Introdução
A cárie dentária e o edentulismo (perda de dentes) estão entre os agravos bucais mais prevalentes na América Latina.1 O edentulismo ocorre principalmente na população de menor renda e menor escolaridade, sendo a maioria das extrações atribuída à cárie e, em menor escala, às periodontopatias. Além de más condições de vida, os principais fatores de risco para esses agravos estão relacionados a estilos de vida pouco saudáveis, como má alimentação e nutrição e falta de higiene bucal, uso contínuo de tabaco e álcool, além da indisponibilidade ou acessibilidade limitada dos serviços de saúde bucal.2,3
A saúde bucal tem forte relação com fatores socioeconômicos e demográficos, especialmente para os indivíduos situados nos estratos sociais de menor renda.4,5 A associação entre determinantes sociais e saúde bucal influencia o acesso e utilização dos serviços de saúde.6,7
A carga de doença bucal é particularmente elevada para os grupos populacionais menos favorecidos e pobres, tanto em países desenvolvidos como naqueles em desenvolvimento.1 A cárie dentária é a doença bucal que mais acomete a população infantil; em nível mundial, ela é considerada uma das mais importantes doenças na sociedade contemporânea, atingindo 1,76 bilhão de dentes decíduos entre 1,93 bilhão de crianças. Em 2016, a cárie dentária estava entre as dez causas com maior prevalência entre adultos no mundo.8 As despesas substanciais implicadas em seu tratamento, somadas à existência e disponibilidade de métodos preventivos, confirmam a importância da cárie como problema de Saúde Pública.9 Além disso, a cárie dentária integra o rol de doenças que guardam estreita dependência com determinantes sociais, como sedentarismo, tabagismo, alcoolismo e estresse.8
No Brasil, apesar da relevância das ações de prevenção e controle da cárie dentária e da atenção à saúde bucal proporcionada pelo Sistema Único de Saúde (SUS), observam-se deficiências no acesso e integralidade do tratamento odontológico.10
Este estudo teve como objetivo analisar a prevalência e os fatores associados à necessidade de tratamento dentário por cáries e edentulismo em adultos atendidos em clínicas de graduação da Faculdade de Odontologia da Universidade Federal Fluminense (FOUFF), no período de julho a dezembro de 2013.
Métodos
Foi realizado um estudo transversal com o propósito de analisar a necessidade de tratamento para cárie dentária e edentulismo na população de referência, correspondente a cerca de 3 mil pacientes adultos, com idade igual ou acima de 18 anos, cadastrados em dez clínicas do curso de graduação da FOUFF, entre julho e dezembro de 2013. As clínicas-objeto do estudo foram: Dentística, Oclusão, Clínica Integrada, Prótese Total, Diagnóstico Oral, Prótese Removível, Endodontia, Periodontia, Prótese Fixa e Cirurgia.
A definição das necessidades de tratamento para cárie dentária e edentulismo seguiu a classificação proposta pelo mais recente inquérito nacional sobre Saúde Bucal, realizado em 2010 (SB 2010),11 que inclui:
‘tratamento restaurador de uma ou mais superfícies’;
‘extração dentária’;
‘coroa dentária’;
‘faceta estética’; e
‘tratamento pulpar e restauração’.
As necessidades de tratamento para reconstituição protética foram classificadas como:
necessita de uma prótese, fixa ou removível, para substituição de um elemento;
necessita de uma prótese, fixa ou removível, para substituição de mais de um elemento;
necessita de uma combinação de próteses, fixas e/ou removíveis, para substituição de um e/ou mais de um elemento; e
necessita de prótese dental total.
Foram elegíveis todos os pacientes que se cadastraram por livre demanda e estavam em atendimento em clínicas da FOUFF, na idade de 18 anos ou mais, no período de julho a dezembro de 2013. Para serem atendidos em uma dessas clínicas, os usuários do SUS devem se inscrever por telefone ou e-mail direcionado à Secretaria da FOUFF, passando por palestra de acolhimento e triagem diagnóstica, com fila de espera para atendimento. Os indivíduos cadastrados durante o primeiro semestre de 2013 e aqueles ainda em tratamento foram selecionados por meio de amostragem aleatória simples dos prontuários, utilizando-se tabela de números aleatórios em lista de inscritos até 30 de junho de 2013.
