Introdução
A fluoretação da água de abastecimento público é uma intervenção de Saúde Pública que consiste no ajuste da concentração de fluoreto com a finalidade de controle da cárie dentária em nível populacional.1 A estratégia, reconhecida nos Estados Unidos pelos Centers for Disease Control and Prevention como uma das dez principais medidas implantadas na Saúde Pública no século XX,2 foi recomendada pela primeira vez no Brasil no 10º Congresso Brasileiro de Higiene, em 1952. No ano seguinte, a cidade de Baixo Guandú, ES, implantou a medida, razão pela qual foi mantida e observada como unidade-piloto para comprovação dos benefícios dos fluoretos na redução da cárie.3 Em 1974, a fluoretação das águas tornou-se obrigatória nas cidades brasileiras dotadas de estação de tratamento da água, em cumprimento à Lei Federal no 6.050, de 24 de maio de 1974.3
A provisão de fluoretação está diretamente relacionada com a expansão da oferta dos serviços de saneamento, haja vista a existência de unidades de tratamento e distribuição de água constituírem requisito para sua oferta. Um importante marco histórico do setor foi a aprovação do Plano Nacional de Saneamento (Planasa) em 1971, impulsionando a criação das companhias estaduais de saneamento, juridicamente constituídas como sociedades de economia mista, para a prestação direta desses serviços aos municípios.4-6 Se, no início da década de 1980, o mundo já vivia um contexto econômico e político marcado pelo neoliberalismo, o Brasil foi submetido a esse processo apenas no início da década de 1990. A Lei Federal no 8.987/1995 autorizou a participação de empresas particulares no setor, com incentivo do governo federal à privatização desses serviços via empresas concessionárias. Na década de 2000, a Lei no 11.079/2004 regulamentou no país a parceria público-privada: uma relação entre entes públicos e privados, em que a concessão dos serviços não era entregue integralmente ao ente privado. Em 2007, foi aprovada a Lei no 11.445, a qual definiu princípios fundamentais e diretrizes para o acesso a recursos federais, sua gestão, além da regulação dos serviços.4,5,7 A atual configuração da prestação dos serviços de saneamento reflete políticas passadas e tendências neoliberais presentes, trazendo características de gestão específicas para cada local do país, com importantes implicações na oferta da fluoretação.
Entre 1970 e 1990, a cobertura urbana de abastecimento de água passou de 54 para 90%.7 Nesse mesmo período, a cobertura da fluoretação passou de 3 para 42%.3 O crescimento da cobertura populacional contribuiu para que, em 2010, o Brasil passasse a fazer parte do seleto grupo de países de baixa prevalência de cárie dentária.8,9 Dados da Pesquisa Nacional de Saneamento Básico (PNSB) de 2008 indicavam que 60,6% dos municípios brasileiros dispunham do serviço de fluoretação da água.10
Com base na população de cada localidade, um estudo longitudinal envolvendo 5.558 municípios brasileiros mostrou que, em menos de uma década, a cobertura populacional de fluoretação da água se ampliou de 115 (67,7%) para 144 (76,3%) milhões de habitantes, representando um aumento de 8,6% entre os anos 2000 e 2008.11 O mesmo estudo também observou, para o ano 2000, que características próprias dos municípios, como porte populacional e índice de desenvolvimento humano municipal (IDHM), implicaram o grau da oferta do serviço de fluoretação.11
Não se tem conhecimento dessa implicação no que se refere ao tipo de empresa concessionária, pelo que se faz necessária uma análise mais criteriosa da relação de dependência dessas variáveis e atualização da informação disponível.
A presente pesquisa teve como objetivo descrever as características das empresas concessionárias e dos municípios brasileiros segundo a situação da fluoretação da água em seus sistemas de abastecimento.
Métodos
Trata-se de um estudo ecológico que teve como unidades de análise todos os 5.565 municípios brasileiros existentes em 2010.
