Introdução
A hanseníase ainda é um importante problema de Saúde Pública nos países em desenvolvimento, mantendo-se como um desafio a ser superado.1-3 Sua relevância não reside apenas em sua persistência, mas também nos danos físicos e sociais causados aos doentes e no próprio processo de negligenciamento da enfermidade.3-5
No mundo, apenas o Brasil ainda não alcançou prevalência inferior a 1 caso de hanseníase por 10 mil habitantes, considerada como meta de eliminação da doença até o final do século passado.3 Atualmente, além do posto de primeiro lugar em prevalência (1,10/10 mil hab., em 2016), o país ocupa a segunda posição em número absoluto de casos novos, superado apenas pela Índia. Somente em 2016, foram diagnosticados 25.218 casos novos de hanseníase no Brasil, 1.696 deles em menores de 15 anos de idade.4
A distribuição da doença entre os brasileiros apresenta caráter heterogêneo, em diferentes escalas geográficas.2-3 Enquanto, na região Sul do país, o coeficiente de detecção no ano de 2016 foi de 2,84 casos/100 mil hab., na região Centro-Oeste foi de 30,02 casos/100 mil hab. Na segunda posição, ficou a região Norte (28,70/100 mil hab.), seguida pela região Nordeste (19,30/100 mil hab.). Embora o Nordeste tenha ocupado a terceira posição no ranking do coeficiente de detecção entre a população geral, em número absoluto de casos, a região representou o maior quantitativo de doentes, 43,5% de todos os casos do país.4
A presente pesquisa parte de duas premissas: a primeira, de que a doença não ocorre ao acaso no tempo e no espaço; e a segunda, de que há necessidade de entender com mais clareza a dinâmica de transmissão da doença em áreas endêmicas. A análise temporal possibilitará compreender o comportamento dos indicadores epidemiológicos ao longo de uma série histórica.1 Paralelamente, a análise espacial, ao se utilizar de sistemas de informações geográficas, permitirá identificar áreas sob maior risco de transmissão da doença.7 Em conjunto, as duas estratégias permitirão um aprofundamento no conhecimento da situação da hanseníase no estado.
Este trabalho teve como objetivo principal descrever a tendência e a distribuição espacial da hanseníase no estado da Bahia, Brasil, no período entre 2001 e 2015.
Métodos
Trata-se de um estudo ecológico misto, uma vez que congrega as dinâmicas temporal e espacial. Ele teve como cenário o estado da Bahia e seus 417 municípios. Adotou-se como corte temporal uma série de 15 anos (2001-2015). A Bahia é o maior estado da região Nordeste e o quinto do país em extensão territorial, representando 36,33% da área do Nordeste e 6,63% do território brasileiro. Configura-se, ainda, como a quarta maior população do país e a primeira do Nordeste: 14.016.906 hab. em 2010.6
Foram selecionados para análise dez indicadores, para (i) o monitoramento e avaliação da magnitude do problema da hanseníase no Brasil e (ii) a avaliação da qualidade dos serviços prestados aos pacientes, todos recomendados pelo Ministério da Saúde do Brasil e previstos na Portaria nº 149, de 3 de fevereiro de 20167 (Figura 1).
Os dados dos casos novos foram obtidos do Sistema Nacional de Agravos de Notificação (Sinan), tendo sido excluídos os casos encerrados como erro diagnóstico e as duplicidades. A metodologia de cálculo dos indicadores para cada ano da série obedeceu ao que preconiza a Portaria nº 149/2016.7 No cálculo dos indicadores para o período total, adotou-se a média de casos do período/população do meio do período x 100 mil.
O tratamento dos dados foi realizado em duas etapas. A primeira consistiu na análise de tendência dos dez indicadores selecionados, utilizando-se o modelo de regressão segmentada ou por pontos de inflexão, conhecido como Joinpoint. Este modelo testa se uma linha de múltiplos segmentos é estatisticamente melhor para descrever a evolução temporal dos dados, comparativamente a uma linha reta ou uma linha com menos segmentos.8
O modelo de regressão permite identificar não somente a tendência do indicador (estacionária, crescente ou decrescente) como também pontos em que há modificação nessa tendência, além da variação percentual anual (APC: annual percent change) e da variação percentual anual média (AAPC: average annual percent change). Para cada tendência detectada, foi calculado o intervalo de confiança de 95% (IC95%) e adotou-se o nível de significância de 5%. Para essa análise, utilizou-se o software Joinpoint, versão 4.5.0.1.