Os dados foram coletados a partir dos prontuários odontológicos já utilizados nas clínicas e por meio de entrevistas com os próprios pacientes, realizadas entre julho e dezembro de 2013. Todos os prontuários eram padronizados e as informações geradas eram de responsabilidade do profissional que prestava o atendimento, sendo validadas pelo docente responsável pelo setor. Tais fichas continham dados do paciente relacionados à idade, sexo, endereço, elementos dentários examinados, diagnóstico e respectivo tratamento. O questionário foi baseado no formulário utilizado pelo Ministério da Saúde em inquérito nacional de saúde bucal.12
A variável dependente foi a necessidade de tratamento para cárie dentária ou edentulismo, dicotomizada da seguinte forma: zero (sem necessidade) ou 1 (qualquer categoria classificatória para tratamento de cárie ou edentulismo).
As variáveis independentes foram: renda familiar (≤2 salários mínimos; >2 salários mínimos), densidade domiciliar (≤3 pessoas; ≥4 pessoas), quantidade de bens (≤6 bens; >6 bens), plano de saúde (privado; somente SUS), motivo da consulta (gratuidade; tratamento especializado), escolaridade (≤11 anos de estudo; >11 anos de estudo), sexo (masculino; feminino) e faixa etária (em anos: 18-40; 41-59; 60 e mais).
Um estudo-piloto envolveu a testagem do instrumento elaborado para a coleta de dados, pelo que se definiu uma amostra de 20 indivíduos, não incluídos no estudo realizado a posteriori. A coleta de dados durante o trabalho de campo foi realizada pelo mesmo entrevistador do estudo-piloto. Esta etapa teve como objetivo verificar a aplicabilidade do questionário: testar o entendimento dos seus itens pelo entrevistado e avaliar o tempo médio gasto em seu preenchimento.
Para calcular o tamanho da amostra, utilizou-se o aplicativo Statcalc do software Epi Info.13 De acordo com as hipóteses de exposição, consideraram-se indivíduos com ‘menor renda familiar’ como expostos e, por sua vez, os indivíduos com ‘maior renda familiar’ como não expostos. A proporção de casos entre não expostos (9,1) e entre expostos (24,5) foi estipulada conforme os valores encontrados em estudo similar, realizado na mesma instituição.14 Em nível de significância de 5%, com poder de teste de 80%, o tamanho da amostra calculado para cada grupo foi de 104. Planejou-se o exame de 208 indivíduos com acréscimo de mais 10.
Os dados foram analisados usando o software Statistic Package for Social Science (SPSS for Windows, versão 21.0). As associações das variáveis independentes com o desfecho dicotômico ‘necessidade de tratamento’ foram verificadas utilizando-se o teste do qui-quadrado. As variáveis independentes foram agrupadas segundo modelo hierárquico de três níveis,15 sendo analisadas sequencialmente, da camada mais distal (fatores contextuais) para a proximal (fatores de acesso/uso de serviços e demográficos), de acordo com os determinantes envolvidos em cada nível (Figura 1). Para cada estágio da estrutura hierárquica, uma análise de regressão logística com procedimento backward stepwise foi realizada, selecionando-se os melhores previsores com nível de significância p<0,25 na análise bivariada. Na definição do modelo final, as variáveis com maior significância estatística em cada nível horizontal foram adicionadas em ordem crescente. Assim, as variáveis da análise bivariada foram incluídas nos modelos multivariados em seu nível hierárquico. Somente ‘renda’ e ‘sexo’ foram significativas em seus respectivos blocos, sendo obtidas as razões de chance (odds ratio [OR]) ajustadas entre as covariáveis, levando-se em consideração os níveis hierárquicos (individuais e contextuais). Interações de segunda ordem foram testadas em cada estágio da análise. O nível de significância estatística estabelecido na análise do modelo final foi de 5%.
O projeto do estudo foi aprovado pelo Comitê de Ética da FOUFF: Parecer nº 146.803/2012. Os participantes assinaram Termo de Consentimento Livre e Esclarecido antes de responder ao questionário.
Resultados
Foram incluídos 212 indivíduos submetidos a tratamento nas clínicas de graduação da FOUFF, sendo 71,7% mulheres. Em sua maioria, os participantes tinham idade entre 18 e 40 anos (46,2%) e entre 41 e 49 anos (42,5%). A prevalência de edentulismo foi de 28,8% (IC95% 23,0;25,1); de cárie dentária, 71,2% (IC95% 64,9;77,0); e da necessidade de tratamento odontológico, 56,1% (IC95% 49,4;62,7).
Na Tabela 1, observa-se a distribuição das características contextuais e individuais segundo prevalência da necessidade de tratamento odontológico. Entre os homens, 43,3% apresentavam alguma necessidade de tratamento, enquanto entre mulheres o percentual foi de 61,2% (p=0,02). Na análise das demais variáveis independentes, não se constataram diferenças significativas na comparação dos grupos.
