Introdução
A hanseníase é uma doença tropical negligenciada (DTN), causada pelo Mycobacterium leprae. Trata-se de um bacilo álcool-ácido resistente (BAAR) com predileção por células da pele e dos nervos periféricos, reSultando em lesões de natureza dermatoneurológicas e, por conseguinte, possibilidade de acarretar importantes comprometimentos físicos, funcionais e psicológicos para os indivíduos afetados.1-3
Desde a implantação da poliquimioterapia no início da década de 1980, a ocorrência da hanseníase tem-se reduzido progressivamente em todo o planeta. Não obstante todos os esforços empreendidos, somente em 2016, no mundo, a doença afetou mais de 214 mil pessoas, das quais mais de 18 mil crianças. Desses novos casos, mais de 12 mil pessoas já apresentavam incapacidades físicas permanentes.4,5
O Brasil é o único país do mundo onde não se conseguiu atingir o patamar de eliminação da doença, ou seja, prevalência inferior a 1 caso para 10 mil habitantes.3 Embora o número de doentes tenha decrescido nos últimos anos, em 2016 o país ainda ocupava a primeira colocação no ranking mundial da taxa de detecção de casos novos e a segunda posição no número absoluto de casos diagnosticados, ficando atrás apenas da Índia.4-7
Entre 2012 e 2016, segundo dados do Ministério da Saúde, foram notificados 151.764 casos novos de hanseníase, com uma taxa de detecção de casos novos igual a 14,97/100 mil habitantes, o que classificou o país como de alta endemicidade. Naquele mesmo período, a taxa de detecção de casos novos na população de 0 a 14 anos foi igual a 4,5/100 mil hab., também classificando o país como de endemicidade alta nessa faixa etária.6
No Nordeste, a distribuição da hanseníase não é homogênea. Enquanto o Rio Grande do Norte registrou em 2016 uma taxa de 5,7 casos novos para cada 100 mil hab., o estado do Maranhão registrou 47,3/100 mil hab. O estado da Bahia tem ocupado uma posição intermediária, sendo o décimo terceiro no ranking dos estados brasileiros e o sexto entre os estados do Nordeste, considerando-se a taxa de detecção de casos novos registrados em 2015. Em número absoluto de casos, a Bahia ocupou a segunda posição na população geral (2.077 casos) e a terceira na população de 0 a 14 anos (116 casos).7
Estudos espaciais de abordagem da hanseníase têm contribuído para a compreensão de sua dinâmica de transmissão, identificação dos fatores associados a sua ocorrência, bem como as áreas prioritárias para intervenção.8-11 Quanto às ferramentas utilizadas nesses estudos, destaca-se a modelagem bayesiana empírica local, cuja finalidade é reduzir a flutuação aleatória dos dados a partir da produção de taxas corrigidas e, portanto, mais estáveis.12,13
Este trabalho teve como objetivo comparar a evolução temporal e a distribuição espacial dos indicadores epidemiológicos de hanseníase brutos e corrigidos pelo modelo bayesiano empírico, na Bahia, no período 2001-2012, contribuindo para a compreensão da dinâmica da doença no estado.
Métodos
Trata-se de um estudo ecológico tendo como base territorial de análise o estado da Bahia, composto por 417 municípios e uma população de 14.016.906 habitantes, segundo o Censo Demográfico de 2010.14
Os dados referentes aos casos novos de hanseníase diagnosticados e notificados entre 2001 e 2012 foram obtidos do Sistema Nacional de Agravos de Notificação (Sinan), a partir da base de dados do Departamento de Informática do Sistema Único de Saúde (Datasus): http://www2.datasus.gov.br.15 Foram incluídos apenas os casos novos, e excluídos os casos encerrados como erro de diagnóstico e as duplicidades. Já os dados populacionais utilizados, também resultantes do Censo de 2010, foram disponibilizados pela Fundação Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE),16 além de projeções intercensitárias para os demais anos.
Foram selecionados três indicadores para análise, conforme dispõe a Portaria do Ministério da Saúde GM/MS nº 149, de 3 de fevereiro de 2016.17
Indicador 1 - Taxa de detecção de casos novos de hanseníase na população geral por 100 mil habitantes;
Indicador 2 - Taxa de detecção de casos novos de hanseníase em menores de 15 anos de idade por 100 mil habitantes; e
Indicador 3 - Taxa de casos novos de hanseníase com grau 2 de incapacidade física no momento do diagnóstico por 100 mil habitantes.