Foram utilizados dados do Censo Demográfico de 2010, da PNSB de 2008 e do Atlas de Desenvolvimento Humano 2010. O Censo constitui uma fonte de informações sobre a situação de vida da população nos municípios e localidades, a partir da investigação das características dos domicílios e das pessoas residentes.12 A PNSB tem por objetivo investigar as condições de saneamento básico de todos os municípios brasileiros, a partir de informações obtidas da atuação das empresas responsáveis pela prestação dos serviços.10 O Atlas de Desenvolvimento Humano apresenta indicadores que refletem características da população, educação, habitação, saúde, trabalho, renda e vulnerabilidade, com informações extraídas dos Censos Demográficos de 1991, 2000 e 2010.13
Do Censo de 2010, foram extraídas três variáveis:
- Cobertura da rede geral de distribuição de água; ou
Considera como resposta possível apenas a existência ou não do serviço. A variável ‘cobertura da rede geral de distribuição de água’ foi calculada por meio da proporção entre o número de domicílios particulares permanentes abastecidos por rede geral de distribuição e o número total de domicílios particulares permanentes do município. É considerado domicílio particular permanente aquele que foi construído para servir exclusivamente a habitação e, na data de referência, tinha a finalidade de servir de moradia a uma ou mais pessoas. Os valores percentuais desse indicador foram agrupados em quartis.
- Cobertura da rede geral de distribuição esgoto/pluvial; ou
Considera como resposta possível apenas a existência ou não do serviço. O mesmo cálculo da variável anterior foi usado para medir a cobertura da rede geral de distribuição de esgoto/pluvial, sendo considerado presente o serviço quando a canalização das águas servidas e dos dejetos, proveniente do banheiro ou sanitário, estava ligada a um sistema de coleta conectado a um desaguadouro geral da área, região ou município, mesmo que o sistema não tivesse estação de tratamento da matéria esgotada. Os valores percentuais desse indicador foram agrupados em quartis.
- Porte populacional; ou
Considera o total de residentes em cada domicílio do município na data da pesquisa. Para descrevê-lo, as estimativas populacionais relativas ao ano de 2010 foram separadas em sete categorias, conforme a escala adotada pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE): até 5 mil habitantes; mais de 5 mil até 10 mil; mais de 10 mil até 20 mil; mais de 20 mil até 50 mil; mais de 50 mil até 100 mil; mais de 100 mil até 500 mil; e mais de 500 mil habitantes.
Quanto à provisão da fluoretação de água, a partir da constatação pela PNSB/2008 da existência ou não do serviço ao menos no distrito-sede, foram selecionadas mais três variáveis específicas, sobre o caráter da prestadora do serviço, somando quatro variáveis, elencadas a seguir:
- Provisão da fluoretação da água do sistema de abastecimento; ou
Descreve a existência ou não do serviço de fluoretação de água, ao menos no distrito sede.
- Natureza jurídica das empresas prestadoras de serviço de abastecimento de água; ou
Esta variável, que se refere à forma jurídica segundo a qual foi constituída a empresa responsável pelo abastecimento, quando considerada, estava distribuída em seis categorias: (i) administração direta do poder público; (ii) autarquia; (iii) empresa pública; (iv) sociedade de economia mista; (v) consórcio público; (vi) fundação, empresa privada ou associação. Com base nessas definições de natureza jurídica, 1.848 municípios eram apresentados com duas, três ou até quatro classificações. Para melhor compreensão e no propósito de evitar categorias com baixa frequência, os dados da natureza jurídica da prestação desse serviço foram organizados em nove classes: (i) administração direta do poder público exclusiva; (ii) administração indireta do poder público exclusiva (autarquia, empresa pública ou consórcio público); (iii) apenas sociedade de economia mista; (iv) apenas administração privada (empresa privada, fundação ou associação); (v) sociedade de economia mista de caráter público (combinação entre duas categorias, sendo uma delas sociedade de economia mista, e a outra, administração pública direta, empresa pública, autarquia ou consórcio público); (vi) sociedade de economia mista de caráter privado (combinação entre duas categorias, sendo uma delas sociedade de economia mista, e a outra, fundação, empresa privada ou associação); (vii) administração direta do poder público combinada com qualquer tipo de administração indireta do poder público; (viii) administração direta do poder público combinada com administração privada; e (ix) sociedade de economia mista, combinada entre administração direta ou indireta do poder público e administração privada.
