Introdução
Os grupos de usuários de vias públicas com maior risco de acidentes correspondem a cerca da metade do número total das mortes causadas pelo trânsito no mundo. Entre eles, estão os pedestres (22,0%), os ciclistas (4,0%) e os motociclistas (23,0%), apesar de a probabilidade de acidentes envolvendo cada um deles variar conforme a região ou país. Isso reflete, em parte, as medidas de segurança adotadas para proteger os diferentes usuários das vias e as formas mais comuns de mobilidade segundo cada região ou país.1
No Brasil, os pedestres constituem o terceiro maior grupo de vítimas, depois dos motociclistas e dos ocupantes de automóveis.1 No ano de 2016, segundo dados do Sistema de Informações sobre Mortalidade (SIM) do Ministério da Saúde, disponibilizados no sítio eletrônico do Departamento de Informática do Sistema Único de Saúde (Datasus), houve no país um total de 38.265 mortes provocadas por acidentes de transporte terrestre. Entre esses óbitos, 12.036 (31,5%) eram motociclistas, 8.899 (23,2%) ocupantes de automóveis e 6.158 (16,1%) pedestres.
A segurança de pedestres pode ser representativa da qualidade de vida da população. Um estudo com base em dados sobre a carga global de doença (GBD) aferiu que os acidentes envolvendo pedestres no Brasil estão diminuindo anos potenciais a serem vividos e aumentando os anos vividos com incapacidade, os chamados disability adjusted life years (DALY). Os coeficientes DALY atribuídos às principais causas externas tiveram os acidentes de pedestres na primeira posição de sua lista em 1990, no país; em 2015, houve uma redução de 51,4% nesses coeficientes, apesar de ainda representarem a segunda colocação, atrás apenas de homicídios por arma de fogo.2
Caminhar é uma atividade diária popular entre a maioria das pessoas, independentemente de seu principal meio de transporte, sobretudo nos países de baixa e média renda.3 Não só por questão de necessidade ou opção - esse meio de locomoção é promovido também porque se reconhece como saudável e barato, além de uma alternativa no sentido de reduzir o número de veículos em circulação. Uma vez consolidada a percepção de que caminhar pelas vias públicas é seguro, há maior encorajamento à prática de atividade física ao ar livre, com consequentes benefícios para a saúde mental e física.4 No entanto, em muitos países de baixa e média renda, não há políticas para melhorar a segurança dos pedestres, colocando-os sob risco de lesões e morte nas estradas.3,4
Aproximadamente 91 países, 9,0% deles de alta renda, contam com políticas para promover os deslocamentos a pé ou de bicicleta.1 Contudo, se essas estratégias não forem acompanhadas de outras, como o controle eficaz da velocidade e a acessibilidade para pedestres e ciclistas, poderão provocar um aumento do número de lesões por colisões no trânsito. Uma estratégia-chave de um sistema de tráfego seguro para pedestres e ciclistas consiste na separação desses usuários dos condutores de veículos automotores.1,3,5
Intervenções de segurança de trânsito voltadas aos pedestres, como a melhoria da iluminação pública, adição de redutores de velocidade ou manutenção de faixas de pedestres, podem aumentar substancialmente a segurança desses usuários.6,7 Dado um cenário marcado pela violência no trânsito, a Organização das Nações Unidas (ONU) instituiu o período de 2011 a 2020 como a Década de Ação pela Segurança no Trânsito, cabendo aos governos das nações signatárias comprometer-se com o objetivo de estabilizar e reduzir as mortes causadas pelo trânsito, e, por conseguinte, com as metas definidas para tanto.1,7 O Brasil se juntou a essa estratégia global com seu Projeto Vida no Trânsito, formalizado na Portaria Interministerial nº 2.268, de 10 de agosto de 2010. Enquanto uma das intervenções constitutivas do Plano Nacional de Redução de Acidentes e Segurança Viária para a Década 2011-2020, mediante a qualificação de informações, o Projeto Vida no Trânsito prevê intervenções locais baseadas em apontamentos de fatores e condutas de risco, ações planejadas e intersetoriais, visando reduzir o número de óbitos e feridos graves.7
Promover o conhecimento acerca do tema contribuirá com o desenvolvimento de intervenções eficientes, destinadas a proteger e reduzir os riscos de acidentes de trânsito em estradas, um dos principais objetivos da segurança no trânsito. Estudos que identifiquem a magnitude e as tendências da mortalidade de pedestres são escassos no Brasil, a despeito de sua grande relevância e das políticas públicas recentemente implantadas. O presente estudo teve como objetivo analisar a tendência de mortalidade de pedestres em acidentes no trânsito no Brasil e suas macrorregiões, no período de 1996 a 2015.