A segunda etapa consistiu na análise espacial de três indicadores (coeficiente de detecção geral, coeficiente de detecção em menores de 15 anos de idade e coeficiente de grau II de incapacidade física), para a detecção de agrupamentos (clusters) de municípios com alto risco de transmissão da hanseníase. Para tanto, aplicou-se a estatística de varredura espacial com o modelo de probabilidade discreto de Poisson. Este modelo permite não só a identificação dos aglomerados espaciais como também o cálculo do risco relativo de cada um deles.9
O teste para identificar aglomerados baseia-se no método de máxima verossimilhança, cuja hipótese alternativa é a de que existe um risco elevado no interior da janela em comparação com o exterior.9 As simulações de Monte Carlo (adotou-se 999 permutações) foram utilizadas para a obtenção dos valores de p. Foram considerados significativos os aglomerados com p-valor <0,05. A realização da análise teve como base o programa SatScan, versão 9.1. Os mapas temáticos foram elaborados utilizando-se o software QGIS 2.14.11.
O projeto do estudo foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa da Universidade Federal de Alagoas: Certificado de Apresentação para Apreciação Ética (CAAE) nº 70943617.5.0000.5013; Parecer nº 2.212.723, de 10 de agosto de 2017.
Resultados
Na Bahia, o coeficiente de prevalência permitiu classificar a endemicidade como média em todo o período de estudo (Tabela 1). A análise pelo modelo de regressão segmentada mostrou redução significativa no período de 2001 a 2015 (AAPC = -5,6%; p<0,001), passando de 2,72 casos (em 2001) para 1,12 por 10 mil habitantes em 2015 (Tabelas 1 e 2).
Indicadores | 2001 | 2002 | 2003 | 2004 | 2005 | 2006 | 2007 | 2008 | 2009 | 2010 | 2011 | 2012 | 2013 | 2014 | 2015 |
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Coeficiente de prevalência/10 mil habitantes | 2,72 | 4,36 | 3,96 | 1,57 | 1,33 | 1,21 | 2,09 | 2,20 | 2,22 | 1,85 | 1,75 | 1,67 | 1,50 | 1,33 | 1,12 |
Coeficiente de detecção na população geral/100 mil hab. | 16,72 | 19,02 | 23,69 | 28,94 | 26,07 | 22,01 | 21,16 | 19,96 | 18,40 | 19,49 | 19,35 | 18,29 | 13,80 | 16,49 | 16,31 |
Coeficiente de detecção em menores de 15 anos/100 mil hab. | 4,71 | 4,60 | 7,13 | 8,02 | 6,78 | 5,59 | 6,15 | 5,16 | 5,59 | 5,43 | 5,54 | 5,34 | 4,12 | 4,90 | 5,88 |
Coeficiente de casos novos com grau II/100 mil hab. | 0,67 | 0,71 | 0,65 | 0,94 | 0,90 | 0,87 | 1,51 | 1,14 | 0,98 | 1,00 | 1,06 | 1,09 | 0,91 | 1,04 | 0,83 |
% de casos com grau II de incapacidade física | 4,93 | 4,68 | 3,36 | 3,71 | 4,19 | 4,69 | 7,88 | 6,28 | 5,69 | 5,65 | 5,91 | 6,53 | 6,69 | 6,57 | 5,70 |
% de casos do sexo feminino | 51,57 | 50,45 | 51,65 | 52,89 | 51,00 | 50,36 | 49,38 | 48,17 | 48,22 | 48,72 | 48,66 | 46,41 | 48,70 | 47,81 | 49,72 |
% de casos multibacilares | 48,82 | 46,47 | 41,88 | 39,08 | 45,03 | 47,79 | 48,14 | 52,97 | 50,22 | 55,12 | 58,15 | 60,60 | 62,00 | 62,61 | 66,54 |
% de cura | 74,00 | 60,70 | 60,00 | 63,90 | 65,40 | 80,20 | 76,10 | 71,90 | 76,70 | 74,90 | 77,00 | 82,90 | 76,30 | 79,50 | 79,40 |
