Introdução
A Organização Mundial da Saúde (OMS),1 em seu relatório de prevenção ao suicídio de 2014, reconhece o suicídio como uma prioridade na agenda global de saúde e incentiva os países a desenvolverem e reforçarem suas estratégias de prevenção com uma abordagem multissetorial. Tais eventos podem ser evitados em tempo oportuno, com base em evidências e com intervenções de baixo custo. De acordo com dados apresentados no mesmo relatório da OMS, cerca de 75% dos suicídios ocorrem em países de baixa e média renda e, atualmente, apenas 28 países possuem planos estratégicos de prevenção.
Segundo o relatório de mortalidade por suicídio das Américas,2 que reúne dados referentes ao quinquênio 2005-2009, o Brasil posicionou-se como o oitavo país em número de suicídios entre os países das Américas, e o quarto no número de suicídios na América Latina.
No período de 2011 a 2015, foram identificados 55.649 óbitos por suicídios no Brasil, correspondendo a uma taxa de 5,5/100 mil habitantes - variação de 5,3 em 2011 a 5,7 em 2015.3 Quanto às tentativas de suicídio, não existem dados exatos no mundo: a maioria dos países não conta com sistemas de monitoramento e, ademais, é reconhecido o estigma social do qual são alvo esses eventos. Tentativas de suicídio podem trazer inúmeras sequelas, seja para o próprio autor, seja para seus familiares.4
No que se refere à Política de Saúde Mental, percebe-se uma fragilidade no monitoramento, nos atendimentos e nas ações de prevenção. Para agravar esse panorama, o Plano de Ação sobre Saúde Mental5 informa que os sistemas de saúde ainda não responderam adequadamente aos transtornos mentais, gerando um grande descompasso entre a necessidade de tratamento e sua oferta. Em países de baixa renda, 76 a 85% das pessoas com transtornos mentais graves não são tratadas. O problema torna-se ainda mais complexo pela má qualidade do cuidado ofertado a pessoas com sofrimento psíquico.
Diante da necessidade de organização de uma rede de atenção à pessoa vítima de violência autoprovocada e do desenvolvimento de estratégias de prevenção ao risco de suicídio, o município de Fraiburgo, estado de Santa Catarina, implantou o Projeto Vida. Este Projeto visa garantir o atendimento aos indivíduos que tentaram suicídio e reforçar a integração entre os serviços de Vigilância Epidemiológica e Saúde Mental, por meio do Centro de Atenção Psicossocial I (CAPS I).
O presente relato tem por objetivo descrever a experiência da implantação do Projeto Vida em Fraiburgo, SC, Brasil, no período 2014-2017.
Métodos
Trata-se de um relato de experiência sobre o processo de implantação do Projeto Vida em Fraiburgo, SC, no período 2014-2017. O município, situado na região meio-oeste de Santa Catarina, possui uma área geográfica de 547,854km² e população de 34.553 habitantes, de acordo com o Censo 2010.6 O cultivo da maçã é a base da economia de Fraiburgo, responsável por 60% da produção catarinense e 40% da produção nacional.
O processo de elaboração do Projeto Vida iniciou-se em 2013, quando foram realizadas discussões regionais para organização da Rede de Atenção Psicossocial (RAPS) e elaboração do Protocolo de Saúde Mental do município de Fraiburgo.
Foram realizadas reuniões intersetoriais para discussão do tema suicídio e a forma como seria implantada a Portaria MS/GM nº 1.876, de 14 de agosto de 2016,7 a qual institui as diretrizes nacionais para prevenção do suicídio.
A integração entre a Vigilância Epidemiológica e o CAPS I possibilitou o desenvolvimento de um fluxo de trabalho (Figura 1).
O fluxo e o contrafluxo para o atendimento das demandas foram estabelecidos, ilustrados neste exemplo: a Vigilância Epidemiológica recebe uma notificação de intoxicação exógena e informa de imediato ao CAPS I, via correio eletrônico, para que este realize o atendimento e o acompanhamento do caso identificado; preste as devidas orientações aos familiares; e, munido de informações como esta, realize o mapeamento das tentativas e óbitos por suicídio. Os eventos são registrados no Sinan e em uma planilha de dados - Controle de Notificações -, utilizando-se o aplicativo Microsoft Excel. A planilha de Controle de Notificações é composta pelos seguintes dados: período da ocorrência; dados pessoais; endereço; escolaridade; ocupação; forma da tentativa; motivo; transtorno mental associado; reincidência; se realizava tratamento e acompanhamento em algum serviço do território; fatores de risco e de proteção.