- Esfera administrativa das empresas prestadoras de serviço de abastecimento de água; ou
Esta variável identifica quem são as entidades responsáveis por esse abastecimento nos municípios. O tipo de esfera administrativa é classificada originalmente como federal, estadual, municipal, privada, interfederativa ou intermunicipal. Da mesma forma que a natureza jurídica, a esfera administrativa das empresas foi recategorizada devido à ínfima quantidade de municípios incluídos em determinada classificação (classificação federal com seis e intermunicipal com três ocorrências), como também em razão das combinações existentes. Foram estabelecidas as seguintes categorias: soma entre classificação exclusiva estadual ou federal; soma entre classificação exclusiva municipal ou intermunicipal; somente entidade privada; associações entre entidades públicas (duas ou três categorias combinadas, entre federal, estadual, municipal e intermunicipal); associações entre entidades públicas e privadas (duas, três ou quatro categorias combinadas, entre entes privados e esfera federal, estadual, municipal, intermunicipal ou interfederativa).
- Forma de execução do serviço de abastecimento de água; ou
Esta terceira variável da natureza jurídica aponta quem, efetivamente, atua na prestação do serviço. A forma de execução foi categorizada conforme o molde original extraído da PNSB de 2008: prefeitura é a única executora; outras entidades são as executoras do serviço; e prefeitura e outras entidades são as executoras do serviço.
Finalmente, do Atlas de Desenvolvimento Humano 2010 foi utilizada uma variável:
- Indice de desenvolvimento humano municipal (IDHM) para o ano de 2010; ou
O IDHM é uma medida composta de três dimensões do desenvolvimento humano: longevidade, educação e renda. O índice varia dentro de uma escala de valor de 0 a 1: quanto mais próximo de 1, maior o desenvolvimento humano. Os valores obtidos são classificados da seguinte forma: muito baixo (0 a 0,499); baixo (0,500 a 0,599); médio (0,600 a 0,699); alto (0,700 a 0,799); e muito alto (0,800 a 1).
As informações das variáveis foram compiladas em uma única planilha do programa Microsoft Excel 2016. Dada a não aderência à curva normal, foi empregado o teste de Kruskal-Wallis para verificar uma possível associação entre a presença de fluoretação, como variável dependente, e as categorias das variáveis independentes. Trata-se de um teste não paramétrico, utilizado para comparar três ou mais grupos populacionais quanto à nulidade das funções de distribuição, ou seja, se a diferença observada entre os grupos é nula. Para rejeitar a hipótese de nulidade, adotou-se o valor de p<0,05. Foi utilizado o programa estatístico SPSS versão 21.0.0.0.
Em razão de a pesquisa utilizar apenas informações censitárias, de acesso público, não houve obrigatoriedade de avaliação pelo sistema de Comitês de Ética em Pesquisa/Comissão Nacional de Ética em Pesquisa, consoante a Resolução do Conselho Nacional de Saúde (CNS) no 510, de 7 de abril de 2016.
Resultados
Dos 5.565 municípios brasileiros, 60% dispunham de serviços de fluoretação. Não estavam acessíveis dados sobre a rede geral de distribuição de água (N=5), rede geral de distribuição de esgoto/pluvial (N=111) e natureza jurídica, esfera administrativa e forma de execução (N=34) em parte desses municípios; 89% somavam menos de 50 mil habitantes (N=4.957), 37% tinham sua água de abastecimento tratada por uma empresa do tipo de sociedade de economia mista (N=2.056), 38% se encontravam na esfera administrativa classificada como federal ou estadual (N=2.125) e 58% dispunham de outras entidades provedoras dos serviços abastecimento de água (N=3.220). No ano de 2010, 40% dos municípios foram classificados com IDHM médio (N=2.233) (Tabela 1).