Métodos
Trata-se de um estudo ecológico de série temporal. Os dados dos óbitos, extraídos do SIM, sistema coordenado pelo Departamento de Informática do SUS (Datasus) (http://www.datasus.gov.br), referem-se ao período 1996-2015, coletados por local de residência. Utilizaram-se os óbitos classificados como ‘pedestre traumatizado em acidente de transporte’, identificados na Declaração de Óbito (DO) pela codificação prevista na Décima Revisão da Classificação Estatística Internacional de Doenças e Problemas Relacionados à Saúde (CID-10): V01 e V09. Para o cálculo dos coeficientes brutos de mortalidade, foram utilizados dados populacionais obtidos das estimativas da Fundação Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE).
Todas as variáveis foram analisadas quanto a sua completitude para os anos de 1996 a 2015, calculando-se o percentual de campos completos. Os óbitos com sexo e idade ignorados - 2,16% dos casos notificados ao SIM - foram excluídos da análise.
Os coeficientes brutos de mortalidade foram calculados dividindo-se o número de óbitos ocorridos na população de estudo pelo número de habitantes estimado pelo IBGE para o mesmo período, multiplicado por 100 mil habitantes. Para o controle de possíveis disparidades entre populações e a comparação adequada entre as macrorregiões brasileiras, empregou-se o método direto de padronização dos coeficientes de mortalidade, segundo estratos etários. A população-padrão utilizada foi a proposta pela Organização Mundial da Saúde (OMS) (http://www.who.int/healthinfo/paper31.pdf). Os coeficientes encontrados para cada região foram multiplicados pelos respectivos contingentes populacionais, de acordo com o padrão internacional.
Em todas as etapas realizadas até a geração do banco de dados, utilizou-se o software Excel. Em seguida, os dados foram exportados para análise pelo software estatístico Stata 13.0. Na análise de tendência temporal, aplicou-se o método ou modelo de regressão linear generalizada de Prais-Winsten.8,9 Este modelo atua na correção do chamado efeito de autocorrelação de primeira ordem, quando apenas um período anterior no tempo é considerado. Essa especificação também é conhecida como modelo autoregressivo AR. A dependência ou correlação existente entre observações de dados de série temporal inviabiliza o uso da tradicional técnica dos mínimos quadrados ordinários dos coeficientes de regressão.8 Portanto, o método de Prais-Winsten é uma extensão da regressão linear tradicional, uma vez que transforma a equação original da regressão em uma equação equivalente, possível de ser estimada pelo método dos mínimos quadrados. Trata-se de um método especializado para os casos de autocorrelação de primeira ordem.
A posteriori, os coeficientes obtidos na regressão, e seus respectivos intervalos de confiança de 95,0% (IC95%) foram também transformados em variações percentuais médias anuais, mediante a seguinte fórmula sugerida por Antunes e Waldman:9
Os resultados gerados da regressão linear generalizada permitiram indicar a tendência de mortalidade: estacionária (p>0,05), declinante (p<0,05 e coeficiente da regressão negativo) ou ascendente (p<0,05 e coeficiente da regressão positivo).
O projeto do presente estudo atendeu aos preceitos éticos da Resolução do Conselho Nacional de Saúde (CNS) no 510, de 7 de abril de 2016; por utilizar apenas dados disponíveis publicamente, sem identificação dos sujeitos, foi dispensado de submissão a um Comitê de Ética em Pesquisa (CEP).
Resultados
Entre 1996 e 2015, ocorreram 194.601 óbitos de pedestres no Brasil, o que corresponde a 26,5% das mortes por acidentes de trânsito por transporte terrestre no período.
Os coeficientes de mortalidade em acidentes envolvendo pedestres diminuíram em todo o país e em cada uma de suas macrorregiões (Figura 1). O maior coeficiente referiu-se ao ano de 1996 (8,9/100 mil hab.), e o menor a 2015 (3,3/100 mil hab.) (Tabela 1).
