica (13/15), (ii) os exames de colesterol total e frações e (iii) de triglicérides (12/15). A baciloscopia de escarro com resultado emitido em até 15 dias esteve disponível em 11 serviços (Tabela 5). Quanto aos resultados dos exames para diagnóstico e seguimento de intercorrências e comorbidades, a genotipagem para HIV foi disponibilizada dentro do padrão esperado na maioria dos serviços (13/15); entretanto, exames com resultado disponível em até sete dias, como urocultura e ultrassom, não contemplaram esse padrão em 12/15 unidades; o mesmo pode-se dizer dos exames de tomografia computadorizada (14/15) e de endoscopia digestiva alta, este indisponível em todos os participantes do presente estudo.
Tipo de exames | Tempo recomendado (dias) | Serviços no padrão esperado (N) |
---|---|---|
Prova tuberculínica | ≤7 | 13 |
Colesterol total e frações, triglicérides | ≤7 | 12 |
Contagem de linfócitos T-CD4 | ≤7 | 8 |
Citopatologia de colo de útero (Papanicolaou) | ≤7 | 7 |
Carga viral para o HIVa | ≤7 | 6 |
Baciloscopia de escarro | ≤15 | 11 |
Teste não treponêmico (VDRLb ou RPRc) | ≤15 | 10 |
Raio-X de tórax | ≤15 | 10 |
Parasitológico de fezes | ≤15 | 10 |
Glicemia | ≤15 | 9 |
Hemograma | ≤15 | 8 |
Sorologia para hepatites B e C | ≤15 | 7 |
Avaliação hepática e renal (AST,d ALT,e Cr,f Na,g K,h urina) | ≤15 | 6 |
Sorologia para toxoplasmose | ≤15 | 5 |
Teste molecular de tuberculose (GeneXpert) | ≤15 | - |
Cultura de escarro | ≤30 | 9 |
Total do indicador (avaliação inicial e seguimento) | 4 |
a) HIV: vírus da imunodeficiência humana (em inglês, human immunodeficiency virus - HIV).
b) VDRL: Venereal Disease Research Laboratory.
c) RPR: Rapid Test Reagin.
d) AST: Aspartato Aminotransferase.
e) ALT: Alanina Aminotransferase.
f) Cr: reatinina.
g) Na: Sódio.
h) K: Potássio.
Discussão
A disponibilidade de recursos nos serviços que assistem pessoas com HIV/aids em Mato Grosso é insuficiente frente aos padrões esperados, especialmente de profissionais e de medicamentos, insumos, exames e acesso a serviços de referência. Tal situação revela uma importante perda na oferta de recursos, quando comparada à constatada pela avaliação nacional dos serviços de HIV/aids realizada em 2010. Naquele ano, praticamente a totalidade das unidades respondentes relataram contar com pelo menos um médico, suprimento - sem falhas - dos exames recomendados de T-CD4 e carga viral, e acima de 80% dos serviços do SUS informaram assegurar o suprimento - sem falhas - dos antirretrovirais.12 Tanto os medicamentos que compõem a primeira linha do tratamento antirretroviral como os exames referidos implicados são fornecidos pelo nível federal.
Este trabalho apresenta limitações. Embora o questionário aplicado contemple as dimensões organizacionais dos processos assistenciais, o estudo restringiu-se à dimensão de disponibilidade dos recursos necessários para a qualidade dos serviços. No que competiria à tríade donabeniana13 de avaliação da qualidade da assistência em saúde, o sistema de avaliação utilizado considerou estrutura e processos, sem abordar os resultados decorrentes. Outra limitação do estudo e possível viés de aferição provém da coleta dos dados: os questionários são respondidos pelo responsável de cada serviço, sem a recomendável participação de toda a equipe multiprofissional da unidade e sem comprovação, em serviço, dos dados informados. O pequeno número de serviços existentes dificulta análises estatísticas mais robustas, sendo os resultados explorados de forma descritiva.
Comparando-se os resultados desta avaliação com os das aplicações anteriores do Qualiaids em Mato Grosso, realizadas nos anos de 2007 e 2010,8 observa-se piora na disponibilidade de recursos. Avaliações nacionais, entretanto, revelam que a maioria dos serviços no país melhorou seu desempenho entre 2007 e 2010,12,14 principalmente na dimensão e domínios apresentados aqui.12
Os serviços ambulatoriais de HIV/aids no SUS são heterogêneos, seja no porte, seja nos arranjos adotados em sua organização, com responsabilidades compartilhadas entre o governo federal (adoção dos protocolos clínicos e responsabilidade pela provisão de preservativos, medicamentos antirretrovirais e exames específicos, como carga viral, imunidade e genotipagem) e os governos estadual e municipal, estes responsáveis pelos aportes e manutenção de todos os demais recursos para o funcionamento desses serviços no SUS.14
Os achados deste trabalho têm potencialidade para contribuir com novas avaliações e pesquisas, e informações que subsidiem a melhoria dos serviços, com foco nos indicadores de disponibilidade de recursos avaliados como deficientes.