% de abandono | 9,62 | 5,60 | 7,25 | 7,26 | 5,83 | 6,57 | 7,04 | 6,19 | 5,49 | 5,45 | 4,18 | 4,47 | 3,72 | 2,64 | 0,91 |
% de contatos examinados | 55,80 | 57,40 | 44,20 | 43,30 | 38,00 | 39,80 | 42,40 | 57,70 | 56,70 | 56,80 | 60,60 | 62,30 | 64,20 | 68,70 | 71,50 |
Indicador | Tendência 1 | Tendência 2 | Tendência 3 | Período total | |||
---|---|---|---|---|---|---|---|
Período | APCa (IC95% c) | Período | APCa (IC95% c) | Período | APCa (IC95% c) | AAPCb (IC95% c) | |
Coeficiente de prevalência/10 mil habitantes | - | - | - | - | - | - | -5,6d (-9,4;-1,6) |
Coeficiente de detecção na população geral/100 mil hab. | 2001-2004d | 16,0 (1,9;32,0) | 2004-2015d | -5,0 (-6,7;-3,4) | - | - | -0,9 (-3,5;1,9) |
Coeficiente de detecção em menores de 15 anos/100 mil hab. | 2001-2003 | 25,4 (-15,5;86,1) | 2003-2015d | -2,9 (-5,2;-0,6) | - | - | 0,7 (-4,5;6,1) |
Coeficiente de casos novos com grau II/100 mil hab. | 2001-2007d | 11,2 (5.6;17.2) | 2007-2015 | -3,2 (-6,4;0,1) | - | - | 2,7d (0,1;5,4) |
% de casos com grau II de incapacidade física | 2001-2004 | -12,0 (-23,2;0,8) | 2004-2007 | 24,0 (-5,6;62,7) | 2007-2015 | -0,7 (-3,6; 2,3) | 1,5 (-4,0;7,3) |
% de casos do sexo feminino | - | - | - | - | - | - | -0,6d (-0,9;-0,3) |
% de casos multibacilares | 2001-2003 | -9,0 (-19.4;2.8) | 2003-2015d | 4,2 (3,4;4,9) | - | - | 2,2d (0,5;3,9) |
% de cura | 2001-2003 | -10,3 (-19,8;0,3) | 2003-2006 | 9,1 (-2,4;22,0) | 2006-2015 | 0,6 (-0,4;1,7) | 0,7 (-1,7;3,2) |
% de abandono | 2001-2013d | -5,0 (-7,6;-2,4) | 2013-2015d | -51,6 (-69,4;-23,2) | -13,7d (-18,9;-8,3) | ||
% de contatos examinados | 2001-2005d | -11,1 (-15,5;-6,5) | 2005-2008 | 13,1 (-3,6;32,7) | 2008-2015d | 4,2 (2,0;6,4) | 1,3 (-1,9;4,6) |
a) APC: annual percent change.
b) AAPC: average annual percent change.
c) IC95%: intervalo de confiança de 95%.
d) Tendência significativa (p<0,05).
Quanto ao coeficiente de incidência de hanseníase na população geral, a endemia foi classificada como muito alta no período 2003-2007, e como alta nos demais anos. Ao se comparar a incidência nos anos de 2001 e 2015, os valores são muito próximos (16,72/100 mil hab. e 16,31/100 mil hab., respectivamente), mostrando um comportamento temporal estacionário no período (Tabelas 1 e 2). A análise de tendência mostrou dois comportamentos significativos: um de crescimento, entre 2001 e 2004 (APC = 16,0%; p=0,02), e o outro de declínio, entre 2004 e 2015 (APC = -5,0%; p<0,001) (Tabela 2).
Quanto ao coeficiente de detecção de hanseníase em menores de 15 anos de idade, nos anos de 2001, 2002, 2013 e 2014, a endemia foi classificada como alta nessa população. Nos demais anos, a endemia no estado foi classificada como muito alta (Tabela 1). Foram evidenciadas duas tendências: a primeira não significativa (estacionária), entre 2001 e 2003 (APC = 25,4%; p=0,2), e a segunda de declínio, a partir de 2003 (APC = -2,9%; p<0,01). Ao se considerar o período total, a tendência foi classificada como estacionária (APC = 0,7%; p=0,8). Todavia, faz-se necessário destacar que o coeficiente de detecção no início da série foi de 4,71 por 100 mil hab. e no final dela alcançou 5,88/100 mil hab. (Tabelas 1 e 2).