Para cada indicador, foram definidas as categorias referentes aos parâmetros de sua interpretação, adotados pelo Ministério da Saúde do Brasil17 e descritos a seguir.
a) Taxa de detecção de casos novos de hanseníase na população geral:
- baixo, <2,00 por 100 mil habitantes;
- médio, 2,00 a 9,99 por 100 mil habitantes;
- alto, 10,00 a 19,99 por 100 mil habitantes;
- muito alto, 20,00 a 39,99 por 100 mil habitantes; e
- hiperendêmico, ≥ 40,00 por 100 mil habitantes.
b) Taxa de detecção de casos novos de hanseníase na população de 0 a 14 anos de idade:
- baixo, <0,50 por 100 mil habitantes;
- médio, 0,50 a 2,49 por 100 mil habitantes;
- alto, 2,50 a 4,99 por 100 mil habitantes;
- muito alto, 5,00 a 9,99 por 100 mil habitantes; e
- hiperendêmico, ≥10,00 por 100 mil habitantes.
c) Para a taxa de casos novos de hanseníase com grau 2 de incapacidade física, por não haver parâmetros definidos pelo Ministério da Saúde, adotamos os mesmos parâmetros utilizados para análise da taxa de detecção em menores de 15 anos.
Foi construída uma base de dados para o cálculo dos indicadores. Inicialmente, foi realizado o cálculo para todo o período (2001 a 2012), seguido de estratificação em cinco períodos de tempo (2001-2005, 2003-2007, 2005-2009, 2007-2011 e 2009-2012); foi utilizado o princípio da média móvel, segundo o qual os períodos se sobrepõem, objetivando-se, desse modo, reduzir os ruídos da série temporal.18 No cálculo dos indicadores para os períodos, foi adotada a seguinte fórmula: média de casos do período/população do meio do período x 100 mil.
Na etapa seguinte, aplicou-se o modelo bayesiano empírico local12-13,19 para os três indicadores analisados, com o propósito de suavizar as taxas para cada município/período. Tal modelo tem como objetivo identificar a distribuição a posteriori (quantidades não observadas de determinado fenômeno), a partir da aplicação do teorema de Bayes, envolvendo dados amostrais (função de verossimilhança), e de um conjunto de dados observados (distribuição a priori).9,10 Esse procedimento foi realizado utilizando-se o software livre Terra View versão 4.2.2, disponibilizado pelo Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (INPE).
Subsequentemente, um vetor de diferença foi calculado (taxa observada menos taxa estimada), para permitir a construção de mapa temático das diferenças, sendo as áreas classificadas como “neutras”, “negativas” ou “positivas”. Quando a diferença entre as taxas ficou situada entre -1 e +1, as áreas foram classificadas como “neutras” (taxas observadas não diferem das estimadas); quando a diferença foi menor do que -1, áreas “negativas” (taxas estimadas são maiores do que as observadas); e quando a diferença foi maior do que +1, áreas “positivas” (taxas observadas são maiores do que as estimadas). As áreas classificadas como negativas podem sugerir a existência de subnotificação da hanseníase, e as áreas positivas, melhor capacidade de vigilância da doença.
Para analisar se as médias dos indicadores observados e estimados eram diferentes, aplicou-se o teste t de Student pareado, utilizando-se o software Statistical Package for Social Sciences (SPSS) versão 22.0. Foi calculado o desvio-padrão das médias. Adotou-se significância de 5%.
Os mapas temáticos finais foram construídos pelo software livre QGis versão 2.14.11, disponibilizado pela Open Source Geospatial Foundation (OSGeo). A malha territorial do estado da Bahia foi obtida do IBGE, em formato shapefile (shp).
O estudo foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa da Universidade Federal de Alagoas: Certificado de Apresentação para Apreciação Ética (CAAE) nº 70943617.5.0000.5013 e Parecer nº 2.212.723, de 10 de agosto de 2017.