O reduzido número de serviços a dispor de um quantitativo suficiente de médicos e outros profissionais pode comprometer a qualidade da assistência prestada. A avaliação nacional dos serviços de HIV/aids de 2007 mostrou que, nos serviços de então, a insuficiência do número de médicos ou outros profissionais poderia estar relacionada com a pequena duração da consulta médica.15
A recomendação para a assistência a ser prestada por essas categorias se baseia em uma razão aceitável, calculada sobre os resultados empíricos da aplicação nacional do sistema de avaliação Qualiaids de 2010, quando foi considerara a média de indivíduos por profissional a partir dos dados apreciados no grupo de serviços com as melhores pontuações naquele ano. Também foi levado em conta o processo de validação do questionário, revisado e atualizado em 2011, logo aplicado em 2016.14 Os critérios de qualidade adotados10 recomendam que se atendam menos de 300 indivíduos por profissional, embora existam serviços no estado com mais de 1.000 indivíduos atendidos por profissional dessas categorias. É o que revela o banco de dados desta pesquisa. À categoria médica recomenda-se o atendimento de até 150 indivíduos para cada 20 horas semanais; porém, apenas um terço dos serviços avaliados referiu um número de médicos adequado ao cumprimento desse padrão.
Para o conjunto das novas estratégias de prevenção combinada, além da profilaxia pós-exposição e da profilaxia pré-exposição,5 a utilização de preservativos ainda é a melhor estratégia para a prevenção da infecção pelo HIV.16 Este estudo revelou que a disponibilidade de recursos nos serviços que assistem pessoas vivendo com HIV tem como ponto forte o indicador de disponibilidade de insumos, como testes rápidos e preservativos (isoladamente), a se destacar entre os demais indicadores desse domínio e da dimensão. A garantia tanto dos testes rápidos como dos preservativos contribui para a efetiva implementação das novas recomendações. Ressalta-se que a provisão desses insumos é de responsabilidade do governo federal, assim como a de outros insumos estratégicos, dos quais são exemplo os antirretrovirais.17
Segundo as avaliações anteriores do Qualiaids, a disponibilidade regular de antirretroviral já foi alta, tanto no estado8 como no país.12 Atualmente, a falta de antirretrovirais nos serviços tem relação com as dificuldades de logística e com a distribuição e controle dos medicamentos, somadas às intercorrências no processo de aquisição, importação e/ou entrega desses medicamentos, o que pode impor necessidades de melhor gerenciamento dos estoques.18
Os outros medicamentos complementares ao tratamento do HIV apresentaram disponibilidade menor ainda, no estado, o que acarreta interrupção do cuidado. A aquisição dos medicamentos para infecções sexualmente transmissíveis e infecções oportunistas é de responsabilidade dos estados e municípios, e deve ser pactuada na Comissão Intergestores Bipartite.19 Os resultados deste estudo revelam que, apesar da pactuação de responsabilidades entre os entes federados,19 o estado de Mato Grosso não vem cumprindo seu papel no atendimento às pessoas vivendo com HIV. Cabe destacar que diversos estados vivenciaram dificuldades na aquisição de outros medicamentos, como a penicilina para tratamento da sífilis, levando o Ministério da Saúde a suprir essas faltas.20
A provisão de medicamentos é um dos elementos essenciais da qualidade da assistência.21 Um dos grandes desafios enfrentados no país consiste na remoção de barreiras no acesso à terapia antirretroviral. Entre as estratégias para minimizar esse problema, a implantação de unidades de dispensação de medicamento necessárias ao atendimento da demanda em sua localidade tem por objetivo evitar o deslocamento das pessoas para outros municípios, muitas vezes distantes.5
A disponibilidade dos exames de carga viral e contagem de linfócitos T-CD4 mostrou-se melhor no estado, na comparação com a avaliação de 2010,8 ao revelar um aumento de cinco unidades no padrão esperado, muito embora se mantenha inadequada: menos da metade dos serviços realizam esses exames em até sete dias. No ano de 2007, um estudo que avaliou serviços para pessoas que vivem com HIV/aids Nas 27 UFs encontrou importante melhora na disponibilidade dos exames citados, também em nível nacional.15
Os serviços ambulatoriais que atendem pessoas vivendo com HIV em Mato Grosso apresentaram fragilidades na disponibilidade de recursos. A melhoria das práticas avaliadas implica uma institucionalização da análise, no sentido de monitorar e avaliar a qualidade organizacional dos serviços, os quais devem estar minimamente estruturados para garantir o cuidado às pessoas vivendo com HIV.
As rodadas devolutivas dessa avaliação, realizadas de forma articulada com a Coordenação Estadual de Doenças Sexualmente Transmissíveis e Aids da SES/MT, envolveram as coordenações municipais na análise e discussão dos resultados encontrados, podendo contribuir para o aprimoramento da organização assistencial e gerencial dos serviços ambulatoriais em HIV no estado matogrossense. Esse processo proporcionou condições para mudanças nos respectivos níveis de responsabilidade sobre a disposição de recursos que assegurem a qualidade nos processos gerenciais e de organização do trabalho, na assistência ao HIV.
Ainda há muitos desafios a serem superados quanto aos recursos essenciais para a qualidade dos serviços ambulatoriais que atendem pessoas com HIV/aids em Mato Grosso, sobretudo aqueles identificados nos indicadores como mais distantes do padrão esperado, como a disponibilidade de médicos e outros profissionais, e dos medicamentos necessários - inclusive, dos antirretrovirais.