A análise do coeficiente de casos novos com grau II mostrou pouca variação ao longo dos anos, situando-se entre 0,65/100 mil hab. (em 2003) e 1,51 (em 2007). Enquanto no ano de 2001 o coeficiente foi de 0,67/100 mil hab., em 2015 alcançou 0,83/100 mil hab. (Tabela 1). Duas tendências foram observadas: a primeira de crescimento, entre 2001 e 2007 (APC = 11,2%; p<0,001), e a segunda estacionária, entre 2007 e 2015 (APC = -3,2%; p=0,1). Diferentemente dos indicadores anteriores, ao se analisar o período total do coeficiente de casos novos com grau II, foi encontrada tendência de crescimento (APC = 2,7%; p<0,001) (Tabela 2).
A proporção de casos novos com grau II de incapacidade física, a partir de 2007, foi considerada média: entre 5 e 10%. Ao se comparar o indicador entre o início e o final da série, observou-se crescimento, passando de 4,93 para 5,70% (Tabela 1). Na análise de tendência, foram encontrados padrões estacionários, porém observou-se uma variação maior do indicador (Tabela 2).
A proporção de indivíduos do sexo feminino com hanseníase apresentou pouca variação ao longo da série temporal. No início e no final da série, as proporções observadas foram de 51,57% e 49,72%, respectivamente (Tabela 1). A análise de tendência mostrou declínio estatisticamente significativo no período (AAPC = -0,6%; p<0,001) (Tabela 2).
No que se refere à proporção de casos multibacilares, observou-se que, a partir de 2008, o indicador se manteve superior a 50% (Tabela 1). Foi identificada tendência de crescimento no período (AAPC = 2,2%; p<0,001) (Tabela 2).
A proporção de cura apresentou pouca variação entre o início e o final da série temporal, passando de 74,00% (2001) para 79,40% (2015), um comportamento estacionário (AAPC = 0,7%; p=0,6) (Tabelas 1 e 2).). No período de 2001 a 2005 e nos anos entre 2008 e 2010, esse indicador foi considerado precário. Em apenas dois anos (2006 e 2012), a proporção de cura ultrapassou 80% (Tabela 1).
A proporção de abandono de tratamento de hanseníase apresentou uma redução substancial ao longo do período estudado. Enquanto no início da série (2001) o abandono alcançou 9,62%, no final dela (2015) essa proporção chegou a 0,91%. Em toda a série histórica, o indicador foi classificado como bom (Tabela 1). Contudo, a proporção de abandono apresentou duas tendências significativas de redução: a primeira, no período de 2001 a 2013 (APC = -5,0%; p<0,01), e a segunda entre 2013 e 2015 (APC = -51,6; p<0,001). Ao se considerar o período total, o AAPC foi de -13,7% (p<0,001) (Tabela 2).
Por fim, a proporção de contatos examinados foi o indicador com maior irregularidade ao longo dos anos observados. Em 2001, a proporção de contatos examinados foi de 55,80%, alcançando 71,50% em 2015. Em todos os anos, esse indicador foi considerado precário. Na análise de tendência, ele apresentou três comportamentos temporais, dois deles estatisticamente significantes: o primeiro foi de declínio, entre 2001 e 2005 (APC = -11,1; p<0,001), e o segundo de incremento, entre 2008 e 2015 (APC = 4,2; p<0,001). Considerando-se o período total, o indicador apresentou padrão estacionário (AAPC = 1,3%; p=0,4) (Tabela 2).
A estatística de varredura espacial do coeficiente de detecção na população geral identificou 15 aglomerados espaciais estatisticamente significativos (Tabela 3), dez deles considerados hiperendêmicos e cinco com endemicidade muito alta. O aglomerado 9, composto apenas pelo município de Andaraí, foi o que apresentou o maior risco relativo (RR = 6,64; p<0,001) e o maior coeficiente (131,8/100 mil hab.). A segunda posição foi ocupada pelo aglomerado 1, composto por cinco municípios: Casa Nova, Remanso, Juazeiro, Sento-Sé e Sobradinho (RR = 5,30; p<0,001). Juntos, esses municípios foram responsáveis por 12,42% (n = 5.244) de todos os casos registrados no estado da Bahia entre 2001 e 2015. Vale salientar que se trata de municípios de pequeno porte, à exceção de Juazeiro, cuja população somava pouco mais de 200 mil habitantes em 2015 (Figura 2).