Resultados
No período de 2001 a 2012, foram notificados 35.176 casos novos de hanseníase no estado da Bahia. Desse total, 2.868 (8,15%) foram registrados em menores de 15 anos de idade e 1.612 (4,58%) tinham grau 2 de incapacidade no momento do diagnóstico.
Na Tabela 1, encontra-se a distribuição das taxas de detecção de casos novos de hanseníase na população geral, a taxa de detecção de casos novos de hanseníase na população de 0 a 14 anos e a taxa de casos novos de hanseníase com grau 2 de incapacidade física no momento do diagnóstico, observadas e estimadas pelo modelo bayesiano empírico local. Os três indicadores apresentaram valores estimados superiores aos observados. Para as taxas de detecção de casos novos na população geral e na população de 0 a 14 anos, foi encontrada significância estatística em todos os períodos. Já para a taxa de casos novos com grau 2 de incapacidade física no momento do diagnóstico, foi encontrada significância nos períodos 2001-2005 (p=0,002) e 2001-2012 (p=0,029).
Indicador | Período | Observado Média ± DPa | Estimado Média ± DPa |
---|---|---|---|
Taxa de detecção de casos novos na população geral/100 mil habitantes | 2001-2005 | 17,7±46,3 | 19,9±44,9b |
2003-2007 | 19,9±44,9 | 22,0±43,1b | |
2005-2009 | 17,4±27,1 | 19,5±24,5b | |
2007-2011 | 14,5±19,1 | 16,9±17,0b | |
2009-2012 | 14,3±18,7 | 16,7±16,6b | |
2001-2012 | 16,5±28,4 | 18,8±26,6b | |
Taxa de detecção de casos novos na população de 0 a 14 anos/100 mil hab. | 2001-2005 | 4,6±19,9 | 5,4±18,3b |
2003-2007 | 5,0±19,0 | 5,8±16,9b | |
2005-2009 | 4,5±11,6 | 5,4±8,1b | |
2007-2011 | 3,1±6,3 | 4,4±4,9b | |
2009-2012 | 3,0±6,0 | 4,5±5,1b | |
2001-2012 | 3,9±11,5 | 4,8±9,5b | |
Taxa de casos novos de hanseníase com grau 2 de incapacidade física no momento do diagnóstico/100 mil hab. | 2001-2005 | 1,8±3,8 | 2,3±2,5b |
2003-2007 | 2,5±5,0 | 2,9±3,1 | |
2005-2009 | 3,1±5,6 | 3,6±3,5 | |
2007-2011 | 3,3±6,1 | 3,7±3,4 | |
2009-2012 | 3,1±6,5 | 3,5±3,3 | |
2001-2012 | 2,5±4,0 | 2,9±2,5b |
a) DP: desvio-padrão.
b) Teste t de Student significativo.
Destaca-se que, enquanto as taxas de detecção geral e na população de 0 a 14 anos decresceram ao longo do período avaliado, o inverso ocorreu com a taxa de casos novos com grau 2 de incapacidade física no momento do diagnóstico, que passou de 1,8/100 mil para 3,1/100 mil nos dados observados e de 2,9/100 mil para 3,5/100 mil no modelo estimado (Tabela 1).
Quando analisada a taxa de detecção de casos novos na população geral, entre 2001 e 2012, a endemicidade foi classificada como baixa em 11,3% dos municípios (n=47), média em 45,1% (n=188), alta em 19,7% (n=82), muito alta em 13,6% (n=57) e hiperendemia em 8,4% (n=35). Em 1,9% (n=8) dos municípios, nenhum caso foi registrado no período. Ao aplicar o modelo bayesiano empírico local, o número de municípios classificados como de alta endemicidade dobrou de valor, passando para 39,3% (n=164). Aumento também foi verificado na faixa de hiperendemia, cuja proporção de municípios subiu para 10,3% (n=43). Nas demais faixas, houve redução pós-modelo: baixa=2,2% (n=9); média=37,4% (n=156); e muito alta=10,8% (n=45). Os municípios com maior carga da doença concentraram-se no eixo Norte-Oeste e na região Sul no estado (Figura 1).
