Introdução
A qualidade das informações de mortalidade por acidentes e violência é fundamental para subsidiar boas práticas de Saúde Pública relacionadas ao dimensionamento do problema, a avaliações temporais, e para a proposição de medidas de redução da violência e avaliação de sua eficácia. No Brasil, ainda existem evidências de subenumeração dos óbitos por causas externas, seja por ausência de notificação (sub-registro), seja por má classificação das causas registradas.1
A melhoria da qualidade dos dados de mortalidade por causas externas tem particular relevância para o país. Essas causas apresentam altas taxas de mortalidade, como também um padrão peculiar: as mortes por homicídio e acidentes de trânsito como as principais causas externas, enquanto no resto do mundo predominam os suicídios e mortes em conflitos armados.2 Entre 1990 e 2015, apesar da redução das taxas de mortalidade por causas externas de 105,1 para 81,2/100 mil habitantes, os óbitos por violência não só revelaram taxas alarmantes como passaram do sétimo para o segundo lugar como causa de anos de vida perdidos - por morte prematura - no país.3
Em 2012, o Sistema de Informações sobre Mortalidade (SIM) atingiu patamar satisfatório para análise do padrão de mortalidade, com média de 92% de cobertura, chegando a 100% em alguns estados.4 Entretanto, além da cobertura, o registro acurado é parâmetro de qualidade indispensável para uma análise confiável. Nos últimos anos, houve melhora na qualidade das estatísticas de causas externas, principalmente como resultado de ações das equipes das secretarias de saúde, que instituíram políticas de investigação e reclassificação das causas de óbito originais emitidas pelos médicos do Instituto Médico Legal (IML), com base na busca ativa de registros dessa mesma instituição. Apesar dessa melhora, ainda se observa grande proporção de óbitos classificados como causas externas não especificadas, ou de intenção indeterminada. Em 2013, o estado do Rio de Janeiro teve o maior percentual nacional de óbitos por causas externas de intenção indeterminada (12,5%), seguido pela Bahia (6,8%) e Rio Grande do Norte (6,3%).4
Desde a década de 1990, estudos alertam sobre problemas de qualidade no preenchimento da causa básica de morte pelos médicos legistas.5,6 Em São Paulo, constatou-se que o IML não utilizava as próprias informações para o preenchimento das declarações de óbito.5 Diante dessa constatação, uma razão aventada seria o temor, por parte dos legistas, em colocar a circunstância violenta como a causa básica de morte. Esses profissionais costumam descrever a lesão clínica, não utilizam a definição da Organização Mundial da Saúde (OMS), que exige a descrição da circunstância do acidente ou violência responsável pelas lesões que levaram à morte.6
Desde que o SIM foi implantado em 1975, a Secretaria de Estado de Saúde do Rio de Janeiro (SES/RJ) recorre a bases complementares, sobretudo aos registros de ocorrências policiais, para qualificar as informações sobre causas externas de óbitos certificadas por médicos legistas. Em 2007, a Lei Estadual nº 5.061 restringiu o acesso às informações policiais,7 o que resultou no aumento da proporção de óbitos por causas externas de intenção indeterminada. As rotinas para restabelecimento do relacionamento de dados entre o SIM, o IML e a Polícia Técnica Científica foram restabelecidas em 2014.8,9 Criou-se o Núcleo de Qualificação e Gestão da Informação sobre Mortes por Causas Externas, comissão permanente mantida com recursos técnicos e administrativos da SES/RJ e do Instituto de Segurança Pública da Secretaria de Estado de Segurança, para monitorar e analisar os dados.9 Desde 2014, a equipe de vigilância tem acesso aos arquivos de dados do IML e de ocorrências criminais da Polícia Civil do Estado do Rio de Janeiro, e aos arquivos do Serviço de Atendimento Móvel de Urgência (SAMU).