Variáveis | Necessita de tratamento | Não necessita de tratamento | p-valora | ||
---|---|---|---|---|---|
n | (%) | n | (%) | ||
Nível 1 | |||||
Renda média familiar (em salários mínimos) | |||||
≤2 | 77 | 59,7 | 52 | 40,3 | 0,091 |
>2 | 31 | 47,0 | 35 | 53,0 | |
Densidade domiciliar | |||||
Até 3 pessoas | 62 | 57,9 | 45 | 43,1 | 0,743 |
4 e mais pessoas | 54 | 55,7 | 43 | 44,3 | |
Quantidade de bens | |||||
≤6 | 56 | 59,6 | 38 | 40,4 | 0,419 |
>6 | 61 | 54,0 | 52 | 46,0 | |
Nível 2 | |||||
Plano de saúde | |||||
Plano privado | 36 | 59,0 | 25 | 41,0 | 0,612 |
Somente Sistema Único de Saúde (SUS) | 80 | 55,2 | 65 | 44,8 | |
Motivo da consulta | |||||
Gratuidade | 50 | 50,5 | 49 | 49,5 | 0,059 |
Tratamento especializado | 34 | 66,7 | 17 | 33,3 | |
Escolaridade (em anos de estudo) | |||||
≤11 | 53 | 57,0 | 40 | 43,0 | 0,667 |
>11 | 61 | 54,0 | 52 | 46,0 | |
Nível 3 | |||||
Sexo | |||||
Masculino | 26 | 43,3 | 34 | 56,7 | 0,018 |
Feminino | 93 | 61,2 | 59 | 38,8 | |
Faixa etária (em anos) | |||||
18-40 | 59 | 60,2 | 39 | 39,8 | 0,127 |
41-59 | 43 | 47,8 | 47 | 52,2 | |
≥60 | 14 | 66,7 | 7 | 33,3 |
a) Teste do qui-quadrado.
Na análise múltipla, as variáveis ‘densidade domiciliar’, ‘quantidade de bens’, ‘plano de saúde’, ‘motivo da consulta’ e ‘escolaridade’ foram retiradas por apresentarem nível de significância p≥0,25. Entre as variáveis contextuais e de acesso aos serviços, apenas ‘renda familiar’ apresentou associação significante (p<0,05) no ajuste do modelo 1 (Tabela 2). Após o ajuste do modelo final de regressão logística multivariável, as variáveis ‘renda familiar’ e ‘sexo’ - com p<0,05 - foram incluídas. As variáveis do nível 2 apresentaram p>0,05 e não foram incluídas A necessidade de tratamento odontológico foi menor (OR=0,53 - IC95% 0,28;0,98) em indivíduos com maior renda familiar e maior nas mulheres (OR=2,28 - IC95% 1,21;4,32). Nenhum dos grupos etários apresentou significância estatística (Tabela 2).
Variáveis | OR bruta (IC95%) | p-valor | OR ajustadaa (IC95%) | p-valor | OR ajustadab (IC95%) | p-valor |
---|---|---|---|---|---|---|
Nível 1 | ||||||
Renda média familiar (em salários mínimos) | ||||||
≤2 | 1,00 | - | 1,00 | 1,00 | 0,045 | |
>2 | 0,52 (0,26;1,00) | 0,051 | 0,61 (0,27;1,33) | 0,055 | 0,53 (0,28;0,98) | |
Densidade domiciliar | - | - | ||||
Até 3 pessoas | 1,00 | - | ||||
4 e mais pessoas | 1,07 (0,56;2,01) | 0,833 | ||||
Quantidade de bens | - | - | ||||
≤6 | 1,00 | - | ||||
>6 | 0,89 (0,46;1,73) | 0,747 | ||||
Nível 2 | ||||||
Plano de saúde | - | - | ||||
Privado | 1,00 | - | ||||
Somente Sistema Único de Saúde (SUS) | 0,95 (0,48;2,29) | 0,899 | ||||
Motivo da consulta | - | - | ||||
Gratuidade | 1,00 | - | ||||
Tratamento especializado | 0,53 (0,25;1,14) | 0,303 | ||||
Escolaridade (em anos de estudo) | - | - | ||||
≤11 | 1,00 | - | ||||
>11 | 0,90 (0,45;1,82) | 0,779 | ||||
Nível 3 | ||||||
Sexo | ||||||
Masculino | 1,00 | - | - | - | 1,00 | 0,011 |
Feminino | 2,06 (1,12;3,78) | 0,019 | 2,06 (1,11;3,82) | 0,021 | 2,28 (1,21;4,32) | |
Faixa etária (em anos) | ||||||
18-40 | 1,00 | - | - | |||
41-59 | 1,74 (0,96;3,13) | 0,065 | ||||
≥60 | 0,79 (0,29;2,18) | 0,659 |
a) Modelo 1: variáveis selecionadas do nível 1 + nível 2.
b) Modelo 2: variáveis selecionadas (nível 1 + nível 2) + nível 3 com p<0,05.