Quando analisada a taxa de detecção de casos novos na população de 0 a 14 anos, entre 2001 e 2012, 43,6% (n=182) dos municípios não diagnosticaram nenhum caso no período e nenhum município foi considerado com padrão de endemicidade baixa; em 23,0% (n=96), a endemicidade foi classificada como média; em 13,9% (n=58), alta; em 10,6% (n=44), muito alta; e em 8,9% (n=37), hiperendemia. Houve aumento do número de município em todas as faixas de classificação: baixa=5,8% (n=24); média=44,4% (185); alta=22,5% (94); muito alta=15,3% (64); e hiperendemia=12,0% (n=50). As maiores taxas concentraram-se no eixo Norte-Oeste e região Sul do estado (Figura 1).
Quanto à taxa de casos novos de hanseníase com grau 2 de incapacidade física no momento do diagnóstico, 37,8% (n=158) dos municípios não diagnosticaram nenhum doente com esse tipo de incapacidade; em 26,6% (n=111), a taxa ficou situada entre 0,5 e 2,4/100 mil (média endemicidade); em 21,6% (n=90), a taxa situou-se entre 2,5 e 4,9/100 mil (alta endemicidade); em 10,6% (n=44), entre 5 e 9,9/100 mil (muito alta); e em apenas 3,4% (n=14), a taxa foi igual ou superior a 10/100 mil (hiperendemia). Após a aplicação do modelo, observou-se um aumento do número de municípios nas três primeiras faixas de classificação, com destaque para a proporção dos municípios classificados como de média endemicidade, que alcançou 50,4% (n=210), baixa=5,3% (n=22), alta=33,1% (n=138), muito alta=8,6% (n=36) e hiperendemia=2,6% (n=11) (Figura 2). Importante ainda destacar que as áreas mais críticas, cujas taxas analisadas foram maiores, estão localizadas no eixo Norte-Oeste e na região Sul do estado.
No momento seguinte, buscou-se analisar a dinâmica temporal e espacial da hanseníase no estado da Bahia, considerando-se os três indicadores selecionados para análise. Sobre a taxa de detecção na população geral, observou-se uma pequena proporção de municípios classificados como de baixa endemicidade, com variação entre 0,9 e 2,1% (n=4 e n=9). Por sua vez, o número de municípios classificados como de média e de alta endemicidade aumentou ao longo dos períodos estudados. No primeiro período da série (2001-2005), 74,1% municípios (n=309) foram classificados como de média ou de alta endemicidade, enquanto no último período, esse percentual aumentou para 76,7% (n=320). A proporção de municípios classificados como hiperendêmicos reduziu-se, ao longo da série, de 12,5% (n=52), no período 2001-2005, para 10,3% (n=43) no período 2009-2012 (Figura 3).
No que se refere à taxa de detecção de casos novos na população de 0 a 14 anos de idade, chama a atenção o crescimento proporcional de municípios classificados como hiperendêmicos. Se no período 2001-2005, 10,8% (n=45) eram hiperendêmicos, no período 2009-2012 essa proporção foi de 12,9% (n=54). Assim como ocorreu com a taxa de detecção geral, a maior parte dos municípios foram classificados como de média ou de alta endemicidade: 61,2% (n=255), no período 2001-2005, e 60,9% (n=254) no período 2009-2012 (Figura 3).
Quando se analisou a taxa de grau 2 de incapacidade física no momento do diagnóstico, observou-se um aumento de municípios classificados como de alta endemicidade, muito alta e hiperendemia. A proporção de municípios classificados como de endemicidade alta passou de 20,6% (n=86), no período 2000-2005, para 40,8% (n=170) no período 2009-2012; a proporção de municípios classificados como de endemicidade alta passou de 8,2% (n=34) para 11,5% (n=48), e os hiperendêmicos, de 1,9% (n=08) para 4,6% (n=19) (Figura 3). De acordo com os três indicadores, a evolução da doença mostrou concentração nas regiões Norte, Oeste e Sul do estado.