A alimentação e a retroalimentação da planilha estão disponíveis e sob a responsabilidade dos profissionais da Vigilância Epidemiológica e do CAPS I. Esse controle serviu para definir o perfil da população que tentou suicídio independentemente da faixa etária, bem como o desenho de ações de prevenção no território. Após a apresentação do Projeto Vida aos atores envolvidos, sua implantação teve início em abril de 2014. Foram realizadas as seguintes ações:
capacitação dos profissionais da saúde para identificar situações de risco e preencher corretamente a Notificação de Intoxicação Exógena
atendimento humanizado à pessoa que cometeu a tentativa de suicídio, a ser acompanhada individualmente ou incluída em grupo terapêutico no CAPS I e/ou da Atenção Básica;
atendimento aos familiares das pessoas que evoluíram para óbito por suicídio e das que tentaram suicídio, mediante orientações no atendimento individual;
realização de ações de promoção da saúde e valorização da vida; e
monitoramento dos casos de óbito por suicídio e tentativas de suicídio, para elaboração do diagnóstico do território.
Na descrição das notificações das tentativas de suicídio, foram utilizados dados do Sinan e da planilha eletrônica de controle referentes ao período de abril de 2014 a março de 2017.
Por se tratar de um relato de experiência da vigilância em saúde, o projeto foi autorizado pela Secretaria Municipal de Saúde de Fraiburgo, respeitando os princípios éticos constantes nas Resoluções do Conselho Nacional de Saúde (CNS) nº 466, de 12 de dezembro de 2012, e no 510, de 7 de abril de 2016.
Resultados
A experiência do Projeto Vida possibilitou o diálogo entre os serviços da rede sobre seu papel diante das questões relacionadas ao suicídio. Ampliou-se a dimensão e imprimiu-se continuidade no cuidado prestado às pessoas que tentaram suicídio, por vezes limitado - até o advento do Projeto - a atendimentos pontuais, realizados pelo serviço de urgência e emergência.
A definição das ações permitiu que o Projeto Vida abordasse diferentes segmentos, cada um com estratégias voltadas a segmentos específicos: (i) aos profissionais, mediante capacitação; (ii) às pessoas que tentaram suicídio, no cuidado ampliado e contínuo; (iii) aos familiares, oferecendo orientações; e (iv) à população geral, alcançada com campanhas e outras ações no território.
Os casos de tentativas de suicídio são de notificação compulsória. Com a implantação do Projeto, o município de Fraiburgo deixou de ser um mero notificador e passou a analisar os dados notificados, advindos do atendimento prestado.
A partir dos registros na planilha eletrônica referentes ao período de abril de 2014 a março de 2017, foram identificados 108 casos de tentativas de suicídio. Quatro indivíduos tentaram suicídio novamente, correspondendo a uma reincidência de 3,7%. No período observado, houve uma redução gradual do número das tentativas de suicídio: 40 em 2014, 35 em 2015 e 24 em 2016 (-40%). De janeiro a março de 2017, foram registradas nove tentativas de suicídio.
Quanto ao perfil dos casos registrados no período, a procedência das notificações mostrou predomínio na área da Saúde: 88,9% dos casos foram notificados pelo hospital de Fraiburgo e 8,3% pelo Serviço de Atendimento Móvel de Urgência (SAMU); os restantes 2,8% provieram da área da Segurança, especificamente da Polícia Militar (Tabela 1).
Procedência das notificações | Total | % |
---|---|---|
Hospital | 96 | 88,9 |
SAMUa | 9 | 8,3 |
Polícia Militar | 3 | 2,8 |
a) SAMU: Serviço de Atendimento Móvel de Urgência.