Ano | Brasil | Norte | Centro-Oeste | Nordeste | Sudeste | Sul |
---|---|---|---|---|---|---|
1996 | 8,94 | 6,21 | 9,47 | 6,62 | 10,32 | 9,51 |
1997 | 8,65 | 7,13 | 8,47 | 6,55 | 9,68 | 9,44 |
1998 | 7,71 | 7,50 | 7,79 | 6,20 | 8,22 | 8,29 |
1999 | 6,76 | 4,78 | 7,10 | 5,42 | 7,34 | 7,54 |
2000 | 5,56 | 5,05 | 6,70 | 5,06 | 5,33 | 6,37 |
2001 | 6,11 | 5,30 | 7,28 | 5,23 | 6,25 | 6,25 |
2002 | 6,20 | 5,90 | 7,65 | 5,83 | 5,83 | 6,94 |
2003 | 6,16 | 5,86 | 7,45 | 5,35 | 6,12 | 6,80 |
2004 | 6,28 | 5,11 | 7,84 | 5,47 | 6,26 | 7,08 |
2005 | 6,23 | 5,27 | 7,45 | 5,78 | 6,08 | 6,86 |
2006 | 6,10 | 5,58 | 6,47 | 5,45 | 6,24 | 6,27 |
2007 | 5,30 | 4,56 | 5,71 | 5,00 | 5,25 | 5,74 |
2008 | 5,16 | 4,86 | 6,08 | 4,27 | 5,21 | 5,86 |
2009 | 4,69 | 4,19 | 5,27 | 4,19 | 4,65 | 5,21 |
2010 | 5,17 | 5,68 | 5,99 | 4,90 | 4,95 | 5,28 |
2011 | 4,74 | 5,70 | 5,14 | 4,15 | 4,71 | 4,90 |
2012 | 4,52 | 5,49 | 4,84 | 4,16 | 4,36 | 4,63 |
2013 | 4,04 | 4,80 | 4,82 | 3,91 | 3,75 | 4,07 |
2014 | 3,87 | 3,95 | 4,57 | 3,57 | 3,90 | 3,72 |
2015 | 3,29 | 3,89 | 3,65 | 2,95 | 3,20 | 3,44 |
a) Coeficiente padronizado pela população mundial (Organização Mundial da Saúde - OMS).
O país reduziu seu coeficiente de mortalidade de pedestres em 63,2%, entre 1996 e 2015, com variação do coeficiente padronizado de 8,9 para 3,3/100 mil hab. O menor coeficiente registrado em 2015 foi observado na região Nordeste (3,0/100 mil hab.) e o maior na região Norte (3,9/100 mil hab.).
O Norte e o Nordeste apresentaram diminuição mais lenta, com variação média anual (VMA) 2,1 e 1,4 vezes menor, respectivamente, do que a média nacional. Já o Sudeste se destacou pela redução mais acelerada, com VMA 1,0 vez maior que a do restante do país. Seguindo a ordem cronológica, os coeficientes de mortalidade reduziram-se até atingir seu menor patamar no ano 2000 (Figura 1). Um novo “vale” na evolução da tendência do coeficiente de mortalidade nacional foi observado para o ano de 2009. Em 2010, os coeficientes do país, assim como de cada região, voltaram a subir, com queda subsequente a partir de 2011.
A mortalidade de pedestres do sexo masculino, ainda que se mantivesse mais elevada que a do sexo feminino, apresentou maior decréscimo, ao longo da série histórica: entre os homens, -62,3%; entre as mulheres, -21,7%. A maior queda nesses índices segundo o gênero ocorreu na região Sudeste, com uma variação percentual anual de -70,7% entre os homens. Já a região Norte experimentou uma redução menor em comparação com as demais regiões (-30,9%), passando de 9,2 para 5,8/100 mil homens entre 1996 e 2015 (Tabela 2).