Clusters | Coeficiente de detecção na população geral/100 mil habitantes | Coeficiente de detecção em menores de 15 anos/100 mil habitantes | Coeficiente de casos novos com grau II de incapacidade física/100 mil habitantes | ||||||
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Municípios | Coeficiente/100 mil hab. | RRa | Municípios | Coeficiente/100 mil hab. | RRa | Municípios | Coeficiente/100 mil hab. | RRa | |
1 | 5 | 94,6 | 5,30 | 1 | 144,8 | 27,44 | 16 | 3,4 | 4,11 |
2 | 14 | 63,5 | 3,58 | 14 | 21,2 | 4,31 | 9 | 3,4 | 3,83 |
3 | 24 | 60,9 | 3,38 | 2 | 21,8 | 4,03 | 3 | 2,2 | 2,32 |
4 | 32 | 51,2 | 2,89 | 24 | 13,9 | 2,13 | 14 | 1,8 | 1,95 |
5 | 1 | 63,9 | 3,27 | 9 | 15,9 | 2,94 | 19 | 1,7 | 1,86 |
6 | 2 | 60,3 | 3,07 | 16 | 15,2 | 2,83 | 1 | 5,3 | 5,52 |
7 | 1 | 73,3 | 3,73 | 1 | 32,0 | 5,76 | - | - | - |
8 | 1 | 67,7 | 3,44 | 1 | 41,3 | 7,32 | - | - | - |
9 | 1 | 131,8 | 6,64 | 1 | 16,6 | 2,96 | - | - | - |
10 | 10 | 28,1 | 1,43 | 1 | 19,5 | 3,48 | - | - | - |
11 | 1 | 29,3 | 1,49 | 1 | 18,9 | 3,34 | - | - | - |
12 | 1 | 46,9 | 2,37 | - | - | - | - | - | - |
13 | 4 | 30,9 | 1,57 | - | - | - | - | - | - |
14 | 1 | 31,7 | 1,60 | - | - | - | - | - | - |
15 | 1 | 24,5 | 1,24 | - | - | - | - | - | - |
a) RR: risco relativo (significância estatística quando p<0,05).
Para o coeficiente de detecção em menores de 15 anos de idade, 11 aglomerados espaciais foram identificados (Tabela 3). O aglomerado 1 (município de Remanso) foi o que apresentou o maior risco relativo (RR = 27,44; p<0,001) e o maior coeficiente (144,8/100 mil hab.). Nessa faixa etária, o município de Andaraí compôs o aglomerado 8. Entre os aglomerados compostos por mais de um município, destacou-se o número 2, situado na região sul do estado, formado por 14 municípios: Alcoçaba, Belmonte, Eunápolis, Guaratinga, Itabela, Itagimirim, Itamaraju, Itapebi, Jucuruçu, Porto Seguro, Prado, Santa Cruz Cabrália, Teixeira de Freitas e Veredas. Juntos, esses municípios registraram 608 casos em menores de 15 anos, o que correspondeu a 17,72% de todos os casos registrados no estado no período 2001-2015 (Figura 2).
Por fim, na análise do coeficiente de casos novos com grau II de incapacidade física no momento do diagnóstico, foram identificados seis aglomerados espaciais estatisticamente significativos (Tabela 3). Andaraí compôs o aglomerado 6, apresentando o maior risco relativo (RR = 5,52; p<0,001) e o maior coeficiente (5,3/100 mil hab.). A segunda posição na análise desse coeficiente ficou com o aglomerado 1 (RR = 4,11; p<0,001), composto por 16 municípios: Alcoçaba, Belmonte, Eunápolis, Guaratinga, Itabela, Itagimirim, Itanhém, Itamaraju, Itapebi, Jucuruçu, Medeiros Neto, Porto Seguro, Prado, Santa Cruz Cabrália, Teixeira de Freitas e Vereda. Juntos, esses 16 municípios notificaram 337 indivíduos com grau II de incapacidade física no diagnóstico, o que correspondeu a 16,58% de todos os casos do estado no período de 2001 a 2015 (Figura 2).