Também foram elaborados mapas temáticos das diferenças entre os indicadores observados e estimados (Figura 4). No que tange à taxa de detecção geral de casos novos, 60,7% (n=253) dos municípios apresentaram diferença negativa (menor que -1), ou seja, a taxa estimada foi superior à observada. Por sua vez, em 25,9% (n=108) dos municípios, a diferença foi positiva (maior que +1), ou seja, a taxa estimada foi inferior à observada. Nos demais 13,4% (n=56) de municípios baianos, a diferença ficou situada entre -1 e +1, considerada neutra. Quanto à taxa de casos novos na população de 0 a 14 anos, a proporção de municípios com diferença negativa foi de 50,1% (n=209); em 31,2% (n=130), a diferença esteve entre -1 e +1; e em 18,7% (n=78) dos municípios, a diferença foi positiva. Quando analisada a taxa de casos novos com grau 2 de incapacidade física no momento do diagnóstico, 42,0% (n=175) dos municípios apresentaram diferença negativa, em 35,7% (n=149) a diferença foi neutra e em 22,3% (n=93), positiva (Figura 4).
Discussão
O emprego da análise espacial no campo da Saúde Coletiva tem possibilitado importantes avanços na compreensão da história natural das doenças, na identificação de áreas de risco ou silenciosas e na avaliação do impacto das políticas públicas na carga de determinados problemas de saúde, caso da hanseníase.12,13,19
A série temporal analisada neste estudo mostrou que a magnitude da hanseníase tem decrescido no estado da Bahia, tanto na população geral como na população de 0 a 14 anos de idade. Mesmo diante da redução das taxas, os valores evidenciados no estado são muito superiores aos padrões globais de ocorrência da doença. No mundo, em 2014, a taxa de detecção na população geral foi de 3 casos novos/100 mil habitantes, ou seja, 4,7 vezes menor do que o indicador observado na última série analisada nesse estudo (2009-2012).4
Na população menor de 15 anos, o cenário assemelha-se ao verificado na população geral. Embora seja observada uma redução da taxa de casos novos, a hanseníase ainda afeta um importante contingente de indivíduos de 0 a 14 anos, classificando o estado da Bahia como de endemicidade alta para esse subgrupo: entre 2,5 e 4,99 casos por 100 mil hab.17 A proporção evidenciada neste estudo é inferior ao padrão mundial: em 2014, segundo dados da Organização Mundial da Saúde (OMS), 8,8% do total de casos registrados no mundo foram crianças.4 O número de casos de hanseníase no Brasil tem sido questionado por inúmeros pesquisadores, que advogam existir muitos mais doentes dos que, de fato, constam nos sistemas oficiais de informações.13,14
Embora a taxa de detecção na população geral tenha decrescido na Bahia, há de se ressaltar que o número de municípios classificados como de média, alta e muito alta endemicidade e hiperendemia elevou-se consideravelmente, chegando a 76,7% (n=320) do total de municípios no período final da série temporal estudada (2009-2012). Padrão semelhante ocorreu com a taxa de detecção na população infantil. Uma explicação para esses achados pode se assentar na ampliação da rede da Atenção Primária à Saúde, observada em todo o país nos últimos anos.9,20,21 Estudo de Nery et al,20 ao analisar 1.358 municípios brasileiros, mostrou que o então chamado Programa Saúde da Família (PSF) - hoje Estratégia Saúde da Família (ESF) - promoveu incremento na detecção de casos novos de hanseníase. Ademais, a presença de unidades de saúde descentralizadas também esteve associada a maior detecção da doença. Supõe-se que, à medida que novas unidades de saúde são implantadas em áreas endêmicas, novos casos são identificados.
Em 2002, o PSF se encontrava implantado em 183 municípios baianos, representando uma cobertura estadual inferior a 30%, e contava com quase 4 mil agentes comunitários de saúde (ACS);22 em 2012, essa cobertura chegou a 63,57%, com 2.851 equipes de saúde e 26.230 ACS atuantes.23
É evidente que a ampliação, por si só, não significa que a população tenha mais acesso aos serviços. Outros elementos devem ser considerados, tais como disponibilidade de recursos humanos, estrutura física, desempenho das unidades, capacidade técnica e sensibilidade das equipes, definição de fluxos e processos de trabalho.
Se, por um lado, a queda dessas duas taxas observadas mostra que o estado não está indiferente ou inerte diante do desafio de eliminar a doença como problema de Saúde Pública, por outro lado, os padrões temporais e espaciais dos valores estimados pela modelagem bayesiana indicam que a real magnitude da hanseníase é maior que a observada. Ao aplicar o modelo à taxa de detecção geral, por exemplo, o número de municípios baianos classificados como de alta endemicidade (10,00-19,99 casos/100 mil hab.) duplicou. Este achado indica a presença de bolsões de subnotificação de casos, identificados como áreas negativas.