Região | VPA a | IC95% b | p-valor | Conclusão |
---|---|---|---|---|
Brasil | ||||
Masculino | -62,33 | -71,94;-49,41 | <0,001 | Diminuição |
Feminino | -21,66 | -29,46;-12,93 | <0,001 | Diminuição |
Total | -45,27 | -55,09;-33,27 | <0,001 | Diminuição |
Norte | ||||
Masculino | -30,98 | -46,77;-10,50 | 0.003 | Diminuição |
Feminino | -11,08 | -12,56;-3,83 | <0,001 | Diminuição |
Total | -21,42 | -33.41;-7.27 | <0,001 | Diminuição |
Centro-Oeste | ||||
Masculino | -59,33 | -68.61;-47.28 | <0,001 | Diminuição |
Feminino | -20,43 | -26.24;-14.11 | <0,001 | Diminuição |
Total | -44,22 | -52.99;-50.87 | <0,001 | Diminuição |
Nordeste | ||||
Masculino | -47,32 | -57.10;-35.35 | <0,001 | Diminuição |
Feminino | -10,90 | -15.28;-6.34 | <0,001 | Diminuição |
Total | -31,08 | -38.78;-22.46 | <0,001 | Diminuição |
Sudeste | ||||
Masculino | -70,70 | -81.48;-53.62 | <0,001 | Diminuição |
Feminino | -26,37 | -36.82;-14.03 | <0,001 | Diminuição |
Total | -52,79 | -65.18;-36.03 | <0,001 | Diminuição |
Sul | ||||
Masculino | -65,77 | -73.22;-56.23 | <0,001 | Diminuição |
Feminino | -24,86 | -32.21;-16.70 | <0,001 | Diminuição |
Total | -49,00 | -57.06;-32.21 | <0,001 | Diminuição |
a) VPA: variação percentual anual - tradução do inglês annual percentage change (APC).
b) IC95%: intervalo de confiança de 95%.
O coeficiente de mortalidade no Brasil entre pedestres com idade superior a 60 anos apresentou os valores mais altos, em relação aos demais grupos etários analisados (em 1996, 18,5/100 mil hab.; em 2015, 9,9/100 mil hab.). O menor valor por faixa etária foi encontrado entre crianças e jovens de 0 a 19 anos (em 1996, 4,2/100 mil hab.; em 2015, 1,0/100 mil hab.); um valor mediano foi observado entre os adultos de 20 a 59 anos (em 1996, 6,6/100 mil hab.; em 2015, 3,2/100 mil hab.). Em 2015, um pedestre idoso teve aproximadamente 9,6 e 4,2 vezes mais risco de morrer do que pessoas na idade de 0-19 e 20-59 anos, respectivamente (Figura 2).
Discussão
Houve uma queda expressiva da mortalidade por acidentes de trânsito envolvendo pedestres, no Brasil e em todas suas regiões - apesar de a velocidade no declínio dos coeficientes ter sido diferente entre as cinco regiões, por sexo e faixa etária. Dados globais sobre a segurança rodoviária de 181 países, abrangendo 6,8 milhões de pessoas de diferentes nacionalidades, mostraram que os coeficientes de mortalidade de pedestres diminuíram significativamente entre os anos de 2007 (4,2/100 mil hab.) e 2010 (3,9/100 mil hab.), com redução global de 8,1%.3
Estudos isolados, oriundos de diferentes países, também observaram queda desse desfecho. Em Cáli, importante cidade na Colômbia, houve uma tendência decrescente na mortalidade de pedestres, modificando a ocorrência de 1,1 morte por 10 mil pessoas/ano em 2008, para 0,6 morte em 2010.10 Na Cidade do México, entre os períodos de 1994 a 1997 e 2004 a 2007, essa redução foi de 17,5%.11 No Irã, o decréscimo ao longo dos anos de 2009 a 2015 foi de 20%, com diminuição média de 4% ao ano.12 Na Espanha, o coeficiente bruto de mortalidade de pedestres caiu 67% entre 1993 e 2011.13
No Brasil, um estudo dos coeficientes de mortalidade por acidentes de trânsito e o porte populacional, ao comparar o ano 2000 com 2010, apontou uma redução na variação dos riscos da mortalidade de pedestres na maioria dos estados. Os maiores coeficientes foram observados nos municípios de 100 a 500 mil habitantes em 2000, e naqueles acima de 500 mil habitantes em 2010. Os menores coeficientes ocorreram nos municípios com menos de 20 mil habitantes, nos períodos estudados.14 Sobre esse mesmo estudo brasileiro, seus autores ainda constataram que os pedestres apresentavam o maior risco de morte entre 2000 e 2007, que declinou nos anos subsequentes, até ficar atrás apenas dos ocupantes de veículos e motocicletas em 2010.14