Tabela 1 - Frequência absoluta e relativa da distribuição dos municípios brasileiros (N=5.565) segundo as características investigadas
Variáveis | Municípios | |
---|---|---|
N | % | |
Fluoretação da água dos sistemas de abastecimentoa | ||
Sim | 3.351 | 60 |
Não | 2.214 | 40 |
Porte populacional (em 1.000 habitantes)b | ||
<5 | 1.301 | 23 |
5-10 | 1.212 | 22 |
10-20 | 1.401 | 25 |
20-50 | 1.043 | 19 |
50-100 | 325 | 6 |
100-500 | 245 | 4 |
>500 | 38 | 1 |
Índice de desenvolvimento humano municipal 2010c | ||
Muito baixo (0-0,499) | 32 | 1 |
Baixo (0,500-0,599) | 1.367 | 24 |
Médio (0,600-0,699) | 2.233 | 40 |
Alto (0,700-0,799) | 1.889 | 34 |
Muito alto (0,800-1,000) | 44 | 1 |
Natureza jurídicaa | ||
Administração direta do poder público exclusiva | 924 | 17 |
Administração indireta do poder público exclusiva | 494 | 9 |
Apenas sociedade de economia mista | 2.056 | 37 |
Apenas administração privada | 209 | 4 |
Sociedade de economia mista de caráter público | 974 | 17 |
Sociedade de economia mista de caráter privado | 309 | 6 |
Administração direta do poder público combinada com qualquer tipo de administração indireta do poder público | 113 | 2 |
Administração direta do poder público combinada com administração privada | 186 | 3 |
Sociedade de economia mista, combinada entre administração direta ou indireta do poder público e administração privada | 266 | 5 |
Esfera administrativaa | ||
Soma entre classificação exclusiva estadual e federal | 2.125 | 38 |
Soma entre classificação exclusiva municipal e intermunicipal | 1.383 | 25 |
Somente entidade privada | 208 | 4 |
Associação entre entidades públicas | 1.067 | 19 |
Associação entre entidades públicas e privadas | 748 | 14 |
Forma de execuçãoa | 3.220 | 58 |
Prefeitura é a única executora | 943 | 17 |
Outras entidades são as executoras do serviço | 3.220 | 58 |
Prefeitura e outras entidades são as executoras do serviço | 1.368 | 25 |
a) Dado proveniente da Pesquisa Nacional de Saneamento Básico 2008.
b) Dado proveniente do Censo 2010.
c) Dados provenientes do Atlas de Desenvolvimento Humano 2010.
Dados ausentes: rede geral de distribuição de água (n=5); rede geral de distribuição de esgoto/pluvial (n=111); e natureza jurídica, esfera administrativa e forma de execução (n=34).
Quanto à cobertura de abastecimento de água, o menor quartil das cidades apresentava até 57% de cobertura, e o maior, acima de 84%. Um quarto das cidades não tinha mais do que 1% de cobertura de rede geral de esgoto, e entre as alocadas no maior quartil, todas apresentavam acima de 56% de cobertura. Conforme se observa na Figura 1, quanto maior o quartil da cobertura da rede geral de distribuição de água e de cobertura da rede geral de distribuição de esgoto/pluvial, maior a proporção de municípios beneficiados pela fluoretação (p<0,001).

a) Total de municípios com informação disponível para cobertura da rede geral de distribuição de água.
b) Total de municípios com informação disponível para cobertura da rede geral de distribuição de esgoto/pluvial.
Figura 1 - Proporção (%) de municípios com serviço de fluoretação da água dos sistemas de abastecimento de acordo com os quartis de cobertura da rede geral de distribuição de água (N=5.560a) e de cobertura da rede geral de distribuição de esgoto/pluvial (N=5.454b), Brasil, 2008
Os valores de provisão da fluoretação da água foram similares entre as categorias de municípios com menos de 50 mil habitantes, observando-se proporções de 56 a 61% desses municípios com oferta do serviço. A provisão foi maior nos municípios com população superior a 50 mil habitantes, alcançando o valor de 87% entre os municípios com mais de 500 mil habitantes (p<0,001) (Figura 2).

Figura 2 - Proporção (%) de municípios brasileiros (N=5.565) com serviço de fluoretação da água dos sistemas de abastecimento (2008) de acordo com o porte populacional (2010)
Observando-se as categorias do IDHM, nota-se que quanto mais alto o índice, maior a presença de fluoretação nos municípios (p<0,001) (Figura 3).

Figura 3 - Proporção (%) de municípios brasileiros (N=5.565) com serviço de fluoretação da água dos sistemas de abastecimento (2008) de acordo com o índice de desenvolvimento humano municipal (2010)
A provisão da fluoretação foi maior nos municípios atendidos por empresas do tipo de sociedade de economia mista (75%) e menor quando a concessionária era privada (28%; p<0,001). Foram notados valores diferentes entre as esferas estadual/federal, com 74% de fluoretação, e a esfera privada, com 27% (p<0,001). A provisão do benefício foi menor (40%) quando a prefeitura era a única executora do serviço, na comparação com as demais formas observadas, em que havia participação de outras entidades na execução do serviço (p<0,001) (Figura 4).