Muitas razões podem ser apontadas como causadoras de subnotificação. Entre elas, (i) a pouca capacidade dos serviços de saúde em identificar casos novos da doença, (ii) a deficiência operacional dos programas de hanseníase, (iii) a falta de políticas e planos municipais para o controle da doença, (iv) a pouca sensibilidade dos gestores à temática e (v) a frágil integração da vigilância em saúde com a atenção básica à saúde, além da (vi) pouca robustez dos serviços de epidemiologia e registro dos dados, sobretudo nos municípios de menor porte.24-26
Ademais do sub-registro de casos, é necessário destacar o diagnóstico tardio como um problema evidenciado no estado da Bahia. O principal argumento no sentido de confirmar essa hipótese é a taxa de casos novos com grau 2 de incapacidade física no momento do diagnóstico. Este indicador é capaz de inferir sobre a eficiência da detecção precoce da hanseníase em dada população.4 No presente estudo, observou-se o aumento progressivo desse indicador, maior ainda quando estimado pelo modelo bayesiano empírico.
O achado em questão mostra que os serviços de saúde não estão sendo capazes de captar todos os casos novos de hanseníase existentes no estado de modo oportuno, sugerindo a existência de elevada prevalência oculta da doença.27,28 O conhecimento das taxas estimadas pelo modelo e sua diferença com os valores observados indicam a lacuna deixada pelo poder público no que diz respeito ao diagnóstico.
A elevada prevalência oculta tem sido relatada em diferentes estudos.24-26,28 Segundo Ribeiro et al,28 entre 2006 e 2010, 72 casos deveriam ter sido diagnosticados na microrregião de Diamantina, estado de Minas Gerais, além dos 91 registrados de fato, o que implicaria um acréscimo de 79,1% na prevalência da doença na microrregião. Voltando-se para o objeto desta investigação, 42,0% (n=175) dos municípios baianos apresentaram diferença negativa entre as taxas observadas e estimadas, indicando que essas áreas deveriam ter mais indivíduos com grau 2 de incapacidade no momento do diagnóstico, na comparação com os registros oficiais.
Os três indicadores estimados pelo modelo bayesiano empírico local possibilitaram compreender a dinâmica espacial da hanseníase no estado da Bahia: reduziu-se a flutuação aleatória dos dados decorrente do tamanho populacional, reSultando em mapas temáticos suavizados que permitiram entender não somente a grandeza do sub-registro de casos, mas também identificar áreas de elevado risco de transmissão. No presente estudo, essas áreas estão representadas por aqueles municípios com diferença positiva entre os valores observados e estimados, ou seja, esperavam-se menos casos nesses locais.
Mesmo considerando-se a robustez dos procedimentos estatísticos utilizados, é importante destacar quatro limitações deste trabalho: (i) o uso de dados secundários de sistemas de informações, podendo não expressar a realidade;29 (ii) o longo período de incubação da doença e, portanto, a possibilidade de o local de residência no momento do diagnóstico não representar o local onde ocorreu a infecção; (iii) a instabilidade na utilização de taxas brutas, sobretudo nas localidades com populações muito pequenas, razão pela qual se optou pela suavização pelo uso do modelo bayesiano para reduzir a flutuação aleatória;13 e (iv) a adoção da taxa de casos novos com grau 2 de incapacidade, uma vez que esta só pode ser considerada viável para análise quando a proporção de avaliação for superior a 75%.17 No período analisado, o estado da Bahia manteve proporção de avaliação acima do mínimo, permitindo a inclusão do indicador na análise.
A partir de uma distribuição espacial heterogênea, dois cenários igualmente importantes foram mostrados: de um lado, a existência de municípios com elevado risco de transmissão da doença; e do outro, um contingente de municípios silenciosos, supostamente inertes em face à presença da hanseníase. Adicionalmente, o crescimento da taxa de casos novos com grau 2 de incapacidade física no momento do diagnóstico reforça o caráter de negligência e o elevado valor social - transcendência - da hanseníase enquanto problema para a Saúde Pública.