Até o momento, a maioria dos estudos publicados relata ações de reclassificação de causas externas de mortalidade a partir da busca ativa de casos no IML ou de dados veiculados na imprensa.1 O relacionamento determinístico de bases de dados de acidentes (Sistema de Informações sobre Mortalidade - SIM, Sistema de Informações Hospitalares do Sistema Único de Saúde - SIH/SUS e Polícia Rodoviária) foi utilizado para a melhoria da informação em cinco capitais do país, em 2012 e 2013, revelando a potencialidade dessa ferramenta para a qualificação dos óbitos por causas externas com causa básica mal definida.10
Este estudo teve por objetivo descrever a melhoria da qualidade do registro da causa básica de morte por causas externas a partir do relacionamento de dados dos setores Saúde, Segurança Pública e imprensa no estado do Rio de Janeiro, Brasil, em 2014.
Métodos
Estudo descritivo da melhoria da qualidade, por relacionamento determinístico de dados, dos óbitos por causas externas de intenção indeterminada e naturais por causa indeterminada ocorridos no estado do Rio de Janeiro em 2014.
O Rio de Janeiro é uma das 27 Unidades da Federação (UFs), com área de 43.780,172 km² e, de acordo com o Censo Demográfico de 2010, o terceiro estado mais populoso: com 8,4% da população do país, o Rio de Janeiro apresenta a maior densidade demográfica entre as UFs. O estado detém o segundo maior produto interno bruto (PIB) e a terceira maior taxa de alfabetização.11
O Rio de Janeiro dispõe de 12 postos do IML. Em 2014, o SIM/SES/RJ contabilizou 131.519 óbitos, 105.943 (80,5%) por causas naturais com declarações de óbito emitidas em serviços de saúde e 25.576 (19,5%) óbitos encaminhados ao IML do estado. Destes 25.576 óbitos encaminhados ao IML, as causas externas corresponderam a 13.916 (54,4%); foram encaminhados 11.600 (45,6%) óbitos por causas naturais, sendo 2.069 por causas naturais indeterminadas.
A fonte primária de dados dos óbitos foi o SIM, cujos registros foram relacionados com os bancos de dados da Segurança Pública (IML e Polícia Civil) e, de forma complementar, com os registros do SAMU e da imprensa. O banco de dados que tem como fonte a imprensa é constituído com base nas informações colhidas pela leitura diária de mídia eletrônica, função encarregada a técnico da SES/RJ. As variáveis-chave utilizadas para o relacionamento foram o nome do falecido, sua idade e município de ocorrência do óbito. O tempo transcorrido desde o início do processo até a correção dos dados qualificados no SIM, para disponibilização da base de dados do estudo e sua tabulação pelo Tabnet, foi de cerca de dez meses.
Foram investigados todos os óbitos por causa externa de intenção indeterminada (CID: Y10-Y34) e causa natural indeterminada (CID: R99) certificados pelo IML em 2014.
Os dados sóciodemográficos foram obtidos das informações registradas nas bases de dados do SIM: sexo (masculino, feminino ou ignorado), faixa etária (em anos: 0-9, 10-19, 20-39, 40-59, 60-69, 70 ou +, ignorada), raça/cor da pele (branca, preta, parda, outra [amarela ou indígena], ignorada), local do óbito (estabelecimento de saúde, domicílio, via pública, outros) e região administrativa (Baia da Ilha Grande, Baixada Litorânea, Centro-Sul, Médio Paraíba, Metropolitana I, Metropolitana II, Noroeste, Norte, Serrana, outras).
A Figura 1 resume o processo de trabalho para reclassificação. O estágio 1 do relacionamento determinístico consiste na obtenção de todos os óbitos por causas externas registrados no SIM, além dos óbitos por causas naturais indeterminadas nas bases suplementares (IML e Polícia Civil) no estado do Rio de Janeiro em 2014 (passo 1). Todos os óbitos do IML são comparados aos do SIM em nova base relacionada (passo 2), a qual será, por sua vez, relacionada ao banco da Polícia Civil (passo 3). O passo 4 é o processo de busca no SIM dos casos encontrados na Polícia Civil e que não estavam no registro do IML. A revisão desses passos de relacionamento, corrigindo pequenas variações nos dados (por exemplo, troca de letras em nomes), dá origem ao banco com todas as declarações de óbito encontradas nas três bases (passo 5).