As mulheres representaram 68,5% das notificações de tentativas de suicídio, em sua maioria adultas jovens com média de idade de 39 anos. O método mais utilizado foi a ingestão de medicamentos (83,7%), seguida pela ingestão de pesticidas (9,5%), ingestão de produtos de limpeza (5,5%) e precipitação de lugar elevado (1,3%). Os homens corresponderam a 31,5% das notificações, em sua maioria adultos de 40 a 50 anos. Os métodos mais utilizados entre os homens foram enforcamento (47,2%), ingestão de medicamentos (41,1%) e uso de arma branca (11,7%) (Tabela 2).
Variável | N | % |
---|---|---|
Sexo | ||
Feminino | 74 | 68,5 |
Masculino | 34 | 31,5 |
Faixa etária (em anos) | ||
10-12 | 1 | 0,9 |
13-19 | 7 | 6,5 |
20-29 | 19 | 17,6 |
30-39 | 43 | 39,8 |
40-49 | 25 | 23,1 |
50-59 | 7 | 6,5 |
≥60 | 6 | 5,6 |
Zona de residência | ||
Urbana | 96 | 88,9 |
Rural | 12 | 11,1 |
Os meses com maior número de ocorrências de tentativas de suicídio entre abril de 2014 e março de 2017 foram outubro (24%), agosto (21%) e março (11%).
Das tentativas de suicídio registradas, 4,6% dos indivíduos apresentaram transtornos mentais associados: esquizofrenia (20%), dependência química (60%) e transtorno bipolar (20%).
Nos atendimentos às pessoas que tentaram suicídio e seus familiares, foram identificados conflitos conjugais (75%), conflitos familiares (10%) e dificuldades financeiras (7%).
A garantia de atendimento se estendeu a 80% dos familiares, dos quais 20% não compareceram ao serviço, não obstante a realização de busca ativa. As orientações prestadas aos familiares durante o acompanhamento do paciente possibilitaram uma resposta mais rápida ao tratamento proposto, atendimento este que não existia antes da implantação do Projeto Vida.
Graças ao Projeto Vida, o levantamento do perfil epidemiológico e o diagnóstico do território permitiram o desenvolvimento de ações estratégicas para prevenção do suicídio e promoção da saúde:
formação de grupos de saúde mental em todas as equipes da Estratégia Saúde da Família (ESF);
matriciamento bimestral com as equipes da ESF, do CAPS I e do Núcleo de Apoio à Saúde da Família (NASF);
criação e manutenção dos espaços de convivência com grupos de alimentação saudável, atividades físicas, dor crônica; e
intervenções no território, mediante campanhas de valorização da vida, rodas de conversa, folders informativos e discussões nos grupos existentes no território.
Discussão
A experiência da implantação do Projeto Vida propiciou a ampliação do cuidado àqueles indivíduos que apresentaram comportamento de risco e orientações a seus familiares, contrapondo-se ao atendimento limitado a situação emergencial, predominante no período anterior à implementação do Projeto.
No Brasil, o modelo de atenção à saúde mental anterior à Lei no 10.216, de 6 de abril de 2001, centrado nas internações em hospitais psiquiátricos, foi redirecionado para serviços comunitários de saúde mental de forma a se promover a garantia dos direitos das pessoas com transtornos mentais.8 Logo foi instituída a Rede de Atenção Psicossocial (RAPS), com o objetivo de ampliar o acesso à atenção psicossocial, articular ações entre serviços e ações intersetoriais, regular e organizar as demandas e fluxos da assistência. A RAPS propõe a qualificação do cuidado por meio do acolhimento e acompanhamento contínuo das pessoas em sofrimento psíquico.9
O desenho do fluxo de atendimento do Projeto Vida vai ao encontro dessa nova configuração da Política de Saúde Mental, pois garante o atendimento a pessoas que apresentam comportamento de risco mediante o acolhimento no território.
Embora, no âmbito do SUS, não haja um padrão de procedimentos e fluxo para auxiliar a atuação profissional diante de tentativas de suicídio, os princípios doutrinários e organizacionais do sistema permitem aos municípios determinar e definir fluxos, bem como rotinas que melhor se adequem à realidade local.10
De acordo com a Agenda de Ações Estratégicas para a Vigilância e Prevenção do Suicídio e Promoção da Saúde do Brasil,11 as tentativas de suicídio devem ser de notificação compulsória e imediata por parte dos estabelecimentos de saúde, possibilitando o uso dessas informações tanto para o acionamento da rede de atenção quanto para o acompanhamento dos casos. O Projeto Vida representa uma forma de acionar a rede de atenção e o atendimento humanizado, e desenvolver estratégias de intervenção e monitoramento.