O número de mortes de pedestres, em geral, apresenta-se maior quanto menor a renda de um país.1 Os países de baixa renda são responsáveis por 45,0% das mortes no mundo, ao passo que os países de renda média e alta contribuem com 29,0% e 18,0% dessas mortes, respectivamente.1 Estudo de abrangência mundial, ao analisar dados de 181 países, indicou que o produto interno bruto (PIB) teve um papel positivo na redução das mortes de pedestres em 2007.3 Uma hipótese explicativa de tal achado seria a de que um maior PIB pode contribuir para intervenções de design urbano e rodoviário mais seguras e preventivas. Já em 2010, a legislação nacional de segurança no trânsito foi a melhor variável preditora da mortalidade de pedestres, evidenciando que os fatores para a ocorrência desses acidentes vêm sendo alterados ao longo do tempo, em nível global.3 A legislação e sua adequada aplicação são importantes para alcançar a meta de redução das mortes por acidentes de trânsito para aproximadamente 5 milhões de pessoas no decorrer da próxima década, em todo o mundo.3
A presente análise demonstrou que, segundo a região do país, a despeito da queda unânime, o Norte e o Nordeste mantiveram uma tendência diferenciada, mais lenta, apontando a necessidade de maiores investimentos e atenção regional à redução de mortes entre pedestres. No sentido oposto, o Sudeste destacou-se pela redução mais acelerada. Conforme foi discutido anteriormente, existe uma associação entre o contexto econômico de uma região e a maior ocorrência de atropelamentos.1,3,15,16 O PIB per capita mais baixo do país remete às regiões Norte e Nordeste, onde a proporção de municípios com valores superiores ao nacional não ultrapassa 12,5%. Também são essas regiões as que apresentam as maiores proporções de mortes entre esses usuários mais vulneráveis das vias públicas, na comparação com os demais.15 Outra hipótese a considerar é a marcante desigualdade nas condições de estrutura rodoviária e nas medidas de fiscalização regional: o Norte e o Nordeste receberam as piores classificações nacionais, com 76,6% e 63,1%, respectivamente de suas extensões viárias pesquisadas apresentando algum tipo de problema e avaliadas como de nível regular, ruim ou péssimo quanto a seu estado geral.17 No caso da segurança de pedestres, fatores como faixas não sinalizadas, estradas sem marcação de divisão, precariedade de iluminação pública, estradas de mão dupla, áreas em construção no leito das rodovias, localização de faixas de meio-bloco e, inclusive, o fator período de verão, contribuem para o aumento da probabilidade de mortes. O limite de velocidade é mais um fator, crucial: o risco de acidentes fatais é maior em rodovias onde o limite de velocidade é ≥70 km/h.5
Durante o período analisado, também foram observados pontos ao longo da linha de tendência com maior queda, possivelmente relacionados a marcos históricos no campo da Legislação e Fiscalização do trânsito brasileiro. Houve intervenções importantes, protagonizadas pelo Departamento Nacional de Trânsito (Detran) no período anterior ao ano 2000.18 Ademais, o “vale” identificado na linha de tendência que representa o país, correspondente ao ano de 2009, sobretudo na linha que representa o sexo masculino, coincide com o período de promulgação da Lei no 11.705, em 19 de junho de 2008: conhecida como a “Lei Seca”, ela contribuiu para uma redução proporcional significativa do risco de morte e internações por acidentes de trânsito.19,20 Houve uma redução do risco de morte para o Brasil (-7,4%) e suas capitais (-11,8%), principalmente entre os homens (-8,3% e -12,6%, respectivamente), no período de 2007 a 2009.19 Assim que a Lei Seca entrou em vigor, realizou-se vigilância intensa em algumas rodovias. Entretanto essas medidas diminuíram, paulatinamente, restando a dúvida se as metas da Lei eram atingidas. O resultado do arrefecimento da fiscalização logo foi notado, com a reversão na tendência de queda no índice de acidentes.20
Em 2010, novamente o Brasil vivenciou altos índices de morte no trânsito,19 observando-se um pico no número de atropelamentos com vítimas fatais naquele ano. A partir de 2011, com a implantação do Projeto Vida no Trânsito em algumas cidades brasileiras, como iniciativa da Década da Ação pela Segurança no Trânsito (2011-2020), observa-se uma tendência de queda nos índices de mortalidade, constatada por este estudo até o fim do período analisado. Passados dois anos, aumentou o percentual de cumprimento das metas dos programas de intervenção, como fiscalização de velocidade e realização de blitz de checagem de álcool, com aumento do número de testes e redução do respectivo percentual de positividade.21 Verificou-se redução na mortalidade por acidentes de trânsito em três capitais que aderiram ao Programa.21