Legenda:
SIM: Sistema de Informações sobre Mortalidade.
IML: Instituto de Medicina Legal.
SAMU: Serviço de Atendimento Móvel de Urgência.
SES-RJ: Secretaria Estadual de Saúde do estado do Rio de Janeiro.
SMS: Secretaria Municipal de Saúde.
No estágio 2, são selecionadas todas as causas externas de intenção indeterminada (CID: Y10-Y34) e os códigos R99 de causas naturais, a partir de um novo arquivo com os registros validados no passo 5 (passos 6 e 7). O passo 8 consiste na verificação da existência de informações, em qualquer dos três bancos de dados, aptas a qualificar as causas básicas de morte. O passo 9 consiste na consolidação de todos os registros cujas causas básicas de morte foram determinadas no passo 8. Os registros cujas causas ainda não foram esclarecidas são encaminhados ao técnico da Polícia Civil, que busca novos dados em registros da investigação policial do óbito (passo 10). Então, é feita a consolidação das causas determinadas pela investigação policial (passo 11). Finalmente, os registros com causas indeterminadas residuais são confrontados com os arquivos do SAMU e com óbitos de causas violentas publicados na imprensa, extraindo-se os eventuais elementos satisfatórios à pesquisa (passo 12).
No estágio 3, é criado um novo arquivo com todos os registros pesquisados e já com todas as circunstâncias recuperadas (passo 13). Desse arquivo, os registros são revisados e codificados na SES/RJ (passo 14) e enviados para as respectivas secretarias municipais de saúde, responsáveis pela alteração no SIM, sob supervisão da SES (passos 15 a 17).
As variáveis-chave utilizadas para relacionamento foram: registro de ocorrência policial, registro da declaração de óbito e nome do morto, bem como a combinação dessas em casos específicos, para formação de entidades. Também foi utilizado o nome da mãe, a idade, a data de ocorrência e o município do óbito e de residência da vítima. O relacionamento de dados foi feito pelo aplicativo Access da Microsoft e pelo operador de busca fonética do aplicativo ArcGIS,12 este último cedido pelos técnicos do Instituto de Segurança Pública. O ArcGIS gera escores de 0 a 100% quando do cruzamento dos fonemas de nomes das vítimas nas bases de dados; foram validados os relacionamentos com valores iguais ou superiores a 90%.
O projeto do estudo foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa da Universidade Federal de Minas Gerais: Certificado de Apresentação para Apreciação Ética (CAAE) nº 75555317.0.0000.5149, em 20/09/2017. Foram utilizadas informações sobre causas de morte em declarações de óbito disponibilizadas no SIM do Ministério da Saúde, em bancos de dados de uso restrito aos técnicos da SES/RJ, os quais, habitualmente, têm acesso a esse tipo de informação e compromisso ético quanto à preservação da identidade do falecido.
Resultados
Comparados aos 25.576 registros do SIM, 19.066 (74,5%) estavam presentes em ambas as bases, 1.831 (7,2%) foram encontrados apenas na base do IML e 1.819 (7,1%) somente na base da Polícia Civil; 2.860 (11,2%) apenas constavam no SIM e não foram encontrados nas demais bases.
Quanto à participação das bases na reclassificação dos 5.836 registros inicialmente identificados com causas externas indeterminadas no SIM, observou-se que, isoladamente, a base da Polícia Civil respondeu por 2.148 (36,8%) e o IML por 1.211 (20,8%) dos registros reclassificados. A partir de dados da imprensa e do SAMU, foi possível reclassificar 1.454 (24,9%) e 65 (1,1%) registros, respectivamente. Após todo o processo, não foi possível melhorar a causa básica de morte em 958 (16,4%) registros.