A implantação do Projeto Vida também gerou a criação da planilha Controle de Notificações, a qual, mais além do registro dos dados componentes do Sinan, permite identificar os motivos do ato cometido. A implantação do Projeto tornou possíveis as estratégias de prevenção do suicídio no território.
Nos últimos anos, observou-se redução das tentativas de suicídio no Brasil e em Santa Catarina, segundo os dados do Sinan e os obtidos no âmbito do Projeto Vida. Cabe um estudo específico, para identificar os fatores envolvidos nessa redução. Em contrapartida, os resultados apresentados pelo Mapa da Violência de 201412 mostraram um crescimento da mortalidade por suicídio na população brasileira de 15 a 29 anos, de 5,1 por 100 mil habitantes em 2001 para 5,6 em 2014. Conforme o Projeto Vida prestava o atendimento humanizado às pessoas com comportamento de risco de tentativas de suicídio e seus familiares, foi possível obter dados que identificassem o perfil epidemiológico dessa população.
Os dados levantados corroboram os achados de estudo sobre o estado de Mato Grosso no período de 2008 a 2013,13 reveladores do predomínio do gênero feminino e de mulheres mais jovens, nas tentativas de suicídio, a grande maioria por ingestão excessiva de medicamentos. Resultados de estudo realizado em Barbacena, estado de Minas Gerais, no período de 1997 a 2012,14 condizem com os apresentados aqui: as tentativas não letais predominaram entre mulheres que se intoxicaram por medicamentos.
Quanto aos meses de maior incidência de tentativas de suicídio, observou-se discreto aumento em outubro e agosto, seguidos dos meses de março e maio. Resultados semelhantes foram encontrados em Mato Grosso (2008-2013),13 embora não se apresentassem os motivos para um aumento nesses meses específicos.
Antes da implantação do Projeto Vida, as notificações traduziam-se apenas em estatísticas, repassadas à Secretaria de Estado e ao Ministério da Saúde. Os municípios desempenhavam o papel de meros notificadores, não realizavam a análise dos dados notificados e tampouco prestavam assistência à saúde dessas pessoas.
A implantação do Projeto organizou o fluxo de atendimento aos pacientes que tentaram suicídio, e a seus familiares, garantindo um atendimento humanizado a essas pessoas. A Vigilância Epidemiológica responsabilizou-se por comunicar ao Centro de Assistência Psicossocial I as notificações recebidas; e o CAPS I ficou com a atribuição de atender, acompanhar, orientar e mapear os casos identificados.
Foi possível identificar reincidências dos casos de tentativa de suicídio. Os indivíduos reincidentes passaram a receber atendimento especializado do município, devido ao diagnóstico de transtorno mental grave. Segundo o Ministério da Saúde, estudos15 apontam que pessoas portadoras de transtornos mentais graves apresentam maior risco de suicídio, para o que os profissionais da saúde devem estar mais atentos. Segundo Botega,16 os transtornos mentais mais comumente associados aos suicídios são depressão, transtorno de humor bipolar e dependência de substâncias psicoativas.
Durante o desenvolvimento do Projeto Vida, as subnotificações representaram uma limitação. Apesar de compulsória desde 2011, a notificação de tentativa de suicídio depende do comprometimento dos profissionais no preenchimento dos dados. Por se tratar de um município de pequeno porte e do pouco tempo transcorrido desde a implantação do Projeto, não foi possível mensurar seu impacto na assistência aos casos de tentativa de suicídio. Seria necessário maior período de acompanhamento.
A Saúde Pública deve investir em ações de articulação entre vigilância e assistência à saúde. As estatísticas não bastam por si; recomenda-se uma análise cuidadosa para a conversão dos dados em práticas de transformação e resultados efetivos na promoção, prevenção e tratamento de saúde, a exemplo da experiência do Projeto Vida.