Discussão
A análise da hanseníase mostrou nuances importantes do processo de adoecimento de indivíduos infectados residentes na Bahia. Em razão de sua complexidade, a presente discussão conjuga elementos temporais e espaciais para explicar a dinâmica de transmissão da doença no estado.
O coeficiente de prevalência da hanseníase segue o padrão de declínio observado em diferentes escalas, desde a global até a local, sobretudo a partir da implantação da poliquimioterapia (PQT) e dos compromissos internacionais assumidos, inclusive pelo Brasil, na abordagem da doença.1 Entretanto, há evidências consistentes de que essa tendência seja um fenômeno virtual, não expressando a realidade sanitária. Os autores do presente relato chamam a esse processo de ‘pseudodeclínio’ e sugerem que ele seja resultante da elevada prevalência oculta da doença, permitindo-se advogar que o número real de casos é ainda superior aos atualmente registrados nos sistemas de informações oficiais.5,10-11
O primeiro conjunto de evidências diz respeito à manutenção da cadeia de transmissão no estado, evidenciada pela análise dos coeficientes de detecção na população geral e em menores de 15 anos. O comportamento estacionário da detecção geral, diferentemente do padrão encontrado em outras localidades do país,12-13 e o fato desse indicador ser praticamente o mesmo no início e no final da série, contribuem para sustentar a tese da transmissão ativa da hanseníase no estado.
Paralelamente, a heterogeneidade espacial desses indicadores, semelhante à encontrada em outras localidades do Brasil,14-15 coloca em evidência aspectos importantes desse processo. A concentração de áreas de maior risco no eixo norte-oeste e na região sul da Bahia pode ter duas interpretações. A primeira delas diz respeito ao processo de formação dessas regiões, caracterizado pela migração de grandes massas populacionais em busca de melhores condições de vida no norte do estado (projetos de irrigação e fruticultura irrigada), no oeste (produção de grãos) e no sul (produção de celulose e turismo).16-18 O fator ‘migração’ já foi apontado como um determinante importante na manutenção da cadeia de transmissão da hanseníase.19
Essas regiões são as que apresentam maior potencial de desenvolvimento no estado, com influência na oferta de serviços de saúde e seu acesso por parte da população, o que pode justificar - também - a redução do abandono de tratamento. A área central da Bahia caracteriza-se por ser historicamente pobre e pode representar um bolsão de prevalência oculta, com elevado número de doentes sem diagnóstico. Não parece ser verdade que a doença esteja nas “bordas” do estado e poupe seu centro, onde são encontradas as piores condições de vida no estado, e sim que a maior facilidade para o diagnóstico está na periferia e não no interior do território baiano.
Na população infantil (<15 anos) do estado, embora a tendência tenha-se mostrado decrescente entre 2003 e 2009 e estacionária no período como um todo, o coeficiente no último ano da série, 2015 (5,88/100 mil hab.), foi substancialmente maior do que o observado no início dela, 2001 (4,71/100 mil hab.). Oscilações da hanseníase na infância também foram evidenciadas no estado de Mato Grosso20 e em Fortaleza, capital do estado do Ceará.13
A persistência da hanseníase na população infantil é o mais importante indicador de manutenção da cadeia epidemiológica de transmissão e reflete a intensa circulação do agente infeccioso Mycobacterium leprae.20,21 Criança com hanseníase é sinônimo da existência de adulto não diagnosticado e sem tratamento. A existência de aglomerado de elevado risco para essa população no nordeste baiano (cluster 5), ao mesmo tempo em que essa região não aparece como de alto risco para a doença na população geral, indica a existência de elevada prevalência oculta na população adulta.
O segundo conjunto de evidências relaciona-se ao diagnóstico tardio, destacando-se a tendência significativa de crescimento do coeficiente de casos novos com grau II de incapacidade física e a estabilidade da proporção de incapacitados no momento do diagnóstico. Esses achados são corroborados por pesquisa realizada no estado de Mato Grosso.20 No município de Fortaleza, Ceará,13 e no estado de Tocantins,12 estudos revelaram estabilidade em ambos os indicadores.