A Tabela 1 é uma matriz de contingência que sintetiza o processo de reclassificação entre os principais grupos de causas, antes e após investigação. O número de registros de causas indeterminadas de óbito reduziu-se, de 5.836 (41,9%) para 958 (6,9%) entre os óbitos encaminhados ao IML. Esta redução leva ao aumento relativo na ocorrência de todas as causas externas: acidentes de transporte (93,0%), agressões (71,6%), intervenção legal (744,7%), lesões autoinfligidas (112,0%) e outros acidentes (29,9%).
Tipos de causas | Acidente de trânsito | Agressão | Intervenção legal | Lesão autoinfligida | Outros acidentes | Intenção indeterminada | Causas naturais | Indeterminada (R99) | Total (antes) |
---|---|---|---|---|---|---|---|---|---|
Acidente de trânsito | 1.528 | 3 | - | - | 16 | 1 | - | - | 1.548 |
Agressão | 8 | 3.103 | 19 | 2 | 9 | 6 | - | - | 3.147 |
Intervenção legal | - | - | 38 | - | - | - | - | - | 38 |
Lesão autoinfligida | - | - | - | 243 | 2 | - | - | - | 245 |
Outros acidentes | 96 | 51 | - | 7 | 2.896 | 33 | 19 | - | 3.102 |
Intenção indeterminada | 1.323 | 2.117 | 262 | 251 | 939 | 901 | 43 | - | 5.836 |
Causas naturais | 27 | 2 | - | 3 | 113 | 11 | 9.455 | - | 9.611 |
Indeterminada (R99) | 7 | 125 | 2 | 14 | 54 | 6 | 1.841 | - | 2.049 |
Total (depois) | 2.989 | 5.401 | 321 | 520 | 4.029 | 958 | 11.358 | - | 25.576 |
Das 2.069 causas naturais indeterminadas (R99), 1.841 eram causas naturais que não deveriam ter sido encaminhadas ao IML. Das restantes 228 causas externas inicialmente registradas com o código R99, foi possível qualificar 222 (97,4%) causas, a maioria (125) por homicídios.
A Tabela 2 descreve as características sociodemográficas dos óbitos com causas de intenção indeterminada, antes e após a reclassificação. Com relação ao sexo, observou-se maior proporção de causas indeterminadas entre os homens (78,4%), com redução da diferença entre os sexos após a reclassificação (homens = 55%). Antes da reclassificação, havia maior proporção de causas indeterminadas entre os adultos jovens (20-39 anos = 35,6%) e os idosos (≥70 anos = 19,8%). A reversão da causa básica de morte mal definida foi proporcionalmente maior entre crianças e adultos até 59 anos, o que levou ao aumento relativo de causas indeterminadas entre os idosos após a investigação, que passaram a representar 52,6% dos casos não definidos após o relacionamento de dados. Havia maior proporção de óbitos por causas externas indeterminadas em pessoas de raça/cor da pele parda, situação revertida com a reclassificação. A reclassificação também permitiu redução das causas indeterminadas de ocorrências em vias públicas, de 21 para 8,5%, e aumento relativo dos casos em estabelecimentos de saúde, de 50,6 para 74,7% dos casos. Ao se comparar as regiões administrativas do estado, foram observadas diferenças na variação percentual dos óbitos por causas externas de intenção indeterminada. Os maiores percentuais de causas externas mal definidas, antes 81,0% e após qualificação 73,5%, foram encontrados na região administrativa Metropolitana I, que abarca a capital do estado.