Quanto a esta pesquisa, seus resultados demonstram que os coeficientes de mortalidade entre os homens são significativamente superiores aos das mulheres, independentemente de regiões ou faixas etárias. Este achado corrobora os resultados de grande parte dos estudos sobre o tema.15,22 Embora os motivos dessa diferenciação por gênero entre os coeficientes de mortalidade envolvendo pedestres não sejam bem compreendidos, alguns estudos têm disponibilizado achados explicativos:23 (i) os pedestres masculinos estão envolvidos em colisões de maior gravidade intrínseca; (ii) o coeficiente de letalidade por colisão no trânsito explica 79,0% da discrepância nos coeficientes de mortalidade entre os sexos, segundo estudo conduzido por Zhu et al;23 (iii) as colisões durante a noite são mais graves, frente às ocorridas à luz do dia; e (iv) há uma frequência maior de caminhadas por homens no período noturno.24,25 Embora os motivos dessa diferenciação por gênero entre os coeficientes de mortalidade envolvendo pedestres não sejam suficientemente compreendidos e analisados, alguns estudos levantam hipóteses nesse sentido,23 como, por exemplo, diferenças significativas relacionadas ao gênero, na atitude ao caminhar e na percepção do meio ambiente; além disso, as mulheres pedestres são mais sensíveis à segurança no trânsito, apresentando menos comportamentos de risco.24 Todavia, mais pesquisas são necessárias para se descobrir as razões que levam o sexo masculino a ser mais propenso a mortes por atropelamentos.24,25
Os dados analisados também revelam uma significativa discrepância na mortalidade por faixa etária. Os resultados apresentados neste relato são evidentes em mostrar um maior número dessas mortes entre pessoas com idade acima de 60 anos, confirmando outros estudos.2,15,22 Fatores inerentes ao envelhecimento podem explicar o fato de os idosos estarem mais expostos ao risco de colisão com um veículo por períodos mais longos. Alterações na marcha e velocidade reduzida na caminhada demandam maior tempo para cobrir a mesma distância, aumentando o risco de atravessar uma estrada, por exemplo.26 O tempo de autorização dado pelos semáforos aos pedestres nem sempre permite ao idoso cruzar uma rua no período programado. Outros fatores limitantes, relacionados ao avanço da idade, como a falta de atenção, distúrbios do equilíbrio corporal, dificuldades visuais e auditivas, podem contribuir para acidentes.11 O prejuízo cognitivo é outro fator bastante apontado por estudos sobre o envolvimento de idosos pedestres em acidentes. E quando esse prejuízo está relacionado a demência, como a doença de Alzheimer, o idoso pode se encontrar sob maior risco.27
Quanto às limitações existentes nesta pesquisa, cumpre destacar o uso de dados secundários, dependentes da acurácia e completitude do sistema de informações consultado. É importante considerar a possibilidade de deficiências no preenchimento, nas codificações ou na cobertura dos dados nacionais pelo SIM. O cenário de problemas no preenchimento da Declaração de Óbito ainda aponta para a necessidade de melhorias da qualidade das informações declaradas.28 Além disso, por se tratar de dados de acidentes de trânsito, pode-se incorrer em sub-registros e ocultação de informações.5,15 Vale destacar que o Sistema de Informações sobre Mortalidade é o mais antigo sistema de informações em saúde no Brasil, e a qualidade e abrangência de seus dados têm aumentado, gradativamente: atualmente, seu grau de adequação encontra-se em torno de 90,0%.28
Os dados aqui apresentados demonstram que, apesar de a mortalidade entre pedestres estar diminuindo em todo o país, e em cada uma de suas regiões, ainda consta uma grande parcela de desfechos fatais no trânsito, atingindo principalmente homens e idosos. Estes resultados demonstram a necessidade de se desenvolverem intervenções dirigidas a esses grupos, visando atender a necessidades específicas de redução de acidentes e melhorar a segurança desses pedestres. Tem-se vivenciado e analisado experiências exitosas em outros países, passíveis de serem adotadas no Brasil. Assim, o país poderia se aproximar dos níveis observados em países de menor mortalidade, além de cumprir as metas estabelecidas pela Organização das Nações Unidas para a Década de Ação pela Segurança no Trânsito.