Introdução
O nível de atenção primária à saúde (APS) tem capacidade de resposta para 75 a 85% das necessidades em saúde de uma comunidade. É esperado que esse nível de atenção represente a entrada para todas as novas necessidades e problemas da população, forneça atenção sobre a pessoa no decorrer do tempo, contemple a maioria dos agravos à saúde - exceto os muito incomuns ou raros - e coordene ou integre a atenção fornecida em outros pontos da rede de atenção à saúde.1
Avaliar a qualidade da APS é fundamental para a gestão de sua organização e prática, na busca de um desempenho de excelência nesse nível de atenção. Para isto são utilizados os indicadores, medidas-síntese de informações relevantes não apenas sobre determinados atributos e dimensões do estado de saúde, senão também sobre o desempenho do sistema de saúde.2-4
As condições sensíveis à atenção primária (CSAP) são agravos à saúde para os quais uma boa ação da APS pode reduzir o risco de internação.3 Atividades centradas no diagnóstico precoce e tratamento adequado das doenças agudas, no controle e acompanhamento das condições crônicas, terão impacto direto na diminuição da incidência de agravos comuns e, consequentemente, das CSAP.4
A partir dos anos 1980, as internações por condições sensíveis à atenção primária (ICSAP) passaram a ser consideradas como um indicador que permite uma avaliação do primeiro nível de atenção à saúde. A involução do conjunto de internações por ICSAP é reflexo de uma boa resolutividade na APS.3
Em 2008, o Ministério da Saúde estabeleceu a primeira lista brasileira de CSAP por meio da Portaria SAS/MS n° 221, de 17 de abril de 2008. Essa lista inclui 120 categorias da Décima Revisão da Classificação Estatística Internacional de Doenças e Problemas Relacionados à Saúde (CID-10) com três dígitos e 15 subcategorias com quatro dígitos, agrupadas de acordo com a possibilidade de intervenções e a magnitude dos agravos, resultando em 19 grupos diagnósticos. A partir de um consenso entre pesquisadores e gestores, foi elaborada a lista brasileira de CSAP e estabelecido o uso do indicador ICSAP para a avaliação e monitoramento do sistema de saúde, mediante um único instrumento.5 Não obstante suas limitações, geralmente atribuídas às diferenças regionais de capacidade instalada do serviço de saúde, o uso prudente do indicador ICSAP pode ajudar a incrementar a capacidade de resolução da APS, ao identificar áreas prioritárias de intervenção e colocar em evidência problemas de saúde que necessitam de melhor seguimento e coordenação entre os níveis assistenciais.6,7
Enquanto reduções nas proporções ou taxas de ICSAP sugerem possíveis melhorias na APS, valores altos para esses indicadores nem sempre são indicativos de deficiências na atenção primária, e sim um sinal de alerta para uma investigação mais profunda nos locais onde eles ocorrem.8 As características dos pacientes, a variabilidade dos critérios adotados para indicar a internação hospitalar e as políticas de admissão dos centros de atenção terciária são algumas das variáveis com possibilidade de contribuir para aumentar ou diminuir o indicador ICSAP.9
Informações sobre as ICSAP podem subsidiar análises objetivas da situação de saúde de uma determinada localidade ou região, com vistas à tomada de decisão baseada em evidências e à proposição de ações em saúde mais coerentes com as necessidades da população. Considerando-se as políticas públicas de saúde nos níveis nacional e estadual, especialmente a necessidade de organização e avaliação da APS em áreas brasileiras emergentes, o levantamento da frequência e caracterização das ICSAP de Rondônia, aqui proposto, justifica-se. Espera-se que esse conhecimento possa contribuir com a construção de um Sistema Único de Saúde (SUS) de qualidade naquele estado. O objetivo deste estudo, portanto, foi descrever o perfil das ICSAP em Rondônia no período de 2012 a 2016, como uma proposta preliminar de fornecer informações sobre a qualidade da assistência à saúde na APS estadual.