Características | Número de causas de intenção indeterminada | Proporção entre as causas de intenção indeterminada (%) | Proporção entre as causas externas (%) | |||
---|---|---|---|---|---|---|
Antes N=5.836 | Depois N=958 | Antes N=5.836 | Depois N=958 | Antes N=13.916 | Depois N= 14.218 | |
Sexo | ||||||
Masculino | 4.578 | 527 | 78,4 | 55,0 | 32,9 | 3,7 |
Feminino | 1.208 | 409 | 20,7 | 42,7 | 8,6 | 2,9 |
Ignorado | 50 | 22 | 0,9 | 2,3 | 0,4 | 0,2 |
Subtotal | 5.836 | 958 | 100,0 | 100,0 | 41,9 | 6,7 |
Faixa etária (em anos) | ||||||
≤9 | 44 | 4 | 0,8 | 0,4 | 0,3 | 0,1 |
10-19 | 705 | 27 | 12,1 | 2,8 | 5,1 | 0,2 |
20-39 | 2.079 | 88 | 35,6 | 9,2 | 14,9 | 0,6 |
40-59 | 1.143 | 136 | 19,6 | 14,2 | 8,2 | 0,9 |
60-69 | 397 | 88 | 6,8 | 9,2 | 2,9 | 0,6 |
≥70 | 1.156 | 504 | 19,8 | 52,6 | 8,3 | 3,5 |
Ignorada | 312 | 111 | 5,3 | 11,6 | 2,2 | 0,8 |
Subtotal | 5.836 | 958 | 100,0 | 100,0 | 41,9 | 6,7 |
Raça/cor de pele | ||||||
Branca | 2.211 | 518 | 37,9 | 54,1 | 15,9 | 3.6 |
Preta | 829 | 118 | 14,2 | 12,3 | 5,9 | 0,8 |
Parda | 2.529 | 243 | 43,4 | 25,4 | 18,2 | 1,7 |
Outra | 14 | 3 | 0,2 | 0,3 | 0,1 | 0,1 |
Ignorada | 253 | 76 | 4,3 | 7,9 | 1,8 | 0,5 |
Subtotal | 5.836 | 958 | 100,0 | 100,0 | 41,9 | 6,7 |
Local do óbito | ||||||
Estabelecimento de saúde | 2.953 | 716 | 50,6 | 74,7 | 21,2 | 5,0 |
Domicílio | 400 | 67 | 6,9 | 7,0 | 2,9 | 0,5 |
Via pública | 1.227 | 81 | 21,0 | 8,5 | 8,8 | 0,6 |
Outros | 1.256 | 94 | 21,5 | 9,8 | 9,0 | 0,6 |
Região administrativa | ||||||
Baia Grande | 10 | 6 | 0,2 | 0,6 | 0,1 | 0,04 |
Baixada Litorânea | 83 | 34 | 1,4 | 3,6 | 0,6 | 0,24 |
Centro-Sul | 18 | 9 | 0,3 | 0,9 | 0,1 | 0,06 |
Médio Paraíba | 25 | 7 | 0,4 | 0,7 | 0,2 | 0.05 |
Metropolitana I | 4.727 | 704 | 81,0 | 73,5 | 33,9 | 4,95 |
Metropolitana II | 739 | 118 | 12,7 | 12,4 | 5,3 | 0,83 |
Noroeste | 25 | 11 | 0,4 | 1,1 | 0,2 | 0,08 |
Norte | 57 | 13 | 1,0 | 1,4 | 0,4 | 0,09 |
Serrana | 142 | 52 | 2,4 | 5,4 | 1,0 | 0,37 |
Outras | 10 | 4 | 0,2 | 0,4 | 0,1 | 0,03 |
Total | 5.836 | 958 | 100,0 | 100,0 | 41,9 | 6,74 |
A Tabela 3 mostra a distribuição dos óbitos por causas externas de intenção indeterminada antes e após o relacionamento de dados, e a mudança nos valores da mortalidade proporcional por causa no estado do Rio de Janeiro, em 2014. Observa-se que a redução expressiva dos óbitos por causas indeterminadas aumentou a relevância dos acidentes de transporte e agressões no perfil de mortalidade do estado, seja na mortalidade geral, seja na proporção de óbitos por causas externas.