A tendência de aumento de incapacitados deve ser vista com preocupação. O diagnóstico tardio parece ser ainda mais grave no estado da Bahia, comparado a outras regiões nas quais essa tendência foi analisada. Sendo a hanseníase uma doença de longa duração, a presença de incapacidade física sinaliza demora no diagnóstico, prevalência oculta e falha dos serviços de saúde em captar e acompanhar os indivíduos doentes.1,22
Adicionalmente, a existência de clusters para o coeficiente de casos novos com grau II reforça a existência de diagnóstico tardio e de prevalência oculta, indicando as áreas mais críticas e prioritárias para intervenção.1,23 As regiões norte, nordeste e sul da Bahia necessitam de medidas urgentes. No extremo oeste do estado, embora esta seja uma área de alto risco tanto para a população geral quanto para a infantil, a análise de varredura espacial sugere que o diagnóstico ocorra mais precocemente, haja vista não se identificar cluster para incapacidades físicas nessa região.
O diagnóstico tardio também é reforçado pela tendência de crescimento da proporção de casos multibacilares, formas dimorfa e virchowiana. Importantes na cadeia de transmissão, essas formas de infecção ampliam substancialmente o risco de incapacidades físicas.3,24 Enquanto, no início da série temporal (2001), 48,82% dos casos novos eram multibacilares, no final dela, essa participação alcançou 2/3 (66,54%). O aumento proporcional de casos multibacilares também foi evidenciado em outros estados, como Mato Grosso,20 Pará25 e Tocantins,12 e em municípios como Ribeirão Preto, no estado de São Paulo,3 e Fortaleza, no Ceará.13
Muitos fatores podem estar associados ao diagnóstico tardio, entre os quais se destacam características da própria população, como condições socioeconômicas e negligência com a própria saúde,2,13 e aquelas relacionados aos serviços de saúde, sua pouca disponibilidade e difícil acesso da população.5,13 Destaca-se, ademais, a fragilidade dos sistemas de vigilância em saúde, sobretudo nos municípios menores, onde a detecção passiva é o principal mecanismo de captação de casos.
Chamam a atenção mais duas evidências. A primeira refere-se à proporção de cura de hanseníase. Sendo uma doença integralmente curável e com tratamento gratuito no Brasil, a baixa proporção de cura, considerada precária em seis anos analisados e regular nos demais, sugere falhas no acompanhamento dos doentes. Indivíduos não curados, além de contribuírem para a manutenção da transmissão, podem evoluir com incapacidades físicas permanentes, estados reacionais e resistência medicamentosa.26,27
A segunda evidência refere-se ao percentual de contatos examinados, indicador da capacidade dos serviços de saúde em realizar a vigilância dos contatos de casos e, assim, aumentar a detecção oportuna de novos doentes. Ao longo da série, a realização do exame oscilou entre 38,00% (2005) e 71,50% (2015), coeficiente classificado como precário (<75%) em todos os anos selecionados. Além de essa proporção ser muito baixa, faz-se necessário questionar a qualidade do procedimento, muitas vezes reduzido à prescrição da vacina BCG.28 Entre os impactos desse processo, tem-se o diagnóstico tardio, a manutenção da cadeia de transmissão e o risco de incapacidades físicas.29 Embora seja dado pouco valor ao exame de contatos pelas equipes de saúde, ele deve ocupar lugar de destaque na luta pela eliminação da hanseníase como problema de Saúde Pública, não somente na identificação precoce de doentes como também na identificação dos contatos mais suscetíveis, incluindo a utilização de testes moleculares.30
Mesmo considerando-se todos os cuidados metodológicos adotados no desenvolvimento desta pesquisa, é mister destacar a existência de limitações, entre as quais a utilização de dados secundários cuja qualidade depende da correta alimentação do sistema de informações pelos municípios. Fragilidades na qualidade dos registros são evidenciadas, sobretudo, nos municípios menores, onde, muitas vezes, enfrentam-se dificuldades na vigilância da hanseníase.13,14
Fica demonstrada a complexidade da dinâmica de transmissão da hanseníase no estado da Bahia e a necessidade urgente de políticas públicas que oportunizem ações capazes de reduzir a prevalência oculta da doença, favorecer o diagnóstico precoce dos casos, o acompanhamento adequado dos doentes e a vigilância dos contatos.