Métodos
Foi realizado um estudo ecológico considerando-se como unidade de análise as internações hospitalares realizadas em todo o estado de Rondônia no período de 2012 a 2016, contabilizadas a partir do Sistema de Informações Hospitalares do Sistema Único de Saúde (SIH/SUS). Rondônia localiza-se na região Norte do Brasil, ocupa uma área geográfica de 237.576km² e compreende 52 municípios onde vivem 1.787.279 pessoas.10 Todas as hospitalizações ocorridas no estado entre 2012 e 2016 foram elegíveis para o estudo, sendo incluídas na análise aquelas cujo diagnóstico principal da internação correspondeu a um agravo constante na lista de CSAP.5 Em paralelo, foi feita análise da situação de cobertura da Estratégia Saúde da Família (ESF) em todos os municípios do estado, utilizando-se dados disponibilizados pelo Departamento de Atenção Básica do Ministério da Saúde, representativos de uma estimativa da proporção de cobertura populacional de equipes de ESF em território definido.6 Os agravos considerados para as ICSAP foram baseados na lista brasileira de CSAP definida na Portaria SAS/MS nº 221/2008.5 Os dados relativos à população do estado de Rondônia no ano de 2016 foram obtidos na página da Fundação Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE).10
Para a identificação das ICSAP, inicialmente, foi gerada uma planilha de dados do SIH/SUS a partir da seleção das causas de internações pelos respectivos CID-10. Foi utilizado o aplicativo Tabwin versão 3.5, desenvolvido pelo Departamento de Informática do SUS (Datasus)/Ministério da Saúde, para a conversão dos formatos das bases de dados;11 posteriormente, foi feita a tabulação e análise dos dados pelo aplicativo EpiData versão 2.2.3.
Além das causas das hospitalizações e da cobertura da ESF, foram analisadas outras informações relevantes e constantes das autorizações de internação hospitalar (AIH-SUS), para a caracterização demográfica dos pacientes: sexo, idade, raça/cor da pele e município de residência. Como características específicas das ICSAP, analisaram-se o ano quando ocorreu a hospitalização, a especialidade para a qual o paciente foi internado, o caráter da internação (se eletiva ou urgência), o tempo de permanência hospitalizado, a necessidade de tratamento intensivo e a evolução para óbito.
Inicialmente, foi descrita a frequência de ICSAP entre todas as hospitalizações ocorridas no período e a evolução da cobertura da ESF para o estado de Rondônia e todos os seus municípios. Também foi calculada a proporção de ICSAP entre todas as hospitalizações ocorridas no período, para o estado de Rondônia e seus municípios, assim como a taxa de ICSAP (por 1.000 hab.). O cálculo da taxa de internação foi feito pela divisão do número de ICSAP pela população estimada pelo IBGE para 2016. Posteriormente, as características demográficas e clínicas dos pacientes internados foram sumarizadas. Realizou-se análise ecológica com o objetivo de avaliar a relação entre a frequência de ICSAP de 2012-2016 e a evolução da cobertura da ESF no mesmo período. Para tanto, determinou-se o coeficiente de correlação de Spearman, considerando-se erro alfa de 0,05.
O projeto deste estudo não foi submetido à análise de Comitê de Ética em Pesquisa por utilizar dados secundários de domínio público, conforme define a Resolução do Conselho Nacional de Saúde (CNS/MS) nº 510, de 7 de abril de 2016. Entretanto, foram respeitadas as normas vigentes relacionadas à ética na pesquisa com seres humanos no Brasil. Os dados foram analisados especificamente para esta pesquisa, de forma global, sem qualquer identificação individual das pessoas registradas no sistema de informações sobre internações hospitalares.
Resultados
Durante o período de janeiro de 2012 até dezembro de 2016, foram notificadas 133.958 internações por condições sensíveis à atenção primária à saúde nos serviços públicos e conveniados do SUS do estado de Rondônia. ICSAP foram responsáveis por 24,8% de todas as hospitalizações registradas no SUS do estado, no período analisado. Das internações analisadas, 62.994 (47,0%) foram de indivíduos do sexo masculino e 70.964 (53,0%) do sexo feminino. Idosos (39,6%) e adultos entre 20 e 49 anos (26,4%) compuseram a maioria dessas hospitalizações. A média de idade desses pacientes foi de 38,4 (desvio-padrão [DP]=38,3) anos. Embora a informação sobre raça/cor da pele tenha sido omitida para uma grande parcela (58,4%) dos pacientes, a cor parda foi a mais frequentemente (31,6%) registrada para o restante das ICSAP (Tabela 1).