Óbitos por causas externas | Número de óbitosa | Mortalidade proporcional por causab | Proporção de óbitos por causas externasc | |||
---|---|---|---|---|---|---|
Antes (n) | Depois (n) | Antes (%) | Depois (%) | Antes (%) | Depois (%) | |
Acidente de transporte | 1.548 | 2.989 | 1,17 | 2,27 | 11,12 | 21,02 |
Agressão | 3.147 | 5.401 | 2,39 | 4,11 | 22,61 | 37,99 |
Intervenção legal | 38 | 321 | 0,03 | 0,24 | 0,27 | 2,26 |
Lesão autoinfligida | 245 | 520 | 0,19 | 0,40 | 1,76 | 3,66 |
Outros acidentes | 3.102 | 4.029 | 2,36 | 3,06 | 22,29 | 28,34 |
Intenção indeterminada | 5.836 | 958 | 4,44 | 0,73 | 41,93 | 6,74 |
Total | 13.916 | 14.218 | 10,58 | 10,81 | 100,00 | 100,00 |
a) Dados antes e após relacionamento.
b) Percentual em relação ao total de 131.519 óbitos ocorridos no estado do Rio de Janeiro em 2014.
c) Percentual de óbitos por causas externas em relação ao total de causas externas, antes do relacionamento (13.916) ou depois do relacionamento (14.218).
Discussão
Todo óbito por causa externa, em tese, deveria estar presente nos arquivos do SIM, do IML e da Polícia Civil. Entretanto, o relacionamento determinístico dos dados mostrou discrepância. No estado do Rio de Janeiro, em 2014, a reclassificação das declarações de óbito a partir do relacionamento de dados institucionais permitiu substancial redução das causas externas de intenção indeterminada, com melhoria do perfil de mortalidade geral e por causas externas. O relacionamento de dados de bases públicas, garantido por medida legal, pode contribuir, substancialmente, na redução dos custos da busca ativa no IML, além de garantir a sustentabilidade das ações.
Ressalta-se que 11,2% dos registros de causas externas constantes do SIM não foram encontrados nas demais bases. Este dado revela a certificação de causas externas de morte que não foram para o IML. Isto pode ocorrer devido à notificação de causas externas em municípios onde não há IML; ou então, à notificação incorreta de causas externas por estabelecimentos de saúde, provavelmente de pacientes internados que só vêm a óbito algum tempo após a circunstância do acidente ou violência.
Assim como em todo o Brasil, no Rio de Janeiro, os homicídios e os acidentes de transporte respondem pelo maior número de causas externas de óbitos.2 A reclassificação das causas externas de intenção indeterminada mostra que causas de morte violenta seriam subenumeradas para o SIM, se não fosse feita a busca das circunstâncias em outros bancos. É imprescindível manter ou mesmo aumentar as ações de reclassificação dessas informações no país, pois a eficácia da prevenção depende da correta apreciação da magnitude desse problema.
A maior proporção de causas indeterminadas em homens, jovens e de raça/cor da pele parda é reflexo do perfil de mortalidade por causas externas, mais comum nesses estratos sociodemográficos. Entre 2011 e 2013, quando da investigação de códigos mal definidos no município de Belo Horizonte, também foi encontrada alta proporção de causas externas de intenção indeterminada e de acidentes de trânsito sem especificação do tipo, entre os jovens de 5 a 29 anos.13 A maior proporção de casos de causas externas de intenção indeterminada em estabelecimentos de saúde pode-se atribuir ao encaminhamento pelo SAMU dos casos graves de acidente de trânsito e violência, posteriormente encaminhados ao IML quando do óbito.