Discussão
Mais da metade dos adultos em atendimento na FOUFF apresentou necessidade de tratamento dentário por cárie dentária ou edentulismo. Indivíduos mais pobres e mulheres referiram maior necessidade de tratamento odontológico por essas causas.
As principais limitações desta pesquisa residem no poder da amostra. O cálculo amostral considerou a proporção de expostos e não expostos a desigualdades em saúde e não a prevalência da variável dependente: necessidade de tratamento odontológico. Análise post hoc do poder do teste, considerando-se a prevalência encontrada no presente estudo, encontrou poder inferior a 65%, com OR mínima igual a 2,2, e OR a ser detectada com poder de 80%, a partir da proporção encontrada no estudo similar, igual a 3,2. Apesar de contar com processo de amostragem aleatório, a amostra estudada não permite extrapolação para outros grupos populacionais, pois reflete apenas aqueles que tinham acesso aos ambulatórios da FOUFF. Mais da metade da amostra analisada (56,1%) precisava de tratamento para cárie ou edentulismo; contudo, essa prevalência reflete a busca de tratamento por iniciativa própria e maior acesso, uma vez que a marcação dependia de inscrição prévia. No Brasil, 44% da população consultaram dentista nos últimos 12 meses, segundo a Pesquisa Nacional de Saúde de 2013.16 Essa maior procura por tratamento na amostra do presente estudo também influenciou a prevalência de cárie acima de 70% nos adultos pesquisados, enquanto no Brasil essa prevalência é bem inferior entre adultos (9,5%) e idosos (13,9%).12 Outra limitação refere-se ao desenho de estudo transversal, que não permite identificar inferências causais, assim como possíveis vieses de informação e de memória por parte dos pacientes entrevistados.
A prevalência de edentulismo, avaliada pela necessidade de algum tipo de prótese, foi inferior à encontrada para o país no mais recente inquérito de saúde bucal, segundo o qual a necessidade de algum tipo de prótese em adultos de 35 a 44 anos ocorreu em 68,8% dos casos.12 Uma possível explicação para a menor prevalência de edentulismo estaria relacionada às características da amostra, restrita a pessoas que já conseguiram acesso a um ambulatório publico especializado, com boa parte dos entrevistados apenas em busca de tratamento restaurador.
Mundialmente, observa-se menor prevalência de cárie em pessoas com maior poder aquisitivo, comparadas à população de baixa renda.17 No Brasil, piores condições de saúde bucal estão relacionadas à pobreza e a um menor nível de renda.18 No presente estudo, a maior parte da amostra era constituída de pessoas com necessidade de tratamento restaurador e que tinham menos condições econômicas, o que também pode ter influenciado na maior prevalência e nas associações encontradas.
Outras pesquisas que também utilizaram amostras de conveniência observaram maior procura por tratamento de saúde bucal pelas mulheres, no SUS.19,20 A despeito do acesso universal, os homens não se sentem estimulados a buscar atendimento, devido a questões de organização dos serviços de saúde e outras barreiras.19 Inquérito realizado em 2008 na cidade de Pelotas, estado do Rio Grande do Sul, com uma população de 2.961 indivíduos, observou maior procura e uso dos serviços odontológicos pelo sexo feminino, e associação dessa demanda com maior escolaridade, orientação prévia sobre prevenção e maior nível econômico, entre outros fatores determinantes.21 Esses resultados também podem explicar maiores necessidades de tratamento detectadas nas mulheres estudadas, na medida em que a maior busca por tratamento nesse grupo aumentaria a probabilidade de seleção na amostra.
A necessidade de tratamento odontológico foi associada a desigualdades socioeconômicas. Outra pesquisa, não limitada a usuários de serviços de saúde e sim realizada com pessoas de menor poder aquisitivo, encontrou piores condições de saúde bucal na medida em que não se tem acesso a serviços preventivos e assistenciais.22,23 Tais achados sugerem a existência de desigualdades em saúde bucal, possivelmente relacionadas ao menor acesso às ações de prevenção e aos serviços de tratamento dentário.
A importância do controle e redução das desigualdades na ocorrência da cárie dentária e em seu tratamento fundamenta-se no imperativo ético de evitar que essas mesmas desigualdades se desdobrem em iniquidades em saúde, porque evitáveis, injustas e desnecessárias.24
A necessidade de tratamento odontológico devido a cárie e perda dentária em pacientes atendidos na Faculdade de Odontologia da Universidade Federal Fluminense foi elevada, principalmente em mulheres e indivíduos com menor renda familiar.