Características | N | % |
---|---|---|
Anoa | ||
2012 | 27.695 | 20,7 |
2013 | 28.359 | 21,2 |
2014 | 29.860 | 22,3 |
2015 | 25.687 | 19,2 |
2016 | 22.357 | 16,7 |
Total do período | 133.958 | 24,8 |
Cobertura da ESFb | - | |
2012 | - | 60,4 |
2013 | - | 63,1 |
2014 | - | 68,7 |
2015 | - | 70,9 |
2016 | - | 71,3 |
Total do estado | - | 66,9 |
Sexo | ||
Masculino | 62.994 | 47,0 |
Feminino | 70.964 | 53,0 |
Idade (em anos) | ||
Média (DPc) | 38,4 (38,3) | |
Mediana (Q1;Q3) | 36,0 (10,0;64,0) | |
Faixa etária (em anos) | ||
0-4 | 19.788 | 14,8 |
5-9 | 12.469 | 9,3 |
10-19 | 13.343 | 10,0 |
20-49 | 35.354 | 26,4 |
50-100 | 53.004 | 39,6 |
Raça/cor da pele | ||
Branca | 8.902 | 6,6 |
Preta | 1.186 | 0,9 |
Parda | 42.376 | 31,6 |
Amarela | 983 | 0,7 |
Indígena | 2.265 | 1,7 |
Sem informação | 78.246 | 58,4 |
a) Proporção de internações por condições sensíveis à atenção primária à saúde (ICSAP) em relação ao total de pacientes hospitalizados.
b) ESF: Estratégia Saúde da Família.
c) DP: desvio-padrão.
A cobertura da ESF foi de 66,9% para todo o estado de Rondônia, progredindo de 60,4% em 2012 para 71,3% em 2016 (Tabela 1). No entanto, dois municípios ainda carecem de implantação desse serviço; em outros oito municípios, a população já conta com 100% de cobertura da ESF; e para os demais, a cobertura da ESF foi bastante variável, de 35,8 a 100%. Os municípios de Porto Velho (11,4%), Ji-Paraná (8,3%), Rolim de Moura (6,6%), Cacoal (5,9%) e Vilhena (5,2%) foram os que mais registraram ICSAP no período, totalizando uma proporção de 37,4% entre todas as hospitalizações (Tabela 2). A taxa de ICSAP por município variou de 21,8/1.000 a 228,9/1.000 hab. no período, sendo mais elevadas nos municípios de Cerejeiras (228,9/1.000 hab.), Santa Luzia d’ Oeste (198,0/1.000 hab.), Alta Floresta d’Oeste (197,0/1.000 hab), Cabixi (190,1/1.000 hab.) e Novo Horizonte do Oeste (157,0/1.000 hab.). Para todo o estado de Rondônia, a taxa de internação por ICSAP foi de 75,0/1.000 hab. no período analisado (Tabela 2).
Município de residência | Cobertura da ESFa em 2016 (%) | ICSAPb | População em 2016 | Taxa de ICSAPb (por 1.000 hab.) | |
---|---|---|---|---|---|
N | % | ||||
Alta Floresta d’Oeste | 68,6 | 5.025 | 3,8 | 25.506 | 197,0 |
Alto Alegre dos Parecis | 91,7 | 2.082 | 1,6 | 13.993 | 148,8 |
Alto Paraíso | 83,9 | 1.496 | 1,1 | 20.569 | 72,7 |
Alvorada d’Oeste | 100,0 | 1.554 | 1,2 | 16.902 | 91,9 |
Ariquemes | 55,3 | 5.422 | 4,0 | 105.896 | 51,2 |
Buritis | 62,8 | 1.719 | 1,3 | 38.450 | 44,4 |
Cabixi | 97,5 | 1.196 | 0,9 | 6.289 | 190,1 |
Cacaulândia | 90,3 | 421 | 0,3 | 6.414 | 65,6 |
Cacoal | 70,6 | 7.910 | 5,9 | 87.877 | 90,0 |
Campo Novo de Rondônia | 89,5 | 1.634 | 1,2 | 14.354 | 113,8 |
Candeias do Jamari | 84,1 | 758 | 0,6 | 24.719 | 30,6 |
Castanheiras | 97,1 | 259 | 0,2 | 3.583 | 72,2 |
Cerejeiras | 93,8 | 4.112 | 3,1 | 17.959 | 228,9 |
Chupinguaia | - | 423 | 0,3 | 10.364 | 40,8 |
Colorado do Oeste | 92,5 | 2.772 | 2,1 | 18.639 | 148,7 |
Corumbiara | 98,5 | 365 | 0,3 | 8.659 | 42,1 |
Costa Marques | 82,5 | 777 | 0,6 | 17.400 | 44,6 |
Cujubim | 47,6 | 583 | 0,4 | 21.720 | 26,4 |
Espigão d’Oeste | 73,8 | 3.371 | 2,5 | 32.712 | 103,0 |
Governador Jorge Teixeira | 100,0 | 963 | 0,7 | 9.933 | 96,9 |
Guajará-Mirim | 72,2 | 5.902 | 4,4 | 47.048 | 125,4 |
Itapuã do Oeste | 66,9 | 225 | 0,2 | 10.310 | 21,8 |
Jaru | 37,1 | 5.334 | 4,0 | 55.806 | 95,5 |
Jí-Paraná | 76,0 | 11.117 | 8,3 | 131.560 | 84,5 |
Machadinho d’Oeste | 72,8 | 2.194 | 1,6 | 37.899 | 57,9 |
Ministro Andreazza | 94,6 | 1.396 | 1,0 | 10.786 | 129,4 |
Mirante da Serra | 84,1 | 1.430 | 1,1 | 12.308 | 116,2 |
Monte Negro | 89,2 | 1.805 | 1,3 | 16.032 | 112,6 |
Nova Brasilândia d’Oeste | 79,6 | 3.191 | 2,4 | 21.670 | 147,2 |
Nova Mamoré | 73,3 | 2.119 | 1,6 | 28.255 | 75,0 |
Nova União | 88,5 | 555 | 0,4 | 7.796 | 71,2 |
Novo Horizonte do Oeste | 67,9 | 1.595 | 1,2 | 10.161 | 157,0 |
Ouro Preto do Oeste | 86,6 | 5.364 | 4,0 | 39.840 | 134,6 |
Parecis | 86,0 | 581 | 0,4 | 5.802 | 100,1 |
Pimenta Bueno | 63,9 | 4.562 | 3,4 | 37.786 | 120,7 |
Pimenteiras do Oeste | - | 310 | 0,2 | 2.410 | 128,6 |
Porto Velho | 54,0 | 15.258 | 11,4 | 511.219 | 29,8 |
Presidente Médici | 92,6 | 2.301 | 1,7 | 22.337 | 103,0 |
Primavera de Rondônia | 98,5 | 289 | 0,2 | 3.456 | 83,6 |
Rio Crespo | 88,1 | 129 | 0,1 | 3.829 | 33,7 |
Rolim de Moura | 79,1 | 8.861 | 6,6 | 56.664 | 156,3 |
Santa Luzia d’ Oeste | 100,0 | 1.655 | 1,2 | 8.362 | 198,0 |
São Felipe d’Oeste | 97,7 | 256 | 0,2 | 5.994 | 42,7 |
São Francisco do Guaporé | 100,0 | 1.397 | 1,0 | 16.636 | 84,0 |
São Miguel do Guaporé | 53,5 | 2.444 | 1,8 | 19.353 | 126,2 |
Seringueiras | 100,0 | 1.025 | 0,8 | 11.619 | 88,2 |
Teixeirópolis | 100,0 | 470 | 0,4 | 4.778 | 98,3 |
Theobroma | 100,0 | 569 | 0,4 | 10.575 | 53,8 |
Urupá | 81,6 | 633 | 0,5 | 12.687 | 49,9 |
Vale do Anari | 35,8 | 431 | 0,3 | 9.633 | 44,74 |
Vale do Paraíso | 100,0 | 798 | 0,6 | 7.961 | 100,2 |
Vilhena | 84,6 | 6.920 | 5,2 | 93.745 | 73,8 |
Rondônia | 66,9 | 133.958 | 100,0 | 1.787.279 | 75,0 |
a) ESF: Estratégia Saúde da Família.
b) ICSAP: internações por condições sensíveis à atenção primária à saúde.
O município de Porto Velho, cuja cobertura da ESF foi baixa (54,0%), teve alta proporção (11,4%) de ICSAP no período. Entretanto, municípios com cobertura total de ESF (100%) apresentaram, em geral, baixa proporção (<1,5%) de ICSAP no período. Contudo, a taxa de ICSAP não acompanhou a cobertura da ESF no estado: por exemplo, municípios com 100% de cobertura da ESF, tais como Alvorada d’Oeste, Governador Jorge Teixeira, Santa Luzia d’Oeste, Teixeirópolis e Vale do Paraíso mostraram taxas de ICSAP superiores a 90/1.000 hab. no período analisado (Tabela 2).
A taxa anual de internações apresentou redução progressiva no período analisado, sendo de 16,2, 16,4, 17,1, 14,5 e 12,5 por 1.000 hab. nos anos de 2012, 2013, 2014, 2015 e 2016, respectivamente (Tabela 3). Embora tenha-se observado queda progressiva na proporção de ICSAP nos cinco anos analisados (Tabela 1), essa redução não foi estatisticamente correlacionada à elevação da cobertura global da ESF no estado (coeficiente de correlação de Spearman = -0,60; p = 0,285) (Figura 1).
Ano/Causa | N | Taxa (por 1.000 hab.) |
---|---|---|
Ano de internação | ||
2012 | 27.695 | 16,2 |
2013 | 28.359 | 16,4 |
2014 | 29.860 | 17,1 |
2015 | 25.687 | 14,5 |
2016 | 22.357 | 12,5 |
Total do período | 133.958 | 75,0 |
Doenças imunopreveníveis | Frequência (por 1.000 internações) | |
Coqueluche | 129 | 1,0 |
Hepatite aguda B | 162 | 1,2 |
Caxumba | 72 | 0,5 |
Tétano | 16 | 0,1 |
Difteria | 6 | 0,04 |
Meningite | 4 | 0,03 |
Sarampo | 3 | 0,02 |
Outras causas | ||
Infecção do trato urinário | 25.270 | 188,6 |
Gastroenterites infecciosas e suas complicações | 23.871 | 178,2 |
Diabetes melito | 10.256 | 76,6 |
Doenças pulmonares | 9.922 | 74,1 |
Hipertensão arterial | 8.966 | 66,9 |
Infecção da pele e subcutâneo | 8.965 | 66,9 |
Insuficiência cardíaca | 8.841 | 66,0 |
Infecções de ouvido, nariz e garganta | 6.704 | 50,1 |
Doenças cerebrovasculares | 5.769 | 43,1 |
Asma | 4.920 | 36,7 |
Doenças relacionadas à gravidez e parto | 4.311 | 32,2 |
Epilepsias | 2.993 | 22,3 |
Pneumonias bacterianas | 2.584 | 19,3 |
Doença inflamatória pélvica | 2.504 | 18,7 |
Malária | 1.873 | 13,9 |
Angina | 1.845 | 13,8 |
Úlcera gastrointestinal | 1.428 | 10,7 |
Deficiências nutricionais | 1.154 | 8,6 |
Tuberculose pulmonar | 635 | 4,7 |
Anemia | 574 | 4,3 |
Febre reumática | 122 | 0,9 |
Sífilis | 22 | 0,2 |
Tuberculose extrapulmonar | 20 | 0,2 |
Ascaridíase | 17 | 0,1 |
a) ICSAP: internações por condições sensíveis à atenção primária à saúde.
Nota: Coeficiente de correlação de Spearman = -0,60; p = 0,285.
As principais causas de ICSAP do período analisado foram relacionadas às infecções do trato urinário, que representaram 188,6/1.000 ICSAP. Também se destacou o grupo das gastroenterites infecciosas e suas complicações, que representaram 178,2/1.000 ICSAP. Das doenças crônicas passíveis de controle na APS, diabetes melito (76,6/1.000), hipertensão arterial (66,9/1.000), infecções da pele e subcutâneo (66,9/1.000) e insuficiência cardíaca (66,0/1.000) foram as condições mais frequentemente causadoras de ICSAP. Doenças pulmonares (74,1/1.000) e infecções de ouvido, nariz e garganta (50,1/1.000) também representaram os subsequentes grupos de causas mais prevalentes no período. Outro destaque merecem as condições preveníveis por imunização ativa, que participaram com frequência considerável das ICSAP de Rondônia (Tabela 3).
De todas as ICSAP ocorridas entre 2012 e 2016, 121.365 (90,6%) foram classificadas como internação de urgência e 12.593 (9,4%) como internação eletiva. Predominaram hospitalizações para leitos de clínica médica (68,0%) e pediatria (26,3%). O tempo médio de permanência em hospitalização foi de 3,9 dias (DP: 5,9). Um total de 130.952 (97,8%) pacientes não necessitou de tratamento intensivo durante o período de internação e apenas 2,9% deles evoluíram para óbito (Tabela 4).
Características | N | % |
---|---|---|
Dias de permanência | ||
Nenhum | 1.846 | 1,4 |
1-3 | 94.157 | 70,3 |
4-7 | 25.339 | 18,9 |
8-15 | 8.493 | 6,3 |
>15 | 4.123 | 3,1 |
Média (DPa) | 3,9 (5,9) | 16,7 |
Caráter da internação | ||
Eletiva | 12.593 | 9,4 |
Urgência | 121.365 | 90,6 |
Especialidade do leito | ||
Cirurgia | 3.322 | 2,5 |
Obstetrícia | 4.044 | 3,3 |
Clínica médica | 91.136 | 68,0 |
Crônico | 6 | 0,01 |
Tisiologia | 202 | 0,2 |
Pediatria | 35.248 | 26,3 |
Necessidade de tratamento intensivo | ||
Sim | 3.006 | 2,2 |
Não | 130.952 | 97,8 |
Evolução para óbito | ||
Sim | 3.939 | 2,9 |
Não | 130.019 | 97,1 |
a) DP: desvio-padrão.
Discussão
O presente estudo demonstrou alta taxa global de ICSAP no estado de Rondônia durante um período de cinco anos, entre 2012 e 2016. Em análise estratificada por municípios, observaram-se taxas elevadas de ICSAP em várias localidades, atingindo taxas superiores a 50 internações/1.000 hab. Apesar disso, destaca-se o achado de redução discreta, porém progressiva das ICSAP, acompanhando uma elevação gradual da cobertura da ESF no estado, durante o período analisado. O mesmo panorama foi observado em outros estados brasileiros no início da década de 2000, quando a proporção de ICSAP era geralmente superior a 20%, embora venha apresentando redução nos últimos anos.12-14
Um estudo realizado no Distrito Federal, com o propósito de analisar coeficientes de internações por causas sensíveis à atenção primária à saúde no ano de 2008, revelou que 20% do total das hospitalizações se referiam às CSAP.15 Segundo outro estudo, este realizado em São Paulo no ano de 2011, 15,9% das internações foram relacionadas às condições sensíveis.16 Frequências elevadas de ICSAP também foram relatadas por Caldeira et al.,12 Ferreira et al.13 e Mendonça14, atingindo proporções entre 20 e 45%. A alta frequência de ICSAP observada neste e em estudos anteriores pode ser interpretada como uma deficiência na qualidade e resolutividade da APS, principalmente em regiões onde a ESF ainda não está completamente implementada.4,17 Além do que, comparada à observada em outros países latino-americanos, a frequência de ICSAP encontrada em Rondônia é preocupante. Análise de 39 milhões de internações realizadas na Argentina, Colômbia, Costa Rica, Equador, México e Paraguai resultou em 14,3% de ICSAP, com taxa variando de 10,8% (Costa Rica) a 21,6% (Colômbia).18
A redução da proporção e da taxa de ICSAP observada no decorrer dos cinco anos selecionados acompanhou a tendência descrita para o país e alguns estados, onde a atenção básica já se encontra mais bem estruturada.19-22 A ESF, reconhecida enquanto estratégia efetiva para organizar e capacitar a APS, tem sido imputada como um dos principais condicionantes dessa redução.17,24 De fato, a elevação da cobertura locorregional da ESF parece estar associada à redução das ICSAP, mesmo que ainda existam os clássicos problemas ligados à atenção básica à saúde, tais como fatores econômicos, sociais e políticos, e alguns próprios dos serviços de saúde, capazes de influenciar o risco de internação.25-27
Municípios pequenos e com 100% de cobertura da ESF apresentaram altas proporções de ICSAP registradas no período estudado. É sabido que a cobertura da ESF se mostra inversamente proporcional ao porte populacional. Entretanto, estudos prévios revelaram maiores taxas de ICSAP à medida que se diminuía o tamanho populacional dos municípios.25 Uma provável explicação para essa aparente discrepância seria a menor capacidade resolutiva dos serviços de saúde de municípios menores. Sem infraestrutura especializada e capacidade instalada para atender às diversas situações de saúde dos usuários, acabam por promover a hospitalização para todos os agravos de saúde, indepentemente de serem ou não condições sensíveis à atenção primária.17,25 Em geral, municípios de pequeno porte exercem um papel de caráter local, de atendimento às necessidades básicas da população, e dependem de municípios de médio ou grande porte para diversos serviços, destacando-se os de maior complexidade do setor Saúde.28,29 Da mesma forma, a alta proporção de ICSAP em caráter de urgência sugere que o acesso à hospitalização é promovido por serviços que não os da APS.30
Observou-se uma proporção considerável de ICSAP no grupo representado por crianças menores de 9 anos (42,8%), fato possivelmente relacionado à maior prevalência de gastroenterites e outras infecções agudas, de transmissão alimentar ou pela água, no contexto da região Norte. Apesar dos pequenos avanços nos serviços de água tratada, coleta e tratamento dos esgotos, Rondônia apresenta grande deficiência de saneamento básico.10 Resultado semelhante foi observado por Caldeira et al.12 em Montes Claros, Minas Gerais, onde a proporção de ICSAP no grupo pediátrico foi de 41,4% e, segundo seus autores argumentaram, crianças, principalmente lactentes, são mais susceptíveis às doenças e geram maiores preocupações para suas famílias e para os profissionais de saúde, estes mais predispostos a recomendar a hospitalização. Outras explicações para a proporção encontrada nesse grupo etário seriam o acesso limitado aos serviços de saúde e as dificuldades de manejo de condições clínicas em criança mais jovens pelos profissionais da atenção primária.12
O perfil de causas que geraram as ICSAP de Rondônia foi bastante variado. Os agravos que apresentaram maior frequência não diferem do esperado, de acordo com uma revisão sistemática sobre o tema: os estudos incluídos destacaram que os diagnósticos principais das ICSAP no Brasil são de infecções do trato urinário, gastroenterites, pneumonias bacterianas e insuficiência cardíaca.7 É fundamental, igualmente, destacar que as ICSAP no estado incluíram várias doenças imunopreveníveis como causa da hospitalização: o tétano, por exemplo, motivo de internação de 16 pacientes. Esses achados, juntamente com agravos crônicos não transmissíveis (diabetes melito e hipertensão arterial), são condições passíveis de controle na atenção primária à saúde, e, portanto, também apontam para deficit na qualidade de atenção no nível mais básico de assistência à saúde.3
Embora todos os resultados observados na análise das ICSAP de Rondônia tenham sido consistentes com os de diversos estudos brasileiros, é necessário enfatizar algumas limitações do presente estudo. Por exemplo, as ICSAP analisadas foram apenas de hospitais públicos ou privados conveniados com o SUS, o que provavelmente subestimou a estimativa desse indicador, principalmente porque o estado de Rondônia tem uma considerável parcela de sua população vivendo afastada dos grandes centros, onde o acesso a serviços hospitalares ainda é predominantemente privado. Outro aspecto limitador deste trabalho refere-se à informação sobre o diagnóstico que motivou a hospitalização, coletada apenas da AIH-SUS, um documento passível de crítica, já que a causa da internação, muitas vezes, difere do diagnóstico definitivo, ou seja, da alta hospitalar.12 E também por estar baseada em dados secundários, a avaliação da relação entre a expansão da ESF e as ICSAP pode não ser acurada, uma vez que aborda a situação no município em seu conjunto, não informando se os indivíduos hospitalizados foram previamente atendidos em unidades de APS/ESF. Ademais, há a limitação decorrente de sub-registro no SIH/SUS, possíveis problemas de classificação, como nos CID-10 utilizados, e eventual contagem dupla ou tripla de um mesmo paciente, pois o sistema não permite identificar reinternações.
Os resultados deste estudo demonstraram alta frequência de ICSAP em Rondônia. Embora tenha havido incremento discreto na cobertura da ESF entre 2012 e 2016, esse aumento não foi acompanhado de mudança significativa na frequência de internações por condições sensíveis à atenção primária à saúde no estado. Espera-se que as informações produzidas, aqui resumidas, sirvam de alerta e preocupação para as autoridades de saúde do estado e, consequentemente, estímulo à implementação de medidas para incrementar a cobertura da Estratégia Saúde da Família em todos os municípios rondonienses.