A qualificação de declarações de óbito certificadas por legistas do IML já é prática antiga no país. Nos anos de 1995 e 1996, foi demonstrada baixa concordância entre as causas básicas de morte por acidentes e violências em menores de 18 anos residentes no município de Duque de Caxias, Rio de Janeiro, ao se comparar as codificações feitas a partir das declarações de óbitos emitidas pelo médico legista com as reclassificadas pela secretaria municipal de saúde (SMS), a partir de informações obtidas dos laudos necroscópicos do IML e dos registros de ocorrência policial.14 Também em Belo Horizonte já se registrava a subclassificação de óbitos por acidentes de trânsito desde a década de 1990, com baixa concordância (Kappa=0,124 - IC95% 0,1555;0,4022) entre a classificação da causa básica de morte por acidentes de trânsito, feita pelos médicos legistas, e a codificação final do SIM, esta feita pelos profissionais da SMS.15 Entre 1998 e 2001, em amostra aleatória de 411 declarações de óbito com causas externas como causa básica de óbito, foi observada concordância apenas moderada (Kappa=0.602 - IC95% 0.563;0.641) entre a causa básica de morte registrada pelos legistas e a notificada pela SMS de Belo Horizonte, o que significa que grande parte das causas básicas de morte certificadas no IML passa por correção pelos técnicos da secretaria.16
Apesar de a melhor qualificação dos óbitos por causas externas - após reclassificação das declarações de óbito - ser fato demonstrado há décadas, o percentual de causas mal preenchidas continua alto. Como ressaltado em publicações anteriores, o papel do médico legista é fundamental para a redução das causas externas de intenção indeterminada. Se não houver melhor preenchimento da declaração de óbito pelo médico, a correção posterior dos dados implicará gastos públicos do setor Saúde. Uma das razões por que as informações do IML não se transformam em informações mais consubstanciadas para a área da Saúde pode ser de cunho organizacional. Enquanto dados de mortalidade por causas naturais provêm quase que exclusivamente das unidades de saúde, as causas externas certificadas pelo IML são fontes oficiais dos dados de mortalidade da secretaria de segurança. Os objetivos distintos desses órgãos e o não entendimento da importância da função social dessa informação estão entre as causas de perda de qualidade dos dados de mortalidade por causas externas.17
No Brasil, a declaração de óbito deve ser emitida logo após o falecimento, já que esse documento é mandatório para o sepultamento. Muitos médicos alegam constrangimento para marcar a provável circunstância do óbito no campo 18 da declaração de óbito (homicídio, suicídio ou acidente de trânsito), devido à expectativa criada na família sob circunstâncias que muitas vezes só serão definidas por exames em andamento, ou posterior inquérito policial. Em outros países, a exemplo dos Estados Unidos, o preenchimento da parte médica da declaração de óbito pode ocorrer até seis dias após a morte, o que facilita a incorporação de resultados de exames e de investigação policial.18 Já na Colômbia, há um certificado de óbito prévio, apenas para fins de registro civil, sem menção às circunstâncias de morte, as quais não precisam constar do documento que a família recebe para encaminhamento ao cartório.19 Neste momento em que o Brasil discute a implantação da declaração de óbito eletrônica, talvez fosse interessante a discussão de mudanças que possibilitem um melhor preenchimento dos campos médicos da declaração de óbito.
O elevado número de causas naturais encaminhado ao IML é provável fator de sobrecarga do serviço, podendo interferir na qualidade do mesmo. O Rio de Janeiro, assim como muitos outros estados brasileiros, ainda não possui um Serviço de Verificação de Óbito (SVO), local apropriado para encaminhamento de casos de morte naturais cuja causa básica de morte necessite de investigação. Em 2017, o Ministério Público do Estado do Rio de Janeiro ajuizou uma ação pública a exigir do município e do estado do Rio de Janeiro providências para instalação desse serviço, tanto no estado como na capital.20 Entretanto, não se pode fugir ao dever e desafio de qualificar o médico no preenchimento da declaração de óbito. Ao legista, que tende a preencher a declaração de óbito com a descrição das lesões que seu exame evidencia, deve ser ofertada a informação da importância epidemiológica do registro das circunstâncias da morte.
Este estudo tem por limitação não ter sido desenhado para investigar o impacto da reclassificação por causas específicas, uma vez que analisa uma atividade de rotina do serviço. Ademais, as variáveis sociodemográficas obtidas das declarações de óbito também sofrem com problemas de incompletude e qualidade da informação, como pode ser observado pelos dados faltantes na Tabela 2.
Em conclusão, a melhoria da informação e a exequibilidade da qualificação dos óbitos por causas externas no estado do Rio de Janeiro, utilizando-se do relacionamento de dados institucionais disponíveis em todas as UFs, motivou os autores do estudo a compartilhar o êxito desta sua experiência e recomendá-la aos gestores do SIM, no país.