Discussão
A provisão da fluoretação foi mais frequente nos municípios com maior cobertura de água tratada, porte populacional, índice de desenvolvimento humano, existência de esgotamento sanitário, onde as concessionárias eram do tipo sociedade de economia mista, associadas ou não a outras organizações e empresas da administração indireta do poder público. A provisão foi menos frequente nas localidades cuja esfera administrativa das concessionárias era do tipo de economia privada ou do tipo exclusivamente municipal ou intermunicipal, e onde a prefeitura era a única executora.
Os dados para a presente pesquisa datam de 2008 e 2010. Contudo, as informações tratam de um setor de atividade - saneamento - cujas mudanças demandam médio e longo prazo. A situação da fluoretação foi obtida com a aplicação de um questionário pelo IBGE junto às entidades prestadoras dos serviços de saneamento. Essa informação não dispõe de outra fonte de dados de maior validade. Como citado anteriormente, em um pequeno número de municípios, observa-se ausência de dados para algumas variáveis, não implicando alterações nas associações observadas.
Estudos longitudinais e transversais têm destacado a desigualdade regional na oferta de serviços de saneamento no Brasil,14,15 e os resultados do presente trabalho mostram que essa condição se reflete na oferta da fluoretação entre os municípios brasileiros. Os achados se assemelham aos de pesquisa realizada com dados do ano 2000, segundo os quais os municípios com mais de 50 mil habitantes e aqueles com maior IDHM também apresentavam provisão da fluoretação mais elevada.11 Resultados observados em ambos os estudos sugerem que os esforços realizados nos níveis federal e estadual de governo não foram suficientes para acelerar a expansão da medida nos municípios de muito baixo ou baixo IDHM, mostrando-se necessário um reajuste das estratégias de implantação.
Sabe-se que a presença de unidade de tratamento e de uma rede de distribuição de água é condição necessária para o ajuste da concentração do fluoreto na água. Como existe uma relação de dependência entre a implantação da política pública e a existência de unidades de tratamento e distribuição de água, admite-se que a provisão da política pública poderia ser mais elevada: em 2008, 99,4% dos municípios realizavam abastecimento de água por rede geral de distribuição em pelo menos um distrito ou parte dele.10 Assim, é plausível indagar o motivo pelo qual a provisão de fluoretação não alcance um número maior de municípios, dado que o custo econômico da medida é reduzido quando existe estrutura de tratamento e distribuição, e a eficiência do serviço não é afetada.16
Se de um lado, a expansão dos serviços de saneamento nos municípios pode ser limitada pelo potencial de retorno de investimentos, por estar associada à receita tarifária gerada e existirem tetos de tarifa impostos por políticas públicas,17 por outro lado, uma pesquisa sobre a eficiência do setor saneamento no Brasil, utilizando-se de dados de 369 operadores relativos ao período de 2000 a 2004, encontrou que a oferta dos serviços de fluoretação não implica aumento significativo no custo de operação, para as concessionárias, independentemente de seu alcance regional ou local, ou de sua condição pública ou privada.16
Outro fator a se considerar é a capacidade de investimento das concessionárias. Estudo sobre dados do Sistema Nacional de Informações sobre Saneamento de 2010 mostrou que as empresas regionais públicas apresentaram níveis de investimento maiores que as empresas privadas e as empresas locais públicas.4 No presente trabalho, evidenciou-se o protagonismo do setor público na provisão da fluoretação, resultado esperado em virtude da história das políticas públicas implementadas no setor. As entidades caracterizadas como sociedades de economia mista (associação entre entidades públicas de diferentes esferas; ou entre públicas e particulares) apresentaram maior provisão do serviço nos municípios brasileiros.
Pesquisas realizadas em diferentes regiões do mundo buscaram comparar o desempenho de companhias públicas e privadas, após a abertura de exploração do setor saneamento. Utilizando dados de inquéritos domiciliares aplicados em 18 cidades e províncias que introduziram alguma forma de privatização em 28 cidades-controle situadas na Argentina, Bolívia e Brasil, no período de 1995 a 2001, verificou-se, após a privatização, ampliação de provisão desse serviço a um valor bem próximo do verificado em municípios cujo setor era gerido por companhias públicas.18 A comparação de desempenho entre os entes privado e público na provisão de serviços de água, a partir da observação de 13 países africanos no ano 2000, revelou que a melhoria esperada com a privatização não se confirmou.19 Entretanto, outro estudo, tendo como objeto 50 concessionárias da Ásia e região do Pacífico, realizado no ano de 1995, concluiu serem as empresas privadas mais eficientes.20 Adicionalmente, pesquisa na Arábia Saudita mostrou que o desempenho técnico e financeiro foi excepcional nos primeiros cinco anos (2009 a 2013) após a privatização do sistema de abastecimento de água.21 Na China, a população atendida por empresas privadas saltou de 8% em 1989 para 38% em 2008, desempenho atribuído ao forte controle central do Estado e coordenação burocrática sobre as parcerias público-privadas.22
Evidências apresentadas por diversos trabalhos publicados na literatura mundial apontam, firmemente, para a inexistência de uma vantagem intrínseca sistemática, em termos de eficiência na prestação desses serviços pelo setor privado, razão pela qual nem sempre os benefícios esperados do processo de privatização são alcançados.23 Nesse sentido, ao se examinar o processo de remunicipalização dos serviços de abastecimento de água na capital Berlim, Alemanha, chamam a atenção as contingências do processo político, capazes de provocar rupturas tanto (i) no aparente consenso que - supostamente - caracterizaria o ideário da privatização, quanto (ii) na noção de que provedores privados priorizariam as necessidades das populações, acima de seus próprios interesses, mesmo diante das inúmeras possibilidades de lucro a seu alcance.24
No Brasil, com a diminuição do aporte de investimentos pelo governo federal no saneamento a partir dos anos 1990, o investimento de capital privado como solução para o setor começou a ser reconsiderado. No entanto, a herança histórica do setor ligada ao Plano Nacional de Saneamento (Planasa) é incontestável; mesmo que o poder concedente na exploração do setor seja municipal, tem-se observado uma predominância na oferta dos serviços por companhias estaduais, quando comparada à das municipais e privadas: cerca de 80% da população do país era atendida por operadores públicos estaduais em 2002.25 Tem-se recorrido à noção de path dependency para explicar a permanência de determinados aspectos da política de saneamento nas duas últimas décadas e sua forte resiliência às inovações propostas por governos de orientação política divergente, entre 1995 e 2007.6 Análise de desempenho das concessionárias brasileiras na oferta de água, no período entre 2002 e 2004, mostrou que as empresas públicas eram mais eficientes.26 Um estudo de análise do efeito da governança na eficiência dinâmica das empresas de água, igualmente, não constatou um ganho de eficiência robusto com a privatização das concessionárias.17 Quando a análise se voltou às empresas públicas, as maiores chances de presença de redes domiciliares de água e esgoto pertenciam aos municípios com gestão do tipo autarquia.14
Além de atualizar para o ano de 2010 as relações entre o provimento do benefício e as características de porte populacional e desenvolvimento humano dos municípios, conhecidas da literatura,11 a principal contribuição do presente estudo foi descrever as características das empresas de saneamento dos municípios brasileiros que declararam manter sistemas de fluoretação da água e, por conseguinte, levantar hipóteses sobre suas relações com a cobertura das redes de distribuição de água e de distribuição de esgoto/pluvial à população por elas servida.
Encontrou-se variação na oferta da fluoretação segundo características dos prestadores do serviço e do município, demonstrando que o tipo de concessionária tem importância para a provisão da fluoretação. As informações produzidas evidenciaram associações significativas de dependência entre as características das concessionárias e a prestação do serviço de fluoretação, e podem fundamentar futuras investigações sobre os efeitos decorrentes de variáveis específicas ligadas à concessionária e à provisão da política pública, seja diante das características dos municípios, seja das regiões a que pertencem. Outrossim, os resultados apresentados constituem uma importante fonte de informações e avaliação do impacto do mais recente marco regulatório do Saneamento (Lei no 11.445/2007) sobre a provisão da política pública brasileira